“Como o avião de caça ataca, com metralhadora, de baixo para cima, eu vindo baixinho ele não tem espaço para me atacar, senão ele bate”, explicou
Quem primeiro deu a notícia da última viagem do Comandante Mello Bastos, ocorrida na última quinta-feira (30), foi a jornalista Ana Helena Tavares.
“Faleceu na última quinta-feira, 30 de maio, aos 101 anos, Paulo de Mello Bastos, conhecido como comandante Mello Bastos. Sindicalista destacado nas décadas de 1950 e 60, piloto habilidoso e militar legalista”, disse ela.
Em 1964, ele era uma das lideranças mais visadas pelos golpistas. Foi preso e cassado pelo Ato Institucional Nº 1 e obrigado a se exilar.
O piloto, que foi da FAB e depois foi para a Varig, foi quem salvou Jango de um ataque preparado por golpistas já em 1961, quando voltava da China.
Mello Bastos era nacionalista e apoiador das reformas de base, foi também um dos líderes do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), entidade formada em 1962 e fechada em 1964.
O Comando Geral foi uma das entidades defensoras do plebiscito que, em 1963, restabeleceu o presidencialismo. Naquele período, reivindicava “contenção dos preços dos gêneros de primeira necessidade e medidas concretas contra a sonegação”, respeitos aos direitos adquiridos dos trabalhadores, reforma tributária, direito de greve, nacionalização de empresas estrangeiras que atuavam em “setores fundamentais” e regulamentação da lei de remessa de lucros, entre outros itens.
A entidade nunca foi reconhecida formalmente, mas teve intensa atuação política na época. Entre seus dirigentes, além de Bastos, estavam Dante Pelacani, Osvaldo Pacheco, Batistinha, Clodsmidt Riani, Hercules Correa e Raphael Martinelli.
No ano em que foi demitido da Varig, em 1963, rodoviários, aeronautas e navios petroleiros, deflagraram, em solidariedade, uma das maiores greves dos transportes que esse país já viu. O movimento foi batizado de greve Mello Bastos.
O então ministro do Trabalho, Almino Affonso, divulgou nota lembrando que ele tinha direito a estabilidade, mas foi interpelado por João Goulart. Discutem, e o ministro pede demissão, que não foi aceita. A crise acaba com um telefonema do próprio presidente para o dono da companhia aérea, Ruben Berta.
Mello Bastos recorda, em um de seus livros, que a última reunião do “secretariado político” do CGT ocorreu na noite de 1º de abril de 1964, “na casa de um ferroviário, em Cascadura”, bairro da zona norte carioca. Dez dias depois, ele decidiu asilar-se na embaixada do Uruguai.
O voo histórico
Em 1961, já como tenente-coronel-aviador reformado e piloto da Varig, foi Mello Bastos que conseguiu fazer com que, após a renúncia de Jânio Quadros, o então vice-presidente João Goulart (que voltava da China) pousasse em segurança em Porto Alegre para assumir a presidência.
“Jango estava na China, voltou por Paris e Nova York, onde conferenciou com Kennedy. E, em lugar de fazer Nova York – Rio de Janeiro, como normalmente se fazia, ele veio pelo Pacífico. E chegou a Buenos Aires”, diz o comandante.
“Quando eu estava embarcando para Porto Alegre tinham me dito: ‘Você tenha na cabeça que existe uma operação, um plano, para não deixar o Jango sobrevoar o território nacional´”, relatou Mello Bastos.
Para não ser interceptado pelos caças e escapar do possível ataque, ele voou em baixa altitude.
O avião estava ameaçado de ser abatido por caças militares que queriam dar o golpe já naquele ano – era a “Operação Mosquito”. No livro A caixa-preta do golpe de 64 (editora Família Bastos, 2006), ele dá detalhes sobre a viagem.
“Eu era comandante de avião a jato e estava pilotando um Caravele, beleza de avião. Então, fui buscá-lo. Fiz um plano. Em vez de vir a 40 mil pés, 13 mil metros, eu vim a 300 pés, infringindo as normas. Porque, como o avião de caça ataca, com metralhadora, de baixo para cima, eu vindo baixinho ele não tem espaço para me atacar, senão ele bate”, disse.
Tentativa de prisão
Ele conta também que queriam prendê-lo quando chegou. Não se intimidou com a situação. “Jango ficou em Porto Alegre e, naquela mesma noite, eu fiz um voo para Natal. Pousei em São Paulo. Estava tudo revoltado lá… Mandaram me prender. Muito embora eu estivesse na reserva (como Coronel da Aeronáutica), o cara que queria me prender tinha dois anos atrás de mim na antiguidade (patente inferior).”
“Então, eu disse: Mudou agora, é?! Onde é que já se viu?! Sou mais antigo que você e você vai me prender?! Me dá essa pistola aí, eu disse. E ele: ‘Ah, não vou lhe prender… É que querem falar com você lá dentro’. Fui… Entrei lá… Todos os oficiais numa sala. Poxa, eu tinha trazido o presidente da República e eu sabia de tudo, né…”
Ele fez então um relato do que disse aos oficiais que queriam prendê-lo. “Em determinadas horas, eu sou meio de teatro… Entrei acenando e dizendo: boa noite, boa noite, pode ficar todo mundo descansadinho, podem voltar para casa, porque o presidente da República, Dr. João Goulart, eu já trouxe, deixei em Porto Alegre para ele tomar um banhozinho, mudar de roupa para assumir a presidência”. Jango acabou assumindo.
Encontro com Getúlio
O comandante também conta outros episódios como um encontro com Getúlio Vargas em São Borja no final dos anos 1940, com uma comitiva, para pedir sua candidatura à Presidência e defender a criação de Petrobras, que surgiria em 1953.
Em uma de suas entrevistas ele relata emocionado o episódio mais dramático vivido pelo povo brasileiro, o suicídio de Getúlio. “Ele havia chamado os generais para o Catete, para discutir a situação do Brasil perante o mundo, as conspirações, os golpes… Só um, o Brigadeiro Epaminondas, ministro da Aeronáutica, se definiu a favor de Getúlio. Os outros ficaram calados. Disse Getúlio: ‘Já que os senhores não se decidem, decido eu’. Saiu da reunião, subiu para o quarto, deu um tiro no coração e morreu.”
Volta do exílio
Mello Bastos voltou do exílio em 1967. Estava clandestino e era considerado morto. Primeiro foi para São Paulo, em seguida para o Rio de Janeiro: “Eu não podia sair de casa. Mas tinha amigos importantes que me diziam: ‘você tem que colocar a cara de fora!’ Foi o que eu fiz… Vendi meu carro, um fusca vagabundo, e comprei um táxi. Trabalhei de taxista. Saía cedinho de casa e nem saía do carro para comer.”
Em março de 2006, o piloto e militar deu um longo depoimento à Comissão de Anistia, durante o qual se emocionou várias vezes, vendo a filha Solange, ela também ex-presa política e exilada no Chile, e ainda mais quando lembrou que sua mulher, Edelena, “sustentou a família toda com o salário de professora, enquanto eu estava no Uruguai, impedido de trabalhar”.
“Até um dia que me prenderam. Perguntei: ‘por ordem de quem?’ Responderam: ‘do chefe de polícia’. E eu: ‘Por quê?’ E eles: ‘ah, comandante! Nós sabemos de tudo… O senhor veio do Uruguai, pousou no Galeão, depois foi para a Tchecoslováquia, passou uma temporada lá, voltou para o Galeão de novo e agora está aqui na clandestinidade’. Digo: ‘meus parabéns! Não foi nada disso!’ Já viu que os caras estavam por fora, né…”
“Aí me levaram para o DOPs. Num regime ditatorial, não fazia diferença eu ser coronel… Quiseram que eu fizesse uma declaração de bens… Depois, pediram para eu fazer uma declaração sobre como voltei para o Brasil, como cruzei a fronteira, quem me trouxe… Menti. A verdade é que voltei de ônibus, com identidade falsa, etc…. ”
Como narra em seu livro “Bastidores da Anistia”, Mello Bastos ajudou a construir a Lei de Anistia. “Fui para Brasília (meados da década de 70). Eu era representante de nomes como Oscar Niemeyer e minha missão era iniciar uma campanha de denúncias da ditadura no exterior. Um trabalho diário. O então 1º secretário da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), Henrique Cordeiro, um sujeito fantástico, era quem coordenava essa campanha.”
“Como era feito isso? Nós enviávamos para outros países (principalmente para a Europa) denúncias sobre as barbaridades que a ditadura estava fazendo aqui. Essas denúncias eram escritas e organizadas em envelopes, uns 15 ou 20 de uma vez (não podiam ser muitos para não dar na vista). E eu colocava no Correio. A imprensa europeia quase sempre publicava. Era difícil para o governo brasileiro dizer que as denúncias eram falsas. Foi um processo lento, uma lei negociada. Mas a minha tarefa eu cumpri”, disse o piloto.
Só o que temos a dizer é “tenha um bom voo, comandante, e obrigado!”
S.C.