“Acontece que o livre comércio não serve mais para competir nos mercados (como os EUA impuseram aos nossos países por 30 anos) e, no caso das matérias-primas latino-americanas, o que querem agora é alguma forma de captura direta”, afirma Roberto Pizarro Hofer, ex-ministro do Planejamento do Chile
Neste artigo, o economista Roberto Pizarro Hofer, ex-ministro do Planejamento do Chile, denuncia como as amarras dos Tratados de Livre Comércio (TLCs) ficaram pequenos diante do apetite dos países do capitalismo central que buscam agora impor “Memorandos de Entendimento para Associações Estratégicas de Matérias-Primas” para tomar de assalto com mais facilidade riquezas essenciais para o seu desenvolvimento, particularmente o lítio.
“A nova guerra econômica, tecnológica e geoestratégica entre as potências hegemônicas não deve fechar as portas ao nosso desenvolvimento. Já perdemos 30 anos com uma economia e uma política externa neoliberais, favoráveis ao capital transnacional. Agora, com as ações coloniais dos países centrais, que buscam monopolizar o acesso às nossas matérias-primas, o acesso ao nosso desenvolvimento econômico estará novamente fechado”, alerta.
Publicada inicialmente no site chileno El Desconcierto, a coluna ganhou grande repercussão ao expor a lógica excludente e parasitária imposta pelos Estados Unidos e da necessidade de termos “um Estado atuante, defensor dos nossos recursos naturais, controlador do mercado e promotor das atividades industriais”. Ao mesmo tempo, propõe Pizarro, “uma política externa independente contra as potências hegemônicas e defensora dos interesses regionais”.
O artigo foi enviado ao HP pelo economista Orlando Caputo Leiva, representante do presidente Salvador Allende (1970-1973) no comitê executivo da Corporação Nacional do Cobre (Codelco), instituição responsável pela gestão da nacionalização das empresas Chuquicamata, El Salvador, El Teniente e Minera Andina.
ROBERTO PIZARRO HOFER
O negócio de livre comércio e TLCs durou 30 anos, com as desigualdades se multiplicando pelo mundo.
Os mercados livres e o Estado mínimo serviram para acumular riquezas nos negócios transnacionais e no capital financeiro e, ao contrário, foram impiedosos com os trabalhadores dos centros e dos países periféricos. A China conseguiu vencer, graças à sua sabedoria milenar.
Novamente o império contra-ataca, mas de outra maneira. A ideologia de Hayek e Friedman não era para sempre, como acenaram economistas e políticos subservientes ao empresariado. Agora se impõe o protecionismo, na tentativa de recuperar a indústria no capitalismo desenvolvido, junto ao seu desespero pelos desafios econômicos e tecnológicos colocados pelo potencial da República Popular da China.
A América Latina, e certamente nosso país, observa com perplexidade esta fase protecionista que o mundo vive e as novas demandas que impõe o capitalismo desenvolvido. Eles nos dizem: “Chega de livre comércio, chega de globalização. Agora o que queremos e diretamente são suas matérias-primas”. Europa, Canadá e Estados Unidos exigem acesso privilegiado à nossa produção de matérias-primas.
Em substituição aos TLCs, o novo instrumento de dominação que começa a ser utilizado são os “Memorandos de Entendimento para Associações Estratégicas de Matérias-Primas”. Se enumera inclusive uma lista de 16 matérias-primas estratégicas” (que inclui lítio e cobre, entre outras) e depois 24 “matérias-primas críticas”.
O presidente da Argentina, Alberto Fernández, acossado pela escassez de divisas, assinou esse memorando com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. O mesmo texto foi deixado para sua assinatura na chancelaria chilena; e, exatamente, o mesmo documento foi enviado pelos governos do Canadá e dos Estados Unidos aos nossos países para sua subscrição.
Esses memorandos são uma explícita tentativa de controle colonial de nossos recursos naturais. E não é apenas uma questão econômica, mas também tem uma importância estratégica incontornável.
“Os países do capitalismo central registram com preocupação o seu recuo industrial face à China e, ao mesmo tempo, o seu notável progresso tecnológico, sobretudo na produção de chips. Por isso o acesso privilegiado ao cobre e principalmente ao lítio é essencial”
“Os países do capitalismo central registram com preocupação o seu recuo industrial face à China e, ao mesmo tempo, o seu notável progresso tecnológico, sobretudo na produção de chips. Por isso o acesso privilegiado ao cobre e principalmente ao lítio é essencial”
Com efeito, no plano econômico, os países do capitalismo central registram com preocupação o seu recuo industrial face à China e, ao mesmo tempo, o seu notável progresso tecnológico, sobretudo na produção de chips, fundamento da quinta geração de redes móveis (5G). Por isso, o acesso privilegiado ao cobre e principalmente ao lítio é essencial.
Os Estados Unidos iniciaram a ofensiva colonialista, arruinando o livre comércio e instalando o protecionismo. E, junto com isso, requer acesso privilegiado aos nossos recursos naturais.
A chefe do Comando Sul dos Estados Unidos, Laura Richardson, militar da ativa, relembrou a Doutrina Monroe: em entrevista ao Atlantic Council, observou que os ricos recursos da América Latina, principalmente o lítio, pertencem aos Estados Unidos.
Preocupada com o fato de que “60% do lítio mundial se encontra no triângulo Argentina, Bolívia e Chile” ( Viral , 23 de janeiro de 2023), sustenta a importância da América Latina para os interesses norte-americanos, “porque está repleta de recursos e me preocupa com a atividade maligna de nossos adversários que dela se aproveitam” (https://www.biobiochile.cl/noticias/internacional/eeuu/2023/03/14/hemos-ignorado-el-patio-trasero-eeuu-preocupado-por-presencia-china-en-el-litio-de-america-latina.shtml).
Esse discurso é complementar à nova política comercial do presidente Biden, que dá por terminado o livre comércio (inclusive os TLCs) e, na mesma linha de Trump, promove o protecionismo, mas ao mesmo tempo visa a captação de matérias-primas de nossos países. “Compraremos produtos estadunidenses para garantir que tudo, do piso de um porta-aviões até o aço das grades de proteção das rodovias sejam feitos nos Estados Unidos”, disse ele. Claro, a exceção são as matérias-primas, que devem ser captadas de nossos países, para evitar que sejam compradas pela China.
A substituição do liberalismo pelo planejamento estatal visa evitar o deslocamento de empresas para terceiros países, assegurar a autossuficiência para um rol de atividades que abrange quase todo o espectro produtivo e manter a vantagem tecnológica.
Os interesses dos Estados Unidos mudaram e, portanto, sua política comercial também mudou. Isso também se estende à Europa e ao Canadá.
Agora, verifica-se que o livre comércio não serve mais para competir nos mercados (como os Estados Unidos impuseram aos nossos países por 30 anos) e, no caso das matérias-primas latino-americanas, é melhor alguma forma de captura direta. E para isso os compromissos contidos nos TLCs são deixados de lado e é dada prioridade aos Memorandos de Entendimento sobre matérias-primas.
“O lítio e o cobre são essenciais para passar de uma matriz produtiva baseada em combustíveis fósseis para uma baseada em energias limpas e sustentáveis”
“O lítio e o cobre são essenciais para passar de uma matriz produtiva baseada em combustíveis fósseis para uma baseada em energias limpas e sustentáveis”
O lítio e o cobre são essenciais para passar de uma matriz produtiva baseada em combustíveis fósseis para uma baseada em energias limpas e sustentáveis. Ambos os minerais são chaves para fabricar baterias recarregáveis de dispositivos móveis, principalmente smartphones e laptops. E, especialmente, para a produção de veículos elétricos, assim como na indústria aeronáutica e médica.
Europa e Canadá não ficam atrás e mostram a mesma preocupação em garantir o abastecimento de matérias-primas. É o que pretende a presidente da Comissão Europeia no seu périplo pela nossa região.
A intervenção de Richardson é consistente com as orientações apontadas por Jack Sullivan, assessor de Segurança Nacional do presidente Biden, que sistematiza a nova política comercial do governo norte-americano.
De acordo com Sullivan, “cortes de impostos, desregulamentação, privatização às custas da ação pública e liberalização” resultaram em fracasso. E acrescenta que também foi um erro “a suposição dominante de que o crescimento baseado no comércio seria um crescimento inclusivo, ou seja, que os ganhos do comércio acabariam sendo amplamente compartilhados entre as nações”. (On Renewing American Economic Leadership, Brookings Institution, 27 abril, 2023).
O questionamento de Sullivan ao neoliberalismo e ao livre comércio não é ingênuo, visa defender os interesses estratégicos de seu país, considerados vulneráveis diante do crescente poderio econômico e tecnológico chinês.
Essa nova ordem que está impondo os Estados Unidos foi instalada por Trump, mas é seguida com entusiasmo pelo presidente Biden. Não se trata apenas de uma nova política econômica, mas de uma nova ordem econômica, política e estratégica que transcende governos. Portanto, a América Latina e o Chile enfrentarão essa nova realidade por décadas.
“Já perdemos 30 anos com uma economia e uma política externa neoliberais, favoráveis ao capital transnacional”
A nova guerra económica, tecnológica e geoestratégica entre as potências hegemônicas não deve fechar as portas ao nosso desenvolvimento. Já perdemos 30 anos com uma economia e uma política externa neoliberais, favoráveis ao capital transnacional. Agora, com as ações coloniais dos países centrais, que buscam monopolizar o acesso às nossas matérias-primas, o acesso ao nosso desenvolvimento econômico estará novamente fechado.
A realidade protecionista que se impõe hoje ao mundo revela os erros da política pública que o atual governo cometeu e que continua cometendo.
De fato, a longa e torpe discussão do TPP11 (com retrocesso do governo) foi completamente inútil quando o livre comércio está em retirada. Por sua vez, a fala do embaixador chileno em Washington, Juan Gabriel Valdés, que propõe entregar lítio aos países de capitalismo desenvolvido, é discutível no atual contexto internacional e sobretudo se queremos promover um novo modelo de desenvolvimento (https://www.eldesconcierto.cl/opinion/2023/04/03/el-litio-ee-uu-y-su-aliado-juan-gabriel-valdes.html).
O Ministério da Economia, a Chancelaria e seus embaixadores nos Estados Unidos, Canadá e Europa devem especificar a posição do governo chileno sobre o novo protecionismo em curso e o que faremos com os TLCs assinados. Ao mesmo tempo, devem se pronunciar sobre os Memorandos de Entendimento que afetam nossas matérias-primas. Paralelamente, uma posição regional terá que ser preparada para a reunião da CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) em julho se quisermos desafiar o novo colonialismo que tenta se impor aos países da América Latina e do Caribe.
Chegou a hora de traçar com clareza o modelo de desenvolvimento que caracterizará o Chile nas próximas décadas. Isso requer um Estado atuante, defensor de nossos recursos naturais, controlador do mercado e promotor das atividades industriais. Ao mesmo tempo, força uma política externa independente contra as potências hegemônicas e defensora dos interesses regionais.