Movimentos sociais e populares do Paraguai se somaram à organização de familiares das vítimas de Marina Kue, Curuguaty, para repudiar a nomeação de Jalil Rachid à Promotoria da mesma região onde ocorreu o massacre que, devidamente manipulado para as manchetes dos jornais e emissoras de rádio e televisão, pôs fim ao governo de Fernando Lugo. Entre os inúmeros atos de protesto, manifestantes fecharam na última sexta-feira a rodovia 10, próximo ao assentamento de trabalhadores rurais, alertando que não vão admitir em hipótese alguma a indicação.
Em Marina Kue, no dia 15 de junho de 2012, morreram 17 pessoas – 11 camponeses e seis policiais – resultado de um “confronto” provocado por franco-atiradores treinados pela CIA e pelo exército dos Estados Unidos. Peça-chave na falsificação de provas contra os sem-terra, elemento central na chantagem de testemunhas, Jalil Rachid agiu como promotor-geral do caso Curuguaty – e posteriormente como vice-ministro da Segurança do governo do presidente Horacio Cartes – para que as lideranças dos camponeses fossem incriminadas sem provas e condenadas a até 35 anos de prisão por “homicídio doloso”, “associação criminosa” e “invasão de imóvel alheio”, delitos que não cometeram.
A partir de uma ampla mobilização nacional e internacional que denunciou como tudo não passou de armação para o golpe jurídico-midiático-parlamentar, três juízes retomaram o caso, o qual apontaram estar eivado de “vícios”. Passados seis anos, retificaram o erro cometido pelo Tribunal de Justiça, garantindo em setembro de 2018 a libertação de Néstor Castro, Rubén Villalba, Luis Olmedo e Arnaldo Quintana, e reconhecendo a injustiça cometida com os outros sete que já haviam cumprido pena. A manipulação foi tão grosseira que várias personalidades e governos estrangeiros se pronunciaram para que a presidência do Paraguai se afastasse do caso e possibilitasse uma nova investigação “objetiva, imparcial e independente”. Até mesmo o Alto Comissariado das Nações Unidas se pronunciou contra o flagrante atropelo.
“Não se pôde ver quem disparou, houve falta de evidências, somada a numerosas irregularidades, como alterações da cena do crime. A investigação foi muito incipiente, foram cometidos muitos erros”, informou o juiz Emiliano Rolón, ao outorgar liberdade aos camponeses. Na verdade, explicou o juiz Arnaldo Martínez Prieto, foi fundamental refazer uma decisão injusta tomada por um setor do judiciário que agiu atrelado ao executivo e aos latifundiários. “Eram magistrados que apenas expressavam o seu preconceito, demonstrando que não aceitavam que gente despossuída ganhasse uma disputa de terras, porque isso ficava como um mau exemplo”, assinalou Prieto.
Comprometido até a medula com a corrupção e o golpismo, o responsável pela nomeação de Jalil Rachid como vice-ministro, o ex-procurador-geral do Estado, Javier Díaz Vérón, foi processado e encontra-se em prisão domiciliar, acusado de enriquecimento ilícito.
“Não está certo envolver Rachid com decisões da Justiça. Ele tem antecedentes muito ruins, ainda mais neste caso, para ficar à frente do Ministério Público de Curuguaty”, declarou Néstor Castro, presente ao ato na rodovia. Castro destacou que a mobilização também expressou apoio aos juízes Rolón, Prieto e Cristóbal Sanchez, denunciados ante o Jurado de Acusação de Magistrados (JEM) por libertar os camponeses.
“Na minha opinião, Jalil Rachid deveria estar preso. Ele não reúne as mínimas condições para integrar o sistema judiciário, ainda mais numa zona dizimada, tão duramente golpeada, como aquela”, destacou Guillermina Kanonnikoff, membro do Movimento de Solidariedade aos camponeses de Curuguaty, ex-presa política da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989), que teve seu marido assassinado na tortura. Reconhecida lutadora pelos direitos humanos, Guillermina reiterou que é preciso que Rachid responda criminalmente por ter dado ordens para que os policiais mentissem, “reforçando barbaridades processuais flagrantes, fechando os olhos diante das tremendas evidências”. “Visivelmente este senhor Rachid foi colocado no tabuleiro com a única finalidade de perseguir quem luta pela reforma agrária, mantendo intocados os interesses dos grandes latifundiários”, sublinhou.
De acordo com Martina Paredes, coordenadora do acampamento de Marina Kue, onde foram assassinados seus irmãos Luis (26) e Fermín (28), Rachid é um “palhaço e sem-vergonha”. “Como familiares das vítimas buscamos a paz e não haverá paz se ele voltar, pois ele nos provoca e a muita gente”, acrescentou.
“Estamos muito preocupados. Jalil Rachid não pode voltar a Curuguaty depois de tudo o que passamos desde aquele 15 de junho. Rechaçamos de forma categórica a presença deste senhor, é persona non grata”, acrescentou Darío Acosta, um dos dirigentes dos trabalhadores rurais da região.
Beneficiário direto do golpe contra Lugo, o ex-presidente Horacio Cartes disse que tem de Jalil Rachid “o melhor dos conceitos” e que se sentia “honrado” pelo período em que trabalharam juntos e pelas suas raízes. O pai de Jalil, Bader Rachid, foi ex-presidente do Partido Colorado, de Stroessner, sobrinho da ex-assessora de Assuntos Internacionais da presidência do Paraguai, Leila Rachid. Além disso, mantém fortes vínculos com a família de Blas Riquelme, dirigente colorado durante a ditadura e contemplado com inúmeras propriedades, a partir de despejos, mortes e torturas como a das “Terras da Marinha”. Casualmente, em guarani, Marina Kue.