Após um ano e cinco meses do início da Operação Escudo da Polícia Militar de São Paulo, na Baixada Santista, as investigações de 17 das 28 mortes provocadas por policiais militares foram arquivadas sem indiciamentos ou sequer denúncias, a pedido de promotores do Ministério Público de São Paulo (MPSP). A Defensoria Pública estadual, por sua vez, tenta reverter a situação de pelo menos oito deles.
De acordo com informações do Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF), que conduz uma pesquisa sobre as operações da PM paulista em colaboração com o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania da Defensoria do Estado de São Paulo. A Operação ocorreu entre o fim de julho e o início de setembro de 2023 nas cidades de Guarujá e de Santos.
As informações divulgadas pela Folha de São Paulo mostram que entre os arquivamentos estão casos emblemáticos da operação como a do ajudante de pedreiro Layrton Fernandes da Cruz Vieira de Oliveira, de 22 anos, que foi encontrado morto na cama, além de ter seus familiares ameaçados por PMs. O caso do assassinato do encanador Willians dos Santos Santana, 36 anos, e do vendedor ambulante Felipe Vieira Nunes, 30 anos, também estão entre os casos arquivados.
Uma investigação permanece aberta e de outras seis não há informações sobre os casos, pois permanecem em segredo de Justiça podendo ainda estar em andamento.
O MPSP ofereceu apenas quatro denúncias contra oito PMs que se envolveram em mortes da Operação Escudo. De acordo com a Folha, há, ainda, uma denúncia relacionada à Operação Verão, que durou de janeiro a abril de 2024. Todos tornaram-se réus por suspeita de assassinato de homens desarmados, ou seja, que não ofereciam perigo, além de terem alterado as cenas das ocorrências e forjado provas.
Mesmo com as câmeras corporais, a maior parte dos casos arquivados não teve gravação feitas pelos equipamentos. Em ao menos três deles, policiais usavam equipamentos com bateria descarregada. Em duas das quatro investigações que resultaram em denúncia contra PMs, essas imagens foram essenciais para as acusações.
Além de câmeras desligadas, em alguns casos há indícios de contradições nos depoimentos de policiais e desrespeito a protocolos da PM que exigem uso progressivo da força e preservação da cena do crime.
No caso Layrton, a perícia identificou marcas em seus ombros e braços indicando que alguém, com os dedos manchados de sangue, teria mudado a posição do corpo. Ele foi morto com quatro tiros, e um deles foi potente o suficiente para que o antebraço fosse arrancado do corpo — possivelmente provocado por um tiro de fuzil a curta distância.
As defensoras levantam a hipótese de que ele teria sido atingido por alguns dos disparos pelas costas, considerando que os ferimentos de saída dos projéteis tendem a ser maiores do que os de entrada. “Mesmo após os quatro tiros sofridos pela vítima, com a completa destruição de seu antebraço, os policiais optaram por não preservar a cena do crime e afirmam terem retirado do local o armamento supostamente portado por Layrton”, escrevem as defensoras.
Também há indícios de forja de provas, pois as fotos dos objetos atribuídos a Layrton, um rádio-comunicador e uma sacola plástica com drogas, não continham qualquer vestígio de sangue, mesmo que houvesse manchas por todo o chão e nas paredes – o que demonstra também a violência da abordagem sofrida pelo ajudante de pedreiro de 22 anos.
O laudo que analisou o revólver atribuído ao rapaz, por sua vez, não esclarece se havia vestígio de sangue. A principal tese da Defensoria é a de que os objetos foram plantados na cena do crime, fato constatado em investigações de outros casos da operação.
No caso de Felipe Vieira Nunes, morto quatro dias antes, sequer houve perícia no local da ocorrência devido a um suposto prejuízo provocado “por forte chuva”, de acordo com Boletim de Ocorrência. Felipe foi atingido por sete tiros.
No relato dos policiais, consta que foram recebidos a tiros ao entrar numa casa onde ele estava, e que responderam com um total de nove disparos. Nenhum PM foi atingido.
Testemunhas, no entanto, relataram que Felipe não conseguiria disparar uma arma porque possuía uma lesão grave na mão direita. Sua mãe inclusive indicou os hospitais em que ele teria tratado o ferimento que teria incapacitado dois dos cinco dedos. Apesar dos relatos e das indicações de sua mãe sobre seu tratamento, não houve pesquisa de seu histórico médico. O argumento da Promotoria é o de que “não há qualquer indicativo de lesão incapacitante na outra, permanecendo viável a empunhadura de uma arma de fogo”.
Na morte de Willians Santana, a perícia no local não encontrou munição da arma atribuída a ele, e há ao menos uma inconsistência no depoimento dos PMs: eles afirmam que atiraram seis vezes, mas o laudo mostra que ele foi atingido por oito disparos. “Com base no laudo necroscópico, há grande probabilidade de ao menos um disparo ter sido feito quando Willians já estava caído”, afirma a Defensoria.
Nesses últimos dois casos, a perícia nos cadáveres não encontrou indícios de tortura, ainda que vizinho tenham alertado para gritos ouvido com pedidos de socorro durante a abordagem e familiares tenham levantado essa hipótese com base em marcas no corpo.
A Defensoria argumenta que provas deixaram de ser colhidas e que indícios contra as versões da PM foram desconsiderados. Num dos processos, promotores rebatem essa alegação afirmando que é “desprovida de técnica, puramente argumentativa”, e reduzem as provas apontadas pela Defensoria a meros argumentos de suposição de fatos “com base em vieses ou ânsias de cunho político” – como se desconsiderar depoimentos de vizinhos e familiares sobre tortura e criação de provas seja algo da técnica investigativa e apontar inconsistência em depoimentos de policiais fosse da ordem política dos fatos. “Sem sombra de dúvida, a principal prova levada em conta pelo Ministério Público [nos pedidos de arquivamento], o fio condutor, é a palavra dos policiais”, disse a pesquisadora Luciana Fernandes, do Geni-UF
De acordo com a Folha, Tulio Kruse, relator da matéria jornalística, pediu entrevista aos promotores, que não quiseram se manifestar.
“Há um volume grande de provas, e isso sem dúvida é resultado da atuação do Ministério Público, mas a precariedade dessas provas é muito notável. São provas com grande vinculação à palavra dos policiais”, diz a pesquisadora Luciana Fernandes, do Geni-UFF.
Entre os quatro casos com denúncias apresentadas pelo MPSP contra policiais, um já teve absolvição sumária de um capitão e um cabo da Rota (tropa de elite da PM). O juiz Edmilson Rosa dos Santos, da 3ª Vara Criminal do Guarujá, entendeu que eles agiram em legítima defesa e que não havia provas suficientes num ponto central da acusação, de que os policiais teriam apagado imagens de uma câmera de monitoramento. O fato da perícia apontar que as câmeras foram desligadas na mesma hora da ocorrência não deve ter parecido ao magistrado um indício de irregularidade, mas uma infeliz coincidência. Os promotores já recorreram à segunda instância.
Em pelo menos um dos casos, já houve sentença para que os PMs sejam levados a júri popular, e outros dois aguardam análise da Justiça para decidir se haverá continuidade ou não dos julgamentos.