Hoje, em homenagem ao Dia da Abolição da Escravatura, publicamos o conto “O negrinho do pastoreio“, o mais famoso do livro “Contos Gauchescos e Lendas do Sul“, de Simões Lopes Neto.
Simões Lopes Neto foi um dos maiores, mais notáveis, escritores brasileiros. Sobre ele, escreveu Nelson Werneck Sodré, em sua “História da Literatura Brasileira“:
“A grande figura do movimento sulino (…) é João Simões Lopes Neto, que oferece a singularidade de ter proporcionado, num acervo literário, como o nosso, em que o revisionismo de valores se processa em torno de pequenos problemas, não alterando em essência a colocação qualitativa dos autores, o caso realmente importante de valorização posterior e justa, com a particularidade de que o motivo principal do relativo obscurecimento a que estava votada a obra do grande regionalista foi o ter vivido sempre na sua província, numa época em que só a capital tinha condições para projetar o nome dos autores.
“Em João Simões Lopes Neto o regionalismo atinge, realmente, um nível insuperado entre nós. Fundindo a linguagem e o assunto, o pelotense liberta-se dos entraves e das deficiências do linguajar. Conhecendo de perto os cenários e os tipos que descreve, sabe trazê-los com vida às páginas de seus contos, embebidos ainda de tudo o que os moldou. Recolhe as suas histórias na tradição oral, sem se tornar um mero coletor de motivos folclóricos. Conserva o sentido histórico que dá relevo às mudanças — uma espécie de terceira dimensão que destaca os traços da realidade objetiva e que fornece o enquadramento social das personagens e dos cenários.
“Simões Lopes Neto acolhe na sua ficção a gente humilde, a gente do povo, o trabalhador do campo e das charqueadas. ‘Ainda aqui, no entanto, é preciso definir os termos — dirá dele um crítico. — Blau Nunes, o herói de Simões Lopes, é o gaúcho pobre, o tropeiro, o peão de estância, o agregado, o índio humilde. Há um claro acento popular em todos os contos, autênticos e espontâneos, que toparemos dificilmente na literatura regionalista ou com veleidades ‘populistas’ dos nossos escritores. Talvez ninguém no Brasil tenha conseguido uma identificação tão profunda com o espírito dos seus pagos, a tal ponto que o próprio João Simões Lopes Neto, o pelotense culto e de família patrícia, inteiramente se apaga na sombra de Blau, o vaqueano’.
“O que interessa ao ficcionista é, assim, as criaturas mais do que a paisagem, o que estava em contraste com o conjunto do movimento, pejado de pitoresco e entravado no linguajar. Conservando-se fiel ao que era peculiar em seu meio, compreendido e admirado por todos os brasileiros. Na sua prosa colorida transparece a vida e, nesta, as relações sociais mais profundas, até mesmo com as suas âncoras históricas. A importância de sua obra, por isso mesmo, não cessará de crescer, e talvez na medida em que o regionalismo vá perdendo, com o passar dos tempos, o que ainda oferece de interessante, apesar de suas deficiências, na medida em que o pós-modernismo lhe proporcionar um conteúdo.”
(Nelson Werneck Sodré, “História da Literatura Brasileira“, Difel, 7ª ed., 1982, pp. 409-410)
É deste grande autor o conto a seguir, bem a propósito do Dia da Abolição, a história de um escravo nos campos gaúchos (C.L.).
O negrinho do pastoreio
SIMÕES LOPES NETO
NAQUELE TEMPO os campos ainda eram abertos, não havia entre eles nem divisas nem cercas; somente nas volteadas se apanhava a gadaria xucra e os veados e as avestruzes corriam sem empecilhos…
Era uma vez um estancieiro, que tinha uma ponta de surrões cheios de onças e meias doblas e mais muita prataria; porém era muito cauíla e muito mau, muito.
Não dava pousada a ninguém, não emprestava um cavalo a um andante; no inverno o fogo da sua casa não fazia brasas; as geadas e o minuano podiam entanguir gente, que a sua porta não se abria; no verão a sombra dos seus umbus só abrigava os cachorros; e ninguém de fora bebia água das suas cacimbas.
Mas também quando tinha serviço na estância, ninguém vinha de vontade dar-lhe um ajutório; e a campeirada folheira não gostava de conchavar-se com ele, porque o homem só dava para comer um churrasco de tourito magro, farinha grossa e erva-caúna e nem um naco de fumo… e tudo, debaixo de tanta somiticaria e choradeira, que parecia que era o seu próprio couro que ele estava lonqueando…
Só para três viventes ele olhava nos olhos: era para o filho, menino cargoso como uma mosca, para um baio cabos-negros, que era o seu parelheiro de confiança, e para um escravo, pequeno ainda, muito bonitinho e preto como carvão e a quem todos chamavam somente o — Negrinho.
A este não deram padrinhos nem nome; por isso o Negrinho se dizia afilhado da Virgem, Senhora Nossa, que é a madrinha de quem não a tem.
Todas as madrugadas o Negrinho galopeava o parelheiro baio; depois conduzia os avios do chimarrão e à tarde sofria os maus tratos do menino, que o judiava e se ria.
***
Um dia depois de muitas negaças, o estancieiro atou carreira com um seu vizinho. Este queria que a parada fosse para os pobres; o outro que não, que não! que a parada devia ser do dono do cavalo que ganhasse. E trataram: o tiro era trinta quadras, a parada, mil onças de ouro.
No dia aprazado, na cancha da carreira havia gente como em festa de santo grande.
Entre os dois parelheiros, a gauchada não sabia se decidir, tão perfeito era e bem lançado cada um dos animais. Do baio era fama que quando corria, corria tanto, que o vento assobiava-lhe nas crinas; tanto, que só se ouvia o barulho, mas não lhe viam as patas baterem no chão… E do mouro era voz que quanto mais cancha, mais agüente e que desde a largada ele ia ser como um laço que se arrebenta…
As parcerias abriram as guaiacas, e aí no mais já se apostavam aperos contra rebanhos e redomões contra lenços.
— Pelo baio! Luz e doble!…
— Pelo mouro! Doble e luz!…
Os corredores fizeram as suas partidas à vontade e depois as obrigadas; e quando foi na última, fizeram ambos a sua senha e se convidaram. E amagando o corpo, de rebenque no ar, largaram, os parelheiros meneando cascos, que parecia uma tormenta…
— Empate! Empate! — gritavam os aficionados ao longo da cancha por onde passava a parelha veloz, compassada como numa colhera.
— Valha-me a Virgem madrinha, Nossa Senhora! — gemia o Negrinho. — Se o sete-léguas perde, o meu senhor me mata! hip! hip! hip!…
E baixava o rebenque, cobrindo a marca do baio.
— Se o corta-vento ganhar é só para os pobres!… retrucava o outro corredor. Hip! hip!
E cerrava as esporas no mouro.
Mas os fletes corriam, compassados como numa colhera, Quando foi na última quadra, o mouro vinha arrematado e o baio vinha aos tirões… mas sempre juntos, sempre emparelhados.
E a duas braças da raia, quase em cima do laço, o baio assentou de supetão, pôs-se em pé e fez uma caravolta, de modo que deu ao mouro tempo mais que preciso para passar, ganhando de luz aberta! E o Negrinho, de em pêlo, agarrou-se como um ginetaço.
— Foi mau jogo! — gritava o estancieiro.
— Mau jogo! — secundavam os outros da sua parceria.
A gauchada estava dividida no julgamento da carreira; mais de um torena coçou o punho da adaga, mais de um desapresilhou a pistola, mais de um virou as esporas para o peito do pé… Mas o juiz, que era um velho do tempo da guerra de Sepé-Tíaraju, era um juiz macanudo, que já tinha visto muito mundo. Abanando a cabeça branca sentenciou, para todos ouvirem:
— Foi na lei! A carreira é de parada morta; perdeu o cavalo baio, ganhou o cavalo mouro, quem perdeu, que pague. Eu perdi cem gateadas; quem as ganhou venha buscá-las. Foi na lei!
Não havia o que alegar. Despeitado e furioso, o estancieiro pagou a parada, à vista de todos, atirando as mil onças de ouro sobre o poncho do seu contrário, estendido no chão.
E foi um alegrão por aqueles pagos, porque logo o ganhador mandou distribuir tambeiros e leiteiras, côvados de baeta e haguais e deu o resto, de mota, ao pobrerio. Depois as carreiras seguiram com os changueiritos que havia.
***
O estancieiro retirou-se para a sua casa e veio pensando, pensando calado, em todo o caminho. A cara dele vinha lisa, mas o coração vinha corcoveando como touro de banhado laçado a meia espalda… O trompaço das mil onças tinha-lhe arrebentado a alma.
E conforme apeou-se, da mesma vereda mandou amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho.
Na madrugada saiu com ele e quando chegou no alto da coxilha falou assim:
— Trinta quadras tinha a cancha da carreira que tu perdeste: trinta dias ficarás aqui pastoreando a minha tropilha de trinta tordilhos negros… O baio fica de piquete na soga e tu ficarás de estaca!
O Negrinho começou a chorar, enquanto os cavalos iam pastando.
Veio o sol, veio o vento, veio a chuva, veio a noite. O Negrinho, varado de fome e já sem força nas mãos, enleou a soga num pulso e deitou-se encostado a um cupim.
Vieram então as corujas e fizeram roda, voando, paradas no ar, e todas olhavam-no com os olhos reluzentes, amarelos na escuridão. E uma piou e todas piaram, como rindo-se dele, paradas no ar, sem barulho nas asas.
O Negrinho tremia, de medo… porém de repente pensou na sua madrinha Nossa Senhora e sossegou e dormiu.
E dormiu. Era já tarde da noite, iam passando as estrelas; o Cruzeiro apareceu, subiu e passou; passaram as Três-Marias: a estrela-d’alva subiu… Então vieram os guaraxains ladrões e farejaram o Negrinho e cortaram a guasca da soga. O baio sentindo-se solto rufou a galope, e toda a tropilha com ele, escaramuçando no escuro e desguaritando-se nas canhadas.
O tropel acordou o Negrinho; os guaraxains fugiram, dando berros de escárnio.
Os galos estavam cantando, mas nem o céu nem as barras do dia se enxergava: era a cerração que tapava tudo.
E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou.
***
O menino maleva foi lá e veio dizer ao pai que os cavalos não estavam. O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho.E quando era já noite fechada ordenou-lhe que fosse campear o perdido. Rengueando, chorando e gemendo, o Negrinho pensou na sua madrinha Nossa Senhora e foi ao oratório da casa, tomou o coto de vela acesa em frente da imagem e saiu para o campo.
Por coxilhas e canhadas, na beira dos lagoões, nos paradeiros e nas restingas, por onde o Negrinho ia passando, a vela benta ia pingando cera no chão; e de cada pingo nascia uma nova luz, e já eram tantas que clareavam tudo. O gado ficou deitado, os touros não escarvaram a terra e as manadas xucras não dispararam… Quando os galos estavam cantando, como na véspera, os cavalos relincharam todos juntos. O Negrinho montou no baio e tocou por diante a tropilha, até a coxilha que o seu senhor lhe marcara.
E assim o Negrinho achou o pastoreio. E se riu…
Gemendo, gemendo, o Negrinho deitou-se encostado ao cupim e no mesmo instante apagaram-se as luzes todas; e sonhando com a Virgem, sua madrinha, o Negrinho dormiu. E não apareceram nem as corujas agoureiras nem os guaraxains ladrões; porém pior do que os bichos maus, ao clarear o dia veio o menino, filho do estancieiro e enxotou os cavalos, que se dispersaram, disparando campo fora, retouçando e desguaritando-se nas canhadas.
O tropel acordou o Negrinho e o menino maleva foi dizer ao seu pai que os cavalos não estavam lá…
E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou…
***
O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos, a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho… dar-lhe até ele não mais chorar nem bulir, com as carnes recortadas, o sangue vivo escorrendo do corpo… O Negrinho chamou pela Virgem sua madrinha e Senhora Nossa, deu um suspiro triste, que chorou no ar como uma música, e pareceu que morreu…
E como já era noite e para não gastar a enxada em fazer uma cova, o estancieiro mandou atirar o corpo do Negrinho na panela de um formigueiro, que era para as formigas devorarem-lhe a carne e o sangue e os ossos… E assanhou bem as formigas, e quando elas, raivosas, cobriam todo o corpo do Negrinho e começaram a trincá-la é que então ele se foi embora, sem olhar para trás.
Nessa noite o estancieiro sonhou que ele era ele mesmo, mil vezes e que tinha mil filhos e mil negrinhos, mil cavalos baios e mil vezes mil onças de ouro… e que tudo isto cabia folgado dentro de um formigueiro pequeno…
Caiu a serenada silenciosa e molhou os pastos, as asas dos pássaros e a casca das frutas.
Passou a noite de Deus e veio a manhã e o sol encoberto. E três dias houve cerração forte, e três noites o estancieiro teve o mesmo sonho.
A peonada bateu o campo, porém ninguém achou a tropilha e nem rastro.
***
Então o senhor foi ao formigueiro, para ver o que restava do corpo do escravo.
Qual não foi o seu grande espanto, quando chegado perto, viu na boca do formigueiro o Negrinho de pé, com a pele lisa, perfeita, sacudindo de si as formigas que o cobriam ainda!… O Negrinho, de pé, e ali ao lado, o cavalo baio e ali junto a tropilha dos trinta tordilhos… e fazendo-lhe frente, de guarda ao mesquinho, o estancieiro viu a madrinha dos que não a têm, viu a Virgem, Nossa Senhora, tão serena, pousada na terra, mas mostrando que estava no céu… Quando tal viu, o senhor caiu de joelhos diante do escravo.
E o Negrinho, sarado e risonho, pulando de em pêlo e sem rédeas; no baio, chupou o beiço e tocou a tropilha a galope.
E assim o Negrinho pela última vez achou o pastoreio. E não chorou, e nem se riu.
***
Correu no vizindário a nova do fadário e da triste morte do Negrinho, devorado na
panela do formigueiro.
Porém logo, de perto e de longe, de todos os rumos do vento, começaram a vir notícias de um caso que parecia um milagre novo…
E era, que os posteiros e os andantes, os que dormiam sob as palhas dos ranchos e os que dormiam na cama das macegas, os chasques que cortavam por atalhos e os tropeiros que vinham pelas estradas, mascates e carreteiros, todos davam notícia — da mesma hora — de ter visto passar, como levada em pastoreio, uma tropilha de tordilhos, tocada por um Negrinho, gineteando de em pêlo, em um cavalo baio!…
Então, muitos acenderam velas e rezaram o Pai-nosso pela alma do judiado. Daí por diante, quando qualquer cristão perdia uma cousa, o que fosse, pela noite velha o Negrinho campeava e achava, mas só entregava a quem acendesse uma vela, cuja luz ele levava para pagar a do altar da sua madrinha, a Virgem, Nossa Senhora, que o remiu e salvou e deu-lhe uma tropilha, que ele conduz e pastoreia, sem ninguém ver.
***
Todos os anos, durante três dias, o Negrinho, desaparece: está metido em algum formigueiro grande, fazendo visita às formigas, suas amigas; a sua tropilha esparrama-se, e um aqui, outro por lá, os seus cavalos retouçam nas manadas das estâncias. Mas ao nascer do sol do terceiro dia, o baio relincha perto do seu ginete; o Negrinho monta-o e vai fazer a sua recolhida; é quando nas estâncias acontece a disparada das cavalhadas e a gente olha, olha, e não vê ninguém, nem na ponta, nem na culatra.
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Desde então e ainda hoje, conduzindo o seu pastoreio, o Negrinho, sarado e risonho, cruza os campos, corta os macegais, bandeia as restingas, desponta os banhados, vara os arroios, sobe as coxilhas e desce às canhadas.
O Negrinho anda sempre à procura dos objetos perdidos, pondo-os de jeito a serem achados pelos seus donos, quando estes acendem um coto de vela, cuja luz ele leva para o altar da Virgem Senhora Nossa, madrinha dos que não a têm.
Quem perder suas prendas no campo, guarde esperança: junto de algum moirão ou sob os ramos das árvores, acenda uma vela para o Negrinho do pastoreio e vá lhe dizendo — Foi por aí que eu perdi… Foi por aí que eu perdi… Foi por aí que eu perdi!…
Se ele não achar… ninguém mais.
Sou do Recife (PE) e conheci essa história na escola, durante a infância. Mas nunca tinha lido na integra o conto de Simões Lopes Neto. É realmente uma obra de estilo refinado e rica em referências da cultura gaúcha. Agradeço pela publicação.