Servidores do órgão foram perseguidos pelo governo Bolsonaro após denúncia de que Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz desviaram R$ 6,1 bilhões da Assembleia Legislativa do Rio, no esquema conhecido como rachadinha
Depois de dominada, a Receita Federal impôs um sigilo de 100 anos no processo que descreve a ação do órgão federal em favor de Flávio Bolsonaro com o objetivo de anular a origem do caso das “rachadinhas”.
A perseguição aos servidores da Receita envolveu até mesmo reuniões da defesa de Flávio no Planalto e intervenção da Abin (Agência Brasileira de Inteligência).
Os advogados de Flávio Bolsonaro e o próprio senador reuniram-se três vezes com integrantes da Receita Federal em meados do ano de 2020. As duas primeiras reuniões foram oficiais, ou seja, estavam na agenda. A terceira, com a presença de Flávio, foi uma reunião secreta, não registrada na agenda oficial.
As informações estavam sob sigilo até agora e só foram obtidas por meio do acionamento da Lei de Acesso à Informação. Segundo o gabinete da Receita, as reuniões foram em 26 de agosto, 4 de setembro e 17 de setembro de 2020. A primeira reunião, em 26 de agosto, teve a presença das advogadas do senador, Luciana Pires e Juliana Bierrenbach. Em 4 de setembro, compareceu apenas Juliana Bierrenbach e, em 17 de setembro, participaram Flávio Bolsonaro e Luciana Pires.
Um dia antes da primeira reunião, as advogadas de Flávio Bolsonaro se reuniram com seu pai, Jair Bolsonaro. Estavam presentes, na ocasião, Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, e Alexandre Ramagem, diretor da Agência Brasileira de Informação (Abin). O encontro aconteceu no gabinete presidencial.
A reunião serviu para apresentar documentos que, na visão deles, provariam a existência de uma suposta “organização criminosa” instalada na Receita Federal. Com isso, eles criariam a narrativa de que Flávio Bolsonaro teve o seu sigilo fiscal quebrado ilegalmente pela Receita. O Planalto pretendia usar essa “acusação” para anular a investigação do caso Queiroz.
A Receita mobilizou por quatro meses uma equipe de cinco servidores para tentar confirmar a tese de defesa do senador, segundo a qual ele teria tido seus dados fiscais acessados e repassados de forma ilegal ao Coaf. O objetivo era reunir provas para anular a origem das investigações que culminaram na acusação contra o senador de desviar R$ 6,1 milhões de recursos públicos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
A tese, segundo reportagem da Folha, consistia em que servidores da Receita no Rio de Janeiro haviam vasculhado de forma ilegal os dados de Flávio e de familiares e, a partir daí, repassado informações ao Coaf, órgão responsável pelo relatório de inteligência enviado ao Ministério Público do Rio e que deu origem à investigação das “rachadinhas” contra o filho do presidente e ex-assessores.
A conclusão da comissão formada foi de que a acusação dos auditores não tinha resultado em nenhuma prova de ato ilegal pela corregedoria. Ela apontou que os dados do relatório de inteligência do Coaf não tinham nenhuma informação estranha àquele órgão e que todo e qualquer acesso aos sistemas e bancos de dados fiscais possuem registros de quem efetuou e de quando foi realizado.
A Receita justifica o sigilo de 100 anos ao processo aberto pela defesa de Flávio para perseguir servidores do órgão, afirmando que os documentos possuem informações pessoais, motivo pelo qual o acesso está restrito a agentes públicos e aos envolvidos no processo. O fisco afirma que, como regra, a restrição de publicidade tem prazo máximo de 100 anos, como previsto na Lei de Acesso à Informação.
Os documentos, que agora estão em sigilo, já haviam sido liberados em fevereiro mediante acionamento da lei de acesso à informação. Depois, em julho, houve uma mudança de posição e foi negado o acesso aos mesmos documentos. Em recurso feito após a última negativa, a Receita não explicou a razão da mudança de entendimento.
HISTÓRICO DO CASO FLAVIO/QUEIROZ
O primeiro relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) sobre o caso apontou a existência de operações bancárias suspeitas de 74 servidores e ex-servidores da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).
O Coaf detectou uma movimentação suspeita de R$ 1,2 milhão na conta de Fabrício Queiroz entre 2015 e 2016. Foi descoberta ainda, na mesma investigação, um depósito de R$ 24 mil na conta de Michelle Bolsonaro, primeira dama do país.
Com o desenrolar das investigações e a quebra de sigilos bancários, descobriu-se que Fabrício Queiroz depositou 21 cheques na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, no valor de R$ 72 mil, e que sua mulher, Márcia Oliveira, depositou mais R$ 17 mil, perfazendo um total de R$ 89 mil.
Além disso, o Coaf observou que nove funcionários de Flávio Bolsonaro faziam depósitos regulares na conta de Fabrício Queiroz, inclusive sua filha, Nathalia Queiroz, que, apesar de morar no Rio, estava lotada no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro. O Coaf achou também um depósito de R$ 84 mil feito por sua filha, Nathalia, na conta do pai.
Um outro relatório do Coaf mostrou que Queiroz não movimentou, em sua conta, apenas R$ 1,2 milhão entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017. Na verdade, Queiroz movimentou R$ 7 milhões. Nos dois anos anteriores a janeiro de 2016, Queiroz movimentou R$ 5,8 milhões, o que significa uma média de R$ 2 milhões e 300 mil por ano, entre 2014 e 2017, sem renda ou patrimônio que expliquem o fenômeno.
No caso envolvendo Nathalia Queiroz é importante um pequeno parêntese. Ela recebia um salário de cerca de R$ 10 mil do gabinete de Jair Bolsonaro, em Brasília, como assessora parlamentar do gabinete. Tinha uma carga horária de 40 horas semanais. No entanto, ela nem residia em Brasília. Era personal trainer e trabalhava normalmente no Rio de Janeiro.
Vídeos e fotos de suas redes sociais mostraram Nath, como ela era conhecida em seu meio, atendendo seus clientes – alguns, inclusive, artistas famosos – em horários comerciais. Ela tentou apagar tudo da internet, mas já era tarde.
Ou seja, Nath era lotada e recebia pelo gabinete de Jair Bolsonaro, mas não trabalhava em Brasília. Nathalia Queiroz recebeu R$ 250 mil da Câmara dos Deputados (R$ 225 mil em salários e R$ 25 mil em auxílios), entre dezembro de 2016 e agosto de 2018, sem trabalhar na função de assessora legislativa. Seus clientes no Rio de Janeiro nem sabiam que era lotada na Câmara dos Deputados, na capital federal.
O gabinete de Jair Bolsonaro, numa afronta aos fatos, atestou frequência de 40 horas semanais de “ex- assessora”. Registros da Câmara dos Deputados mostram que Nathalia Queiroz não teve nenhuma falta sem justificativa e nem tirou licença durante os quase dois anos em que trabalhou para Jair Bolsonaro em Brasília. Pelos registros do gabinete de Bolsonaro, ela fazia mágica: atendia seus clientes no Rio diariamente e batia o ponto em Brasília.
Nathalia recebia pelo gabinete de Flávio Bolsonaro desde os 18 anos. Quando foi exonerada, ela foi substituída pela irmã, Evelyn Queiroz. Sua mãe também estava lotada no gabinete de Flávio Bolsonaro. Uma semana depois de sua exoneração na Alerj, Nath aparaceu lotada no gabinete de Jair Bolsonaro em Brasília. Depois apareceram também pessoas ligadas a milícias lotadas no gabinete de Flávio Bolsonaro.
O Ministério Público do Rio de Janeiro deu prosseguimento às investigações do esquema de lavagem de dinheiro do gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro e descobriu que o chefe da milícia de Rio das Pedras, na zona oeste do Rio de Janeiro, o ex-PM Adriano Magalhães da Nóbrega, ficava com parte dos valores arrecadados através de “rachadinha” no gabinete do então deputado.
De acordo com o Gaecc (Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção), Adriano Nóbrega fez contato com a então esposa, Danielle Mendonça, por Whatsapp no dia 29 de dezembro de 2018 – período no qual já estava foragido e com a investigação do Caso Queiroz já em curso.
MILICIANO RECEBIA RECURSOS DO GABINETE VIA ESPOSA
Queiroz demonstrou preocupação com a manutenção de Danielle Mendonça como funcionária fantasma na Alerj devido às eleições de 2018 e o receio de que o aumento da exposição do deputado estadual Flávio Bolsonaro levasse a imprensa a descobrir a esposa do miliciano em seu gabinete.
Em outra mensagem, Queiroz diz:
Queiroz: “sobre seu nome…. não querem correr risco, tendo em vista que estão concorrendo e a visibilidade que estão”.
Queiroz: “estão fazendo um pente fino nos funcionários e família deles”
Danielle Mendonça acabou sendo exonerada. Em uma conversa com uma amiga em janeiro deste ano ela admitiu que sabia da origem ilícita do dinheiro e que essa situação a incomodava.
Danielle: “enfim amiga… por outro lado, eu não sei se comentei com você, mas eu já vinha um tempo muito incomodada com a origem desse dinheiro na minha vida. Sei lá. Deus deve ter ouvido”.
O MP afirma que Danielle revelou numa outra mensagem que foi o ex-marido quem arrumou a nomeação de funcionária fantasma na Alerj.
Os promotores lembram ainda que Flávio Bolsonaro homenageou Adriano de Nóbrega com moção de louvor pelos inúmeros serviços prestados a sociedade e destacam que Adriano e Queiroz foram amigos de farda.
O MP afirma também que ao nomear a esposa e a mãe de Adriano para cargos comissionados, Flávio Bolsonaro transferiu, ainda que indiretamente, recursos públicos para o acusado de integrar milicia.
Segundo o MP, Adriano interveio junto a Queiroz na tentativa de manter sua ex-esposa Danielle Mendonça da Costa no cargo e admitiu que era beneficiado por parte dos recursos desviados por parentes dele também nomeados na Alerj.
Os salários de Raimunda e Danielle, mãe e mulher do miliciano, somaram, ao todo, R$ 1.029.042,48, dos quais pelo menos R$ 203.002,57 foram repassados direta ou indiretamente para a conta bancária de Queiroz, segundo o MP. Além desses valores, R$ 202.184,64 foram sacados em espécie por elas. Segundo o MP, isso viabilizaria a “simples entrega em mãos” de dinheiro para o ex-assessor.
O miliciano pediu informações a Danielle sobre a exoneração dela do cargo – Danielle Mendonça era funcionária fantasma do gabinete de Flávio desde 2007 até novembro de 2008. Eles conversam sobre dificuldade financeira enfrentada por ela. Em janeiro, Danielle volta a falar sobre problemas financeiros e Adriano se compromete a ajudar com “um complemento”.
Nessa mesma conversa, o ex-PM, morto numa operação policial na Bahia no início deste ano, afirma que “contava com o que vinha do seu também”, indicando que recebia parte dos valores oriundos de lavagem do gabinete de Flávio. O MP não revela, contudo, o quanto Adriano teria embolsado.
Queiroz pediu que Danielle tivesse “cuidado com o que vai falar no celular”. Danielle perguntava, àquela altura, se ainda tinha algo a receber do gabinete de Flávio na Alerj após a exoneração. Diante da negativa de Queiroz, ela responde “meu deus”.
Queiroz se refere a Adriano como “amigo”. Adriano é apontado pela Polícia Civil do Rio e pela promotoria como chefe do Escritório do Crime, espécie de central de assassinos de aluguel, das milícias, do qual fazia parte Ronnie Lessa, preso pelo assassinato de Marielle Franco em março de 2018.
Queiroz pediu que Danielle tivesse “cuidado com o que vai falar no celular”. Danielle perguntava, àquela altura, se ainda tinha algo a receber do gabinete de Flávio na Alerj após a exoneração. Diante da negativa de Queiroz, ela responde “meu deus”. Após perguntar se poderia voltar a ser nomeada em algum gabinete, Queiroz afirmou “pode ser que sim”.
QUEIROZ RECEBEU DOIS MILHÕES DE ASSESSORES FANTASMAS
Fabrício Queiroz recebeu mais de R$ 2 milhões em 483 depósitos feitos por 13 assessores ligados ao hoje senador Flávio Bolsonaro, segundo o Ministério Público do Rio. A defesa nega as acusações. As informações, obtidas por meio da quebra de sigilo bancário, constam na decisão do juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio, que deu origem a uma operação deflagrada na quarta-feira (18). O MP cumpriu 24 mandados de busca e apreensão na investigação sobre um esquema de “rachadinha” na Assembleia Legislativa do RJ (Alerj).
O Ministério Público do Rio de Janeiro, que fez operação de busca e apreensão também na loja de chocolates de Flávio Bolsonaro, afirma ter indícios de que o senador Flávio Bolsonaro e sua mulher, Fernanda, pagaram em dinheiro vivo de forma ilegal R$ 638,4 mil na compra de dois imóveis em Copacabana (zona sul). Para os promotores, o uso de recursos em espécie tinha como objetivo lavar o dinheiro obtido por meio da “lavagem de dinheiro no antigo gabinete de Flávio na Alerj.
Flávio Bolsonaro citou suas atividades empresariais como fonte de seu patrimônio. “Sou empresário. Eu movimento no ano, recebo no ano, do lucro desta minha empresa, muito mais do que eu recebo como deputado. No comércio, você pega dinheiro”, afirmou, em referência a movimentações com valores em espécie. “A origem é a minha empresa e o imóvel que eu vendi, no valor de R$ 2,4 milhões. Você acha que, se fosse um dinheiro ilícito, eu ia depositar na minha conta”, questionou.
LOJA DE CHOCOLATE FOI INVESTIGADA
O relatório do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) contradisse a versão do senador para explicar seus ganhos financeiros. O documento apontou movimentação atípica de Flávio Bolsonaro de R$ 632 mil entre agosto de 2017 e janeiro de 2018. Segundo o RIF (Relatório de Inteligência Financeira), Flávio recebeu no período R$ 120 mil como lucro da loja. O valor é menor do que sua remuneração à época como deputado estadual, que somou R$ 131 mil no mesmo período. O órgão não conseguiu identificar a origem de outros R$ 90 mil recebidos por ele.
A informação sobre os imóveis consta do pedido de busca e apreensão de 111 páginas feito pelo MP-RJ à Justiça fluminense. A suspeita dos promotores decorre do fato de o norte-americano Glenn Dillard, responsável por vender os imóveis a Flávio e Fernanda, ter depositado ao mesmo tempo em sua conta os cheques entregues pelo casal e a quantia em dinheiro vivo. No dia 27 de novembro de 2012, Flávio e a mulher compraram dois imóveis em Copacabana. A escritura aponta o valor da operação como sendo de R$ 310 mil.
O pagamento foi feito em duas etapas. Um sinal de R$ 100 mil pago em cheques no dia 6 de novembro. Dois cheques (que somam R$ 210 mil) foram entregues na data da assinatura da escritura. O MP-RJ afirma que, no mesmo dia da concretização do negócio, Dillard esteve no banco HSBC, onde tinha conta, para depositar os valores. A agência usada fica a 450 metros do cartório onde foi assinada a escritura, que, por sua vez, fica a 50 metros da Assembleia Legislativa do Rio.
LAVAGEM COM IMÓVEIS
O norte-americano, segundo a investigação, depositou ao mesmo tempo os cheques e R$ 638.400 em dinheiro vivo. A Promotoria afirma que Dillard não realizou outra transação imobiliária no segundo semestre de 2012, que poderia ser uma origem para o depósito diversa do dinheiro da transação do senador. Ao mesmo tempo, os promotores escrevem na petição que Flávio e Fernanda também não haviam vendido nenhum imóvel naquele ano e não tinham disponibilidade financeira para a operação. Isso indica, para os investigadores, que a única origem possível para os recursos em espécie é o recolhimento de dinheiro feito junto a ex-assessores.
O uso de imóveis para lavagem de dinheiro consiste no subfaturamento da compra para que, numa futura venda lucrativa, o patrimônio final esteja justificado pela transação imobiliária. Flávio Bolsonaro vendeu os imóveis pouco mais de um ano depois, tendo declarado um lucro de R$ 813 mil. Pelas contas do Ministério Público, o rendimento real foi de R$ 176,6 mil. O uso de imóveis para lavagem de dinheiro consiste no subfaturamento da compra para que, numa futura venda lucrativa, o patrimônio final esteja justificado pela transação imobiliária. Para o MP-RJ, os R$ 638,4 mil passaram a ter aparência legal após a revenda feita por Flávio ser declarada à Receita Federal.
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