Bernie Sanders e Alexandria Ocasio encabeçam a lista de senadores e deputados que encaminharam moção nas duas casas parlamentares exigindo que Washington, em nome do governo norte-americano não apenas assuma de público a partipação ativa no golpe de Pinochet, como também se desculpe pelo dano causado à democracia chilena
Os senadores Bernie Sanders e Tim Kaine, juntamente com os deputados Alexandria Ocasio-Cortez, Joaquín Castro, Greg Casar e Nydia Velázquez, apresentaram nesta quinta-feira (21) uma proposta de resolução pedindo desculpas pela participação de Washington no ataque à ordem constitucional chilena, que levou à morte do então presidente Salvador Allende em 1973 e ao estabelecimento de um regime de terror que durou até 1990.
A resolução, que ainda não foi submetida a votação, condena “a ajuda dos Estados Unidos à consolidação da ditadura militar repressiva do general Augusto Pinochet” e sublinha que “uma rendição de contas completa” exige a desclassificação dos documentos que o país ainda não fez públicos sobre os acontecimentos que levaram ao golpe de Estado em 11 de setembro de 1973.
O texto enquadra-se na série de eventos e homenagens pela passagem do 50º aniversário do golpe e lembra que, nas palavras do então Conselheiro de Segurança Nacional, Henry Kissinger, a Agência Central de Inteligência (CIA) “criou as maiores condições possíveis para a tomada militar do poder”. “De acordo com arquivos recentemente desclassificados, o então presidente dos EUA, Richard Nixon (1969-1974), ordenou à CIA que “fizesse a economia gritar” e que bloqueasse secretamente a tomada de posse de Allende, intento frustrado.
ESTADOS UNIDOS DEFENDEM O OPOSTO À DEMOCRACIA
“O golpe de 1973 no Chile levou a décadas de regime militar liderado pelo general Augusto Pinochet, durante o qual cerca de 40 mil chilenos foram assassinados, desaparecidos, torturados ou exilados”, afirmou Bernie Sanders num comunicado.
“Deixe-me ser claro: devemos defender a democracia aqui nos Estados Unidos e noutros lugares”, disse o senador. “E isso significa que também devemos reconhecer que os Estados Unidos nem sempre defenderam a democracia no estrangeiro e, na verdade, por vezes fizeram o oposto. Ao assinalarmos o 50º aniversário do horrível golpe de Estado no Chile, temos de deixar claro que lamentamos o nosso envolvimento e comprometemo-nos a apoiar a democracia chilena. Para construir as parcerias duradouras de que necessitamos neste hemisfério, precisaremos estabelecer uma base de confiança e respeito. Parte desse processo inclui a total responsabilização pelo golpe e pelas suas consequências”, afirmou.
NECESSÁRIO FAZER PÚBLICOS OS DOCUMENTOS
Sanders, Ocasio-Cortez e os demais legisladores que propõem a moção, aplaudem no texto a população chilena “pela reconstrução de uma democracia forte e resiliente contra as forças do autoritarismo” e continuam empenhados em ajudar no processo de “verdade e reconciliação”.
Em 9 de agosto, a Câmara dos Deputados do Chile aprovou um pedido ao Presidente Gabriel Boric para instruir o Ministério das Relações Exteriores a tomar medidas para acessar os antecedentes secretos dos Estados Unidos sobre sua intervenção antes e durante o golpe de Estado. A exigência, promovida por parlamentares do governista Convergência Social, foi aprovada com ampla maioria de 125 votos a favor, dois contra e sete abstenções.
E no passado 25 de agosto, os Estados Unidos divulgaram dois relatórios presidenciais sobre o golpe de Estado no Chile. No primeiro, datado de 8 de setembro de 1973, assessores do então presidente Richard Nixon, avisam para uma “possível tentativa de golpe” no país latino-americano, enquanto no segundo, datado de 11 de setembro, informam que diversas “unidades militares chave” apoiavam o motim que ocorreu naquele dia.
Os documentos destacam que, segundo os assessores de Nixon, Allende considerava que os seus seguidores não tinham armas suficientes para enfrentar o Exército e que a única solução viável era a política, deixando espaço para a ação norte-americana.
Ainda há documentos a serem desclassificados e há vozes que exigem que Washington reconheça o seu papel não só na derrubada de Salvador Allende, mas também na turbulência anterior do país e no subsequente apoio ao regime de Pinochet.
A “plena rendição de contas” exige que “os restantes arquivos dos Estados Unidos relacionados com os acontecimentos de antes, durante e depois do golpe militar sejam publicados e desclassificados”, afirmaram os parlamentares na resolução divulgada esta quinta-feira (21).
Segue artigo detalhando os passos de Washington em sua participação direta no golpe que levou Allende à morte e instaurou a ditadura de Pinochet no Chile, publicado pela revista Intertelas, no início deste mês, sob o título “Arquivo de Segurança Nacional dos EUA: 50 anos do Golpe no Chile”:
A organização não governamental “Arquivo de Segurança Nacional” da Universidade George Washington, publicou, no dia 8 de setembro de 2023, os documentos sobre o Golpe de Estado de 11 de setembro de 1973 no Chile. Confira abaixo:
“No período Eisenhower, seríamos heróis”, disse Henry Kissinger ao presidente Richard Nixon vários dias após a derrubada de Salvador Allende no Chile, lamentando que não receberiam crédito na imprensa por este feito da Guerra Fria. Cinquenta anos depois, enquanto os chilenos e o mundo comemoram o aniversário da tomada militar apoiada pelos EUA que levou o general Augusto Pinochet ao poder, o debate acirrado sobre a extensão da contribuição dos EUA para o Golpe continua. Em 6 de setembro, um importante canal de televisão chileno, Chilevision, transmitiu um importante documentário intitulado “ Operação Chile: Top Secret”, apresentando dezenas de registros desclassificados dos EUA obtidos pelo Projeto de Documentação do Chile do Arquivo de Segurança Nacional, incluindo documentos obtidos e recentemente publicados na nova edição chilena do livro do analista de arquivo Peter Kornbluh, “Pinochet Desclasificado”.
ARQUIVO PINOCHET
Na véspera do 50º aniversário, o Arquivo publica uma seção editada do livro de Kornbluh, “O Arquivo Pinochet”, na “Contagem Regressiva para o Golpe”. O ensaio regista as ações do governo dos EUA, os debates internos e as deliberações políticas à medida que as condições para o golpe evoluíram entre março e setembro de 1973. Em 12 de setembro de 1973, um dia depois dos militares chilenos tomarem violentamente o poder, funcionários do Departamento de Estado reuniram-se para discutir as orientações de imprensa para Henry Kissinger sobre “quanta antecedência tínhamos sobre o golpe”.
O secretário adjunto para Assuntos Interamericanos, Jack Kubisch, observou que um oficial militar chileno disse à embaixada que os conspiradores ocultaram aos seus apoiadores norte-americanos a data exata em que agiriam contra Allende. Mas Kubisch disse que “duvidava que o Dr. Kissinger utilizasse esta informação, pois revelaria o nosso contato próximo com os líderes golpistas”. Nos meses que antecederam o Golpe, a CIA e o Pentágono mantiveram contatos extensivos com os conspiradores chilenos através de vários informantes e agentes, tendo conhecimento prévio com pelo menos três dias de antecedência de uma data concreta para a tomada militar.
Em 10 de Abril, a divisão do Hemisfério Ocidental conseguiu a aprovação do diretor da CIA, James Schlesinger, para obter “esforços acelerados contra o alvo militar”. Estas ações secretas, de acordo com um memorando de 7 de maio do chefe da divisão WH, Theodore Shackley, para Schlesinger, foram “concebidas para monitorizar melhor qualquer conspiração golpista e para exercer a nossa influência sobre os principais comandantes militares, para que possam desempenhar um papel decisivo ao lado das forças golpistas, quando e se os militares chilenos decidirem por si próprios agir contra Allende”. O Quartel-General autorizou a Estação de Santiago “a avançar contra alvos militares em termos de desenvolvimento de fontes adicionais” e prometeu procurar dotações para um programa militar alargado quando “tivermos provas muito mais sólidas de que os militares estão preparados para agir e têm probabilidades razoáveis de sucesso”.
O Alto Comando Chileno forneceu provas de que os militares ainda não estavam prontos para agir em 29 de junho, quando várias unidades rebeldes das forças armadas chilenas foram mobilizadas para assumir o palácio presidencial conhecido como La Moneda. No seu secreto “Sit Rep # 1” para o presidente Nixon, Kissinger relatou que unidades do exército chileno tinham “lançado uma tentativa de golpe contra o governo de Salvadore Allende”. Um relatório observou que os conspiradores militares escolheram o dia 7 de Julho como a “data prevista” para outra tentativa de golpe, mas a data estava agora a ser adiada devido à oposição do comandante-em-chefe Carlos Prats, bem como à dificuldade em alinhar “os regimentos chaves do Exército na área de Santiago”.
A CIA também informou que os militares estavam tentando coordenar uma negociação com a Federação dos Proprietários de Caminhões, que estava prestes a iniciar uma greve massiva dos caminhoneiros. A violenta greve, que paralisou o país durante todo o mês de Agosto, tornou-se um fator-chave na criação do clima golpista que a CIA há muito procurava no Chile. Outros fatores incluíram a decisão da liderança dos Democratas-Cristãos de abandonar as negociações com o governo da Unidade Popular e, em vez disso, trabalhar, no sentido de um Golpe Militar. Em um “relatório de progresso” da CIA, datado do início de julho, a Estação observou que “tem ocorrido uma aceitação crescente por parte dos líderes do PDC de que um golpe militar de intervenção é provavelmente essencial para impedir uma tomada marxista completa no Chile. Embora os líderes do PDC não admitam abertamente que as suas decisões e táticas políticas destinam-se a criar as circunstâncias para provocar uma intervenção militar, os ativos [informantes secretos] da Estação relatam que, privadamente, este é um fato político geralmente aceito”.
A posição democrata-cristã, por sua vez, levou o Partido Comunista Chileno, tradicionalmente moderado, a concluir que a acomodação política com a oposição dominante já não era viável e a adotar uma posição mais militante, criando divisões profundas com a própria coligação de Allende. A recusa linha-dura dos militares em aceitar a oferta de Allende de certos cargos no gabinete também acelerou as tensões políticas. “O sentimento de que algo deve ser feito parece estar a espalhar-se”, observou a sede da CIA em relatório analítico sobre “Consequências de um Golpe Militar no Chile”.
Em uma série de reuniões secretas nos dias 1 e 2 de setembro, esta equipe apresentou aos chefes do Exército, da Força Aérea e da Marinha chilenas um plano completo para derrubar o governo Allende. A incipiente Junta aprovou o plano e fixou o dia 10 de setembro como data prevista para o Golpe. De acordo com uma análise da conspiração golpista obtida pela CIA, o general que substituiu Carlos Prats como comandante-em-chefe, general Augusto Pinochet, foi “escolhido para ser o chefe do grupo” e determinaria a hora do início do Golpe.
Em 8 de setembro, tanto a CIA, quanto a DIA alertaram Washington de que um Golpe era iminente e confirmaram a data de 10 de setembro. Um resumo de inteligência da DIA carimbado “TOP SECRET UMBRA” relatou que “as três forças teriam concordado em agir contra o governo em 10 de setembro e grupos civis terroristas e de direita supostamente apoiarão o esforço”. A CIA informou que a marinha chilena iria “iniciar um movimento para derrubar o governo” às 8h30 do dia 10 de setembro e que Pinochet “disse que o Exército não se oporá à ação da Marinha”. No dia 9 de setembro, a Estação atualizou a contagem regressiva do Golpe. Um membro da equipe de agentes secretos da CIA em Santiago, Jack Devine, recebeu uma ligação de um agente que estava fugindo do país. “Isso vai acontecer no dia 11”, como Devine relembrou a conversa. Seu relatório, distribuído à sede de Langley em 10 de setembro, afirmava:
“Uma tentativa de Golpe será iniciada em 11 de Setembro. Todos os três ramos das Forças Armadas e os Carabineros estão envolvidos nesta ação. Uma declaração será lida na Rádio Agricultura às 7h do dia 11 de setembro. Os Carabineros têm a responsabilidade de capturar o presidente Salvador Allende”.
Às 8h do dia 11 de setembro, a Marinha chilena havia assegurado a cidade portuária de Valparaíso e anunciado que o governo da Unidade Popular estava sendo derrubado. Em Santiago, as forças dos Carabineros deveriam deter o presidente Allende em sua residência, mas ele conseguiu chegar a La Moneda, a Casa Branca do Chile, e começou a transmitir mensagens de rádio para que “trabalhadores e estudantes” viessem “e defendessem seu governo contra o Forças Armadas.” Enquanto os tanques do exército cercavam o La Moneda, disparando contra as suas paredes, os jatos Hunter Hawker lançaram um ataque preciso com foguetes contra os escritórios de Allende por volta do meio-dia, matando muitos dos seus guardas. Outro ataque aéreo acompanhou o esforço terrestre dos militares para tomar o pátio interno do Moneda às 13h30.
Durante os combates, os militares exigiram repetidamente que o presidente Allende se rendesse e fizeram uma oferta superficial para que ele e a sua família saíssem do país. Em uma agora famosa cassete de áudio do General Pinochet, dando instruções às suas tropas através de comunicações de rádio no dia 11 de Setembro, é possível ouvir ele rir e jurar que “aquele avião nunca aterrará”. Prevendo a selvageria de seu regime, Pinochet acrescentou: “Mate a cadela e você eliminará a ninhada”. Salvador Allende foi encontrado morto por um tiro auto infligido em seu escritório interno por volta das 14h. Às 14h30, a rede de rádio das Forças Armadas transmitiu um anúncio de que La Moneda havia “se rendido” e que todo o país estava sob domínio militar.
Pela definição mais restrita de “papel direto” – fornecendo planejamento, equipamento, apoio estratégico e garantias – a CIA não parece ter estado envolvida nas ações violentas dos militares chilenos em 11 de Setembro de 1973. A Casa Branca de Nixon procurou, apoiou e abraçou o Golpe, mas os riscos políticos do envolvimento direto superaram simplesmente qualquer necessidade real para o seu sucesso. Os militares chilenos, porém, não tinham dúvidas sobre a posição dos EUA. “Não estávamos planejando”, recordou o agente da CIA, Donald Winters. “Mas os nossos contatos com os militares permitiram a eles saber qual era a nossa posição – que não estávamos muito satisfeitos com o governo [de Allende]“.
Além disso, a CIA e outros setores do governo dos EUA estiveram diretamente envolvidos em operações destinadas a criar um “clima de Golpe”, no qual a derrubada da democracia chilena poderia e iria ocorrer. O Memorando de Colby parecia omitir o projeto de fraude militar da CIA, os esforços secretos de propaganda para semear a dissidência dentro da coalizão da Unidade Popular, o apoio a elementos extremistas como Patria y Libertad e as conquistas inflamatórias do projeto El Mercurio, cujos registros da agência creditaram com o desempenho de “um papel significativo na preparação do cenário” para o Golpe – sem falar no impacto desestabilizador do bloqueio económico invisível. O argumento de que estas operações destinavam-se a preservar as instituições democráticas do Chile foi uma estratégia de relações públicas contrariada pelo peso do registo histórico.
De fato, “nossa política em relação a Allende funcionou muito bem”, comentou o secretário adjunto Kubisch a Kissinger no dia seguinte ao Golpe. Na verdade, em setembro de 1973, a administração Nixon alcançou o objetivo de Kissinger, enunciado no Outono de 1970, de criar condições que levariam ao colapso ou a derrubada de Allende. Na primeira reunião do Grupo de Ações Especiais de Washington, realizada na manhã de 12 de setembro para discutir como ajudar o novo regime militar no Chile, Kissinger brincou que “o Presidente está preocupado que possamos querer enviar alguém ao funeral de Allende. Eu disse que não acreditava que estivéssemos considerando isso. ‘Não’, respondeu um assessor, ‘não, a menos que você queira ir”.
Em 16 de setembro, o presidente Nixon ligou para Kissinger para uma atualização; a conversa deles foi gravada pelo sistema de gravação secreta de Kissinger. Os dois discutiram abertamente o papel dos EUA. Nixon parecia preocupado com a possibilidade de a intervenção dos EUA no Chile ser exposta. “Bem, nós não – como você sabe – nossa mão não aparece neste caso”, observou o presidente. “Não fomos nós”, respondeu Kissinger, referindo-se à questão do envolvimento direto no Golpe de 11 de Setembro. “Quer dizer, nós os ajudamos. [Palavra omitida] criou as melhores condições possíveis.” “Isso mesmo”, concordou Nixon.
Nixon e Kissinger lamentaram o fato de não receberem crédito elogioso nos meios de comunicação pela morte de Allende. “A questão do Chile está a consolidar-se”, relatou Kissinger, “e é claro que os jornais estão a balbuciar porque um governo pró-comunista foi derrubado”. “Isso não é incrível”, disse Nixon, criticando a “porcaria liberal” na mídia. Kissinger sugeriu que a imprensa deveria “celebrar” o Golpe Militar. “No período Eisenhower”, disse Kissinger a Nixon, “seríamos heróis”.
Fontes: resumo publicado orginalmente em inglês no site da International Affairs. Texto integral no National Security Archive.
Tradução – Alessandra Scangarelli Brites – Intertelas