(HP 07/09 a 10/10/2012)
A princípio, ao organizar esta coletânea, pensamos em publicar fora da ordem cronológica o discurso que Getúlio Vargas pronunciou a 9 de maio de 1947 no Senado da República.
O que nos levou inicialmente a essa ideia foram os temas específicos desse pronunciamento sobre a situação econômica de São Paulo – não os temas que dizem respeito especificamente ao Estado, já então a principal concentração industrial do país (nas palavras de Getúlio: “o coração econômico do Brasil“), mas os temas específicos da situação nacional daquele momento.
Entre esses temas, há questões que estão superadas pela História, depois de 65 anos – mas, nessa superação, demonstraram o critério certeiro do presidente Vargas. Por exemplo, hoje não é mais necessário demonstrar que a situação do Brasil em 1947 não era, como demonstra Getúlio, “nem crítica nem catastrófica“. Ou seja, que o problema da derrubada do crescimento, longe de ser objetivo, estava na política econômica do governo Dutra.
Há outros temas que se prestam a equívocos, pois a situação a que se refere Getúlio é muito diferente de outras posteriores – por exemplo, a questão do preço de nossos produtos de exportação (e dos gêneros alimentícios em geral), onde Getúlio se refere a um aumento, entre 1939 e 1943, pelo qual “nosso trabalho passou a ser pago na base do valor real de seus produtos. (…) nossos preços deixaram de ser os do mercado interno para ser os do mercado externo“.
Naturalmente, isso nada tem a ver com o alinhamento neoliberal (e tucano) dos preços internos em submissão aos cartéis externos, perpetrado pelo malfadado “plano real”.
O período citado por Getúlio é exatamente o início da II Guerra, quando esses cartéis, numa tendência que começara em 1929, estavam com dificuldades para impor sua influência sobre os países da periferia do capitalismo. Além disso, os gêneros citados não tinham sido, ainda, travestidos em “ativos financeiros”, tal como hoje, onde uma manobra especulativa na Bolsa de Chicago, sem relação com o produto real (mas com os papéis de apostas em seu preço futuro), é capaz de alterar o preço real e presente da soja, do milho, do arroz ou do trigo no mundo todo – em países que não têm defesa contra essas manobras, como é o nosso, após o governo Fernando Henrique.
O discurso representa, publicamente, um passo intermediário na evolução do pensamento de Getúlio sobre os problemas econômicos. Mas, talvez, ainda que verdadeira, essa afirmação seja imprecisa: as formulações econômicas do discurso de maio de 1947 são exaradas em função da política proposta por Getúlio para o conjunto das forças progressistas. Esta política consistia, naquele momento, em atrair o governo, especialmente (e evidentemente) o então presidente Dutra, para o campo nacional. Por isso, o esforço de Getúlio para separá-lo dos udenistas, entreguistas e hipo-desenvolvimentistas que compunham sua assessoria: “Não sei o que afirmam os responsáveis por esta situação ao presidente da República. (…) Estou convencido de que, mais cedo ou mais tarde, S.Exa. o Sr. Presidente da República compreenderá a razão do carinho especial e da apaixonada dedicação de alguns de seus conselheiros“.
Depois de várias tentativas de organizar esta coletânea com a postergação do discurso de maio de 1947, nós optamos pela ordem cronológica. Sem dúvida, isso tornará um pouco mais difícil para o leitor a primeira parte do texto. Porém, a recompensa é, nos textos posteriores, uma compreensão maior da trajetória do pensamento de Getúlio, vale dizer, do nacional-desenvolvimentismo.
Além disso, esse discurso, que publicamos sob forma de condensação, apresenta algumas conclusões capitais. Por exemplo, a de que o problema central da política econômica de Dutra era que “o Brasil cresceu e parece que estão com medo do seu crescimento“.
Da mesma forma, sua abordagem da inflação, onde, em várias e ricas considerações, demonstra uma clareza lapidar: “Colocar toda a economia dum país na dependência de um sistema monetário rígido significa subordinar o todo a uma parte“.
Com efeito.
C.L.
GETÚLIO VARGAS
Quando o povo paulista votou em meu nome para senador, delegou-me uma responsabilidade à qual não posso fugir. Neste momento, fecham-se fábricas que surgiram e se desenvolveram durante o meu governo. Dezenas de milhares de operários já estão sem trabalho. Neste momento, o café entra em derrocada de valores, repetindo a dolorosa crise de 1929. Neste momento, o comércio de São Paulo, que é o coração econômico do Brasil, está angustiado, ferido pelo colapso. Neste momento, a situação bancária do estado mais rico de nossa terra se torna periclitante.
Sempre que se fala em problemas econômicos, a mentalidade que preside os debates não é a de investigação sobre as causas da crise para se encontrar o meio de solucionar um problema. Está claro que a preocupação pelos problemas do povo é muito relativa. O que se quer fazer é convencer o povo de que a culpa das dificuldades em que se encontra cabe a mim. Nem mesmo ao meu governo. E isto se vem repetindo com a monotonia de um realejo ao povo, que está cansado de palavras de acusação, de retaliações, e só deseja trabalho e administração.
Em síntese: a preocupação não é resolver os problemas do povo. Não se pensa no que se deve fazer, e sim em demonstrar que eu nada fiz e o pouco que fiz estava errado. Perdemos, com isso, dois anos e meio de tempo no Brasil, precisamente numa fase em que cada dia é preciosíssimo em face da complexidade dos problemas a resolver. E o povo está esperando. O povo está sofrendo.
A situação brasileira não é nem crítica nem catastrófica. É difícil, no presente momento. Mas precisamente por isso é que devemos apresentar nossas ideias, nossa experiência, e não nossas paixões, como cooperação em benefício do povo.
Declara, em sua mensagem, o chefe da nação, que o Brasil possui 314.881 quilos de ouro, correspondentes a Cr$ 7.096.368.907,80, e mais Cr$ 6.886.547.295,50 em divisas estrangeiras. Isso corresponde a um total de Cr$ 13.982.916.203,30 de reservas.
O total da moeda em circulação era, quando deixei o governo, pouco mais de 17 bilhões. O governo Linhares emitiu 620 milhões e o atual governo, apesar de seus esforços altamente louváveis, foi obrigado a emitir cerca de 3 bilhões de cruzeiros. Emitir não é, portanto, uma questão de querer ou não querer. É um problema de poder ou não poder.
Durante o ano passado não se fez outra coisa que não fosse dizer que o Brasil estava arruinado, que nossa moeda nada valia. O que se teve, como consequência, foi uma perturbação da noção dos valores de crédito e um clima de desconfiança.
Deixei o governo com a dívida externa não só não aumentada – e foi o meu o único governo do Brasil, desde a sua independência, que não aumentou a dívida externa – como ainda a reduzi. Em 1930 a dívida externa era problema básico da administração, pois exigia 30% do total do orçamento da receita. Hoje, os ônus para juros e amortização da dívida, na base do plano fixado pelo Decreto-Lei 6.019, de 23 de novembro de 1943, representam apenas 3% do total da nossa receita.
Nossa dívida interna consolidada é “relativamente pequena”, conforme reconhece o Sr. Presidente da República. Se no período de 1937 até 1945 aumentei a circulação de papel-moeda em cerca de 13 bilhões, deixei mais de 13 bilhões em ouro e divisas. Não emiti sem lastro, antes pelo contrário, as emissões feitas têm um lastro de 100% ouro, e isto positivamente representa riqueza e não inflacionismo desordenado.
As consequências da campanha política que, visando a mim, foram atingir o crédito público, não se fizeram sentir apenas no mercado de títulos. Foram bem mais profundas as suas repercussões no setor do crédito privado. A intranquilidade e as inquietações determinaram uma profunda retração nas disponibilidades de caixa bancária.
Conheço perfeitamente esse fenômeno porque, em 1942, por ocasião da guerra gerou-se a mesma crise. Os encaixes bancários baixaram vertiginosamente e se tornaram indispensáveis providências radicais. Essas providências se consubstanciaram:
1) na criação do cruzeiro, obrigando-se os portadores de papel-moeda a fazer voltar seu dinheiro aos bancos para o carimbo e mais tarde substituição;
2) no lançamento do empréstimo de guerra e a colocação compulsória dos bônus na base do imposto sobre a renda;
3) na lei sobre os lucros extraordinários.
Havia uma razão para esse fenômeno. Era a situação a razão de ordem objetiva. O que podemos observar [em 1947] é um fenômeno de natureza subjetiva. Discussões em torno do valor da moeda. Debates e acusações sobre a inflação. E finalmente o medo. Esse medo gera o pânico. E o pânico é o que se registra em São Paulo, paralisando o coração do nosso organismo econômico. O Brasil cresceu e parece que estão com medo do seu crescimento.
Eis por que, apesar de todas as providências tomadas, em 31 de dezembro de 1946 a média do encaixe bancário sobre o total dos depósitos baixou de 10,5% para 9% sobre o ano anterior, e a média da caixa sobre os depósitos à vista baixou de 7,1%, em 1945, para 6,8%.
Não sei o que afirmam os responsáveis por esta situação ao presidente da República. Mas sei que, embora se tenha reduzido de 96,9% para 84,5% a percentagem dos empréstimos sobre o total dos depósitos, não se conseguiu aumentar a média dos bancos, que alcançou, em dezembro de 1946, o recorde de baixa proporcional nos últimos 16 anos. E isto apesar dos depósitos compulsórios terem sido aumentados de 1.740 milhões para 2.325 milhões, e os depósitos de poderes públicos de 3.384 milhões para 6.683 milhões.
O número de estabelecimentos bancários era exagerado, segundo diziam. Mas em 1946 foram abertos mais 95 bancos, entre sedes e filiais. Não critico esse ponto. Confio no alto critério do Poder Executivo. Cito apenas como referência aos que me acusam por ter feito o que não podia deixar de fazer.
Confesso que me sinto sumamente orgulhoso de ter deixado possibilidades de venda de 11.881 quilos de ouro para realizar mais de 300 milhões de cruzeiros, a fim de se fazer face a despesas do Estado. E, ainda mais, de verificar que o governo atual tem mantido a mesma política de compra de ouro, encerrando em novembro as vendas e adquirindo 9.572 quilos de ouro fino.
Em 1930 nada encontrei a não ser saques do Banco do Brasil a descoberto. Felizmente para a administração pública, o Brasil possui reservas sólidas e pode confiar no seu futuro.
Todas estas considerações são indispensáveis para se chegar às causas da crise que atingiu em cheio São Paulo. A resistência tributária tem um limite. Esse limite é determinado pelo ritmo da evolução econômica e financeira do povo. Estamos colhendo, com o aumento de arrecadação, os benefícios do impulso adquirido pela economia nacional de 1944 e 1945. A linha geral da retração de crédito, de encaixes, de restrições gerais fixadas pela política bancária em 1946 está repercutindo em 1947 e terá impressionantes consequências no orçamento de 1948. Olhar para a arrecadação deste ano como exemplo de otimismo é um erro. Assim como se semeia para se colher no ano seguinte, também se organiza a economia e as finanças para se arrecadar, nos anos sucessivos, a receita orçamentária.
Em 1945 a arrecadação prevista foi de 8.232.399 mil cruzeiros. Em 1946 a orçada foi de 10.010.148 mil cruzeiros e a arrecadação efetiva foi 11.569.575 mil cruzeiros. Apesar desse aumento da arrecadação, tivemos um déficit de Cr$ 2.632.968.265,50. A previsão de arrecadação para 1947 é de Cr$ 12.003.650.000,00. E já sabemos que está previsto no orçamento um déficit de mais de meio bilhão de cruzeiros. Em dois anos nossa receita aumentou de 50%.
Um país que pode apresentar esse milagre positivamente é um maravilhoso manancial de energias. Mas não devemos ter ilusões sobre a extensão desse potencial. Diminuindo-se a resistência dos contribuintes, reduzindo-se o ritmo dos negócios, fechando-se indústrias, perturbando-se o comércio, criando-se o desemprego, reduzindo-se a exportação, determinando-se derrocadas como a dos valores do café, fatalmente teremos o problema orçamentário como básico no ano vindouro. Porque a repercussão nesse setor só se verificará em 1948 e 1949, e em condições tais que todas as energias estarão esgotadas.
Preciso e quero pôr as coisas bem claras.
Não posso deixar que o Brasil mergulhe numa crise e que os trabalhadores sejam sacrificados pela derrocada econômica e financeira que se esboça. É meu dever colaborar, com as energias que me restam, e aconselhar, com a experiência dos meus 15 anos de governo, a junção de todas as forças nacionais a fim de vencermos os obstáculos transitórios que se podem transformar em crise de graves consequências.
Meu governo foi várias vezes criticado e ainda recentemente nesta Casa se afirmou que procurei desenvolver a indústria com prejuízo da agricultura. Apresento a posição de empréstimos do Banco do Brasil em 1945:
Estimula-se a produção e desenvolve-se a atividade nesse setor mediante empréstimos, mediante fornecimento de recursos para essa evolução.
A indústria de construção civil, que é apresentada como culpada pela falta de braços na lavoura, só teve 65 milhões de cruzeiros de empréstimos no Banco do Brasil, e a agricultura e a pecuária 5.172 milhões. A indústria manufatureira teve menos de 25% dos auxílios financeiros do Banco do Brasil prestados à agricultura e à pecuária. Basta refletir sobre essas cifras, para se verificar que não há a menor razão na crítica feita nesse sentido.
Os saldos de fim de ano nos empréstimos do Banco do Brasil apresentaram em 1946, em relação a 1945, a seguinte posição:
Se precisamos de maior produção agrícola e, ao mesmo tempo, necessitamos combater a inflação de crédito, não está muito certo diminuir de cerca de meio bilhão de cruzeiros os empréstimos da agricultura.
É curioso que tenha acontecido isso em 1946, mas aconteceu. E ainda mais, em relação a 1945, as aplicações da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial marcaram um decréscimo de 495 milhões. Nos saldos médios dos redescontos, o balanço do Banco do Brasil acusa um decréscimo de 1 bilhão e 227 milhões de cruzeiros e o mesmo balanço informa uma redução de 1 bilhão e 828 milhões nos saldos médios das aplicações.
(continua)