“Para se igualar a Lula 1.0 e 2.0, seria necessário que o Brasil crescesse 5% em 2025 e 2026. Mas, para conseguir tal feito o País deveria se livrar das amarras do arcabouço fiscal e desta política monetária que nada mais faz senão atender aos interesses dos banqueiros”, argumenta o economista
PAULO KLIASS*
Desde que o IBGE divulgou as informações a respeito do desempenho do Produto Interno Bruto (PIB) da economia brasileira relativamente ao primeiro semestre deste ano, o debate a respeito da orientação estratégica da política econômica do governo Lula voltou a ganhar cores novas. Afinal, o resultado final obtido para 2023 ficou bastante acima das expectativas criadas pela nata do financismo. Essa elite do povo da Faria Lima apostava que o terceiro mandato iria fracassar e cravava um crescimento do PB de apenas 0,8%. No entanto, as contas nacionais apuradas pelo órgão responsável concluíram por uma elevação de 2,9% em relação a 2022.
Na verdade, tratava-se de mais uma dentre as inúmeras falhas que podem ser observadas nas projeções apontadas pela pesquisa semanal Focus. Esta é uma consulta super seletiva efetuada a cada 7 dias pelo Banco Central (BC) junto a pouco mais de 160 pessoas da alta direção do sistema financeiro. Por meio de tal enquete, por exemplo, o órgão estabelece as bases para definição do patamar da taxa referencial de juros. Ocorre que os resultados apresentados são muito mais definidos pela vontade política e pela aposta especulativa do que propriamente por meio da busca de respostas para a complexidade da realidade social e econômica do País.
O fato é que a dinâmica da economia no ano passado superou – e muito – os desejos da banca e de seus admiradores nos espaços de formação da opinião pública. Como esse pessoal não está muito habituado a reconhecer os seus próprios equívocos, ao longo do correr dos meses foi sendo montada uma operação para justificar os números que deveriam surpreendê-los. O novo argumento vinha na esteira de que o crescimento maior do que o imaginado se deveu, na verdade, à política de austeridade da política fiscal levada a cabo por Haddad no Ministério da Fazenda e pela política monetária arrochada implementada pelo COPOM, sob o comando do indicado por Paulo Guedes e Bolsonaro no BC.
AUSTERIDADE NÃO AJUDA
Assim, para esse pessoal nada significou o volume extra de recursos acrescentados ao Orçamento da União graças à aprovação da PEC da Transição, em um período político complexo entre os resultados conhecidos das eleições no final de outubro de 2022 e a posse de Lula em 1º de janeiro de 2023. O fato é que por meio de tal negociação foi possível ao novo governo assegurar rubricas mínimas na peça orçamentária para políticas públicas relevantes, como saúde, previdência social, educação, assistência social e outras. Com isso, foi possível também levar em frente a promessa de valorização efetivado do salário mínimo, com ganhos reais acima da mera reposição inflacionária. Esse conjunto de fatores assegurou o crescimento da chamada “demanda agregada” e permitiu o aumento do conjunto das atividades econômicas acima do projetado pelos encastelados do oligopólio privado.
Isso significa dizer que a surpresa positiva do PIB de 2023 deu-se justamente apesar da austeridade fiscal e não por conta dela. O Novo Arcabouço Fiscal só foi aprovado no segundo semestre e não teve influência direta no crescimento do Produto ano passado. A insistência quase obsessiva de Haddad com o tema da austeridade, porém, fez com que fossem mantidos critérios absurdos, como a meta de zerar o déficit primário naquele exercício. Em razão disso, o crescimento ficou bem abaixo do potencial que existia, uma vez que as despesas públicas e os investimentos estatais foram explicitamente reduzidos pelo novo governo.
Pelo lado da política monetária, a manutenção da SELIC nas alturas e a falta de ação do BC no controle dos “spreads” praticados pelos bancos e pelas demais instituições financeiras também contribuíram para segurar bastante o ritmo de crescimento das atividades econômicas de forma geral. Com a manutenção do incentivo ao processo de financeirização da economia, não houve estímulo mais expressivo à retomada do volume tão necessário na esfera do setor real da economia. A elevada rentabilidade na dimensão financeira compromete sobremaneira o gasto não primário por conta da remuneração do estoque de endividamento público e inviabiliza a retomada de projetos de ampliação da capacidade produtiva instalada.
POTENCIAL DE CRESCIMENTO É MUITO MAIOR
Pois, agora, debate semelhante ganha corpo no que se refere às estimativas para o PIB de 2024. Novamente os dados oficiais apurados para o primeiro semestre e as projeções para o conjunto do exercício superam as expectativas da turma do financismo. O IBGE aponta um crescimento para o período de janeiro a junho da ordem de 2,9% em relação ao mesmo período do ano anterior. Tal informação permite considerar a possibilidade de que o Produto alcance mesmo algo próximo a 3% novamente. Aliás, a própria pesquisa Focus se viu obrigada a reconhecer tal fato e já elevou rapidamente sua projeção para 2,68% em boletim mais recente.
A novidade para a conjuntura atual é a tentativa da própria equipe econômica em tecer autoelogios à rigidez da política fiscal para justificar outro crescimento do PIB. Alguns apelam para a “boa sorte” que o presidente Lula costuma carregar em suas jornadas à frente da Presidência da República, outros saúdam a suposta seriedade (sic) de Roberto Campos Neto na manutenção da segunda maior taxa real de juros do planeta. Tudo se passa como se a receita da ortodoxia neoliberal estivesse na base de tal sucesso. No entanto, mais uma vez, ocorre exatamente o oposto. Estamos em 2024 diante de um cenário positivo de crescimento do PIB apesar da rigidez da política fiscal e da política monetária.
Os setores do grande capital percebem o espaço existente para a expansão de suas atividades e reconhecem a importância de medidas que estimulam o crescimento da demanda e, por conseguinte, uma elevação do consumo por parte da maioria da população. As grandes multinacionais da indústria automobilística, por exemplo, não estão se dirigindo para cá com investimentos bilionários apenas por conta do compromisso quase dogmático de Haddad com o arcabouço fiscal ou por conta do patamar elevado em que as taxas de juros estão fixadas. O aumento da oferta de postos no mercado de trabalho e a redução dos níveis oficiais de desemprego tampouco se devem à rigidez da agenda conservadora da equipe econômica. Aliás, muito pelo contrário, o que o Brasil poderia estar vivendo é uma etapa de níveis de crescimento das atividades muito mais expressivos, caso não fosse a sanha da tesoura nos gastos públicos e os obstáculos impostos pelo extraordinariamente elevado custo financeiro de novos empreendimentos de forma geral.
Lula afirmou durante sua campanha eleitoral de 2022 que só havia aceito a incumbência de disputar um terceiro mandato pois gostaria de fazer mais e melhor do que havia realizado ao longo de seus dois primeiros, entre 2003 e 2010. Ocorre que justamente ao longo deste período a média de crescimento registrou 3,9% para os oito anos. Ou seja, para se igualar a Lula 1.0 e 2.0, seria necessário que o Brasil crescesse 5% em 2025 e 2026. Mas, para conseguir tal feito o País deveria se livrar das amarras do arcabouço fiscal e desta política monetária que nada mais faz senão atender aos interesses dos banqueiros.
PROJETO DE DESENVOLVIMENTO REQUER O FIM DO ARCABOUÇO FISCAL
Por outro lado, caso queiramos estabelecer alguma comparação com o que ocorreu com o resto mundo no último triênio, o gráfico a seguir é bastante elucidador do potencial desperdiçado. Seja quando cotejado com a média de crescimento mundial, seja com a média dos países em desenvolvimento ou mesmo com as nações da América Latina, o desempenho brasileiro sempre esteve abaixo.
Crescimento PIB – média 2021/2023 – % anual
Fonte: Banco Mundial
É importante registrar que o surgimento de informações positivas para o governo na esfera da economia apresenta um sério risco de acomodação, no sentido de que sejam louvadas as inciativas da austeridade e da ortodoxia neoliberal que ainda imperam nas áreas da política econômica da Esplanada. É até compreensível que Lula se sinta mais confortável quanto à sua popularidade conjuntural com os dados mais recentes a respeito do aumento do PIB e da queda no desemprego. No entanto, é fundamental que ele também seja alertado quanto aos rumos estratégicos de seu governo e do Brasil. Até o presente momento, estamos muito distantes do rumo da retomada de um projeto nacional de desenvolvimento econômico e social, com seus aspectos de redução das desigualdades e preocupação com a sustentabilidade.
* Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.