Um negro tem 2,6 vezes mais chance de ser assassinado no Brasil do que as outras pessoas. Na maior parte dos casos de homicídio, a vítima também é jovem. Os dados constam do Atlas da Violência 2021, estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), divulgado nesta terça-feira (31).
A taxa de homicídios por 100 mil habitantes negros no Brasil em 2019 foi de 29,2, enquanto a da soma dos amarelos, brancos e indígenas foi de 11,2.
A análise foi feita com base em registros reunidos pelo Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. Por ter metodologia e abrangência nacional, o banco de dados é historicamente considerado a principal fonte para medir indicadores de violência no país e avaliar o perfil das vítimas.
Como a pesquisa retroage dois anos, os resultados trazidos nesta edição do Atlas são referentes aos dados de 2019. A discrepância entre o risco de morte de negros e brancos vem em um patamar elevado ao menos desde 2008, segundo os dados. Em 2018, por exemplo, o indicador estava em 2,7.
De acordo com a pesquisa, os negros representaram 77% das vítimas de assassinato no país em 2019. Essa prevalência é, historicamente, um dado frequente em estudos sobre a violência no Brasil, o que é preocupante na avaliação dos autores do estudo, porque persiste a cada nova edição do Atlas.
Ainda, em 2019, as mulheres negras representaram 66% do total de mulheres mortas no país, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 4,1, enquanto a taxa entre mulheres não negras foi de 2,5.
O estudo ressalta ainda a queda, em menor ritmo após uma década, da taxa de homicídios entre os negros quando comparada à da soma dos brancos e indígenas.
Entre 2009 e 2019, a taxa geral de homicídio do Brasil caiu 20,3%. Já entre negros, a redução foi de 15,5%, enquanto o recuo entre os não negros foi de 30,5%.
“Se considerarmos ainda os números absolutos do mesmo período, houve um aumento de 1,6% dos homicídios entre negros entre 2009 e 2019, passando de 33.929 vítimas para 34.446 no último ano, e entre não negros, por outro lado, houve redução de 33% no número absoluto de vítimas, passando de 15.249 mortos em 2009 para 10.217 em 2019”, diz o estudo.
“Isso é nosso legado, fruto de uma nação racista, escravocrata, e que relegou a população negra às piores condições de vida, aos piores absurdos do ponto de vista de discriminação, e que se refletem até hoje quando a gente fala dos indicadores de educação, quando a gente fala dos indicadores de mercado de trabalho e que talvez ainda mais visíveis quando a gente está falando dos índices de violência”, afirma Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e coordenadora do Atlas.
MORTES VIOLENTAS
Segundo os dados, o Brasil não sabe a causa de 17 mil mortes violentas em 2019. Elas podem ter sido provocadas por agressões, assassinatos, acidentes ou suicídios, mas entram nas estatísticas como indefinidas e provavelmente puxam os registros de homicídios do país para baixo.
O estudo calculou que os óbitos classificados como “morte violenta por causa indeterminada” (MVCI) sofreram um salto de 12.310 para 16.648 entre os anos de 2018 e 2019, um aumento de 35%.
O crescimento vai na contramão dos homicídios, que caíram 21% no mesmo período, de 57.956 para 45.503. Trata-se do menor número de assassinatos no Brasil desde 1995, início da série histórica, mas o problema nas notificações indica que está subestimado.
Segundo o levantamento, a qualidade dessas informações vinha melhorando há mais de 15 anos, mas sofreu uma piora significativa em 2018 e 2019. Com isso, a parcela de óbitos sem definição sobre o total de mortes por causas externas dobrou de 6% para 12% em dois anos, pior patamar desde 1979.
“Nos países desenvolvidos isso é feito com muito cuidado e a porcentagem é inferior a 1%. Primeiro, por respeito às famílias, que têm o direito de saber como a pessoa morreu, e, segundo, porque é fundamental para fazer um diagnóstico e evitar novas mortes. O nosso termômetro está quebrado”, afirma Daniel Cerqueira, diretor do IJSN e um dos coordenadores do estudo.
A piora aconteceu, diz ele, pela falta de revisão adequada dos estados e, principalmente, do governo federal. Todo ano, um trabalho intenso é feito junto às unidades da federação para qualificar os dados, tentando saber junto às polícias e famílias quais as circunstâncias das mortes.
“Os números de 2019 geralmente seriam divulgados em maio de 2021, mas foram divulgados em janeiro, com muita antecipação e sem os devidos critérios. Ainda mais num ano de pandemia, em que o sistema de saúde ficou totalmente voltado para a Covid, se esperaria um atraso”, afirma Cerqueira.
O Atlas também faz um alerta para a alta recente dos óbitos. Entre as causas, cita o recrudescimento da violência no campo, o aumento das mortes por policiais sem mecanismos de controle efetivos e a ampliação do acesso a armas de fogo pelo governo Bolsonaro.
“Na segurança existe um embate parecido com o da pandemia, entre negacionismo e ciência. Na academia internacional e nacional há um consenso: mais armas, mais crimes. Mas isso tem sido desprezado por uma política irresponsável que vai trazer mais tragédias por décadas, porque essas novas armas vão durar 20, 30 anos”, diz Cerqueira.
MORTES DE INDÍGENAS
Mais de 2 mil indígenas foram assassinados entre 2009 e 2019 no Brasil, segundo dados do Atlas da Violência 2021. Nessa década, a taxa de mortes violentas de indígenas aumentou 21,6%, saindo de 15 por 100 mil indígenas, em 2009, para 18,3, em 2019.
Só em 2019, foram registrados 113 assassinatos e 20 homicídios culposos que, somados a outros casos de violências praticadas contra a pessoa indígena, totalizaram 277 casos em 2019 – o dobro do registrado em 2018.
A taxa também é maior em municípios com terras indígenas, 20,4 por 100 mil habitantes, do que em cidades sem terras indígenas, com 7,7.
“Os dados mostram um agravamento da violência letal contra povos indígenas e, principalmente, em terras indígenas”, diz Samira.
“Os municípios que têm terras indígenas são aqueles que apresentaram um crescimento mais acentuado na última década, o que é fruto, em alguma medida, de invasões, do garimpo ilegal, de uma série de ilícitos que vêm ocorrendo, de exploração ilegal de terras que são territórios tradicionais”, completa Samira Bueno.
VIOLÊNCIA CONTRA LGBTQIA+
O Atlas traz ainda dados sobre violências contra a população LGBTQIA +, mais uma vez chamando a atenção para a falta de informações nesse segmento.
As denúncias ao Disque 100, serviço do governo federal, sofreram uma redução brusca no último ano da análise. Desde 2015 o número de ligações se mantinha entre 1.600 e 2.000 anuais.
Em 2019, caiu à metade, para 833. Por outro lado, os números do do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinam) não indicaram uma queda desse tipo de notificação na prática, no sistema de saúde.
Em 2019, o Brasil registrou 5.330 casos de violência contra homossexuais e bissexuais, o que representa um aumento de 9,8% em comparação com o ano anterior, de acordo com o Atlas da Violência 2021.
Ainda segundo o estudo, com 3.967 casos contabilizados ao longo de 2019, os registros de violência contra trans e travestis aumentaram 5,6% em relação a 2018. Foi a primeira vez ainda que o estudo analisou violência contra dois outros grupos minoritários.
Veja o estudo na íntegra:
https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/8246-atlasdaviolencia2021completo.pdf