![](https://horadopovo.com.br/wp-content/uploads/2023/10/plasma-humano2.jpg)
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou, nesta quarta-feira (4), por 15 votos contra 11, a proposta de emenda à Constituição (PEC) que permite a comercialização de plasma, um dos componentes do sangue humano. Atualmente, a Constituição proíbe a comercialização de órgãos, tecidos ou substâncias humanas, inclusive sangue.
O tema será agora analisado pelo plenário do Senado.
A PEC aprovada exclui o plasma da proibição de comercialização definida pelo Artigo 199 da Constituição e estabelece que “a Lei disporá sobre as condições e os requisitos para a coleta, o processamento e a comercialização de plasma humano pela iniciativa pública e pela iniciativa privada, para fins de uso laboratorial, desenvolvimento de novas tecnologias e de produção de medicamentos hemoderivados destinados a prover preferencialmente o SUS”.
O senador Jaques Wagner (PT) repudiou a PEC que libera a comercialização de plasma. Ele denunciou que a PEC privilegia um grupo de empresas multinacionais que processam o plasma e não possuem qualquer interesse de se instalar no Brasil. “Não prevê transferência de tecnologia, apenas a entrega do plasma humano brasileiro para que as 13 empresas do mundo capazes de transformar em medicamento vendam para países ricos salvarem seus doentes”, alertou Wagner.
Wagner relembrou que a estatal brasileira Hemobrás, criada em 2004, está muito perto de atingir a suficiência tecnológica para transformar o plasma em medicamento. Ele comparou ainda a situação da Hemobrás à da Petrobrás que foi criada durante o governo Getúlio e que hoje desenvolve tecnologia de ponta para a extração de petróleo.
INTERESSES ESCUSOS
Rosana Onocko-Campos, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), aponta que política pública de manejo de sangue e hemoderivados no Brasil é um exemplo mundial.
“Em 2004, foi criada a Hemobrás (Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia) para garantir a autossuficiência do país em relação aos hemoderivados. A empresa tem se mostrado competente e precisa ser fortalecida, em claro alinhamento às políticas de estímulo do Complexo Econômico Industrial da Saúde (Ceis). Nada indica que seja necessária sua privatização ou a criação indecente de concorrência na área. Os hemoderivados brasileiros são seguros e adequados ao desenvolvimento científico moderno e às necessidades de saúde. Toda a gestão de processamento e distribuição de hemoderivados é feita pelo sistema público”, destacou Rosana.
Ela critica ainda os interesses da indústria farmacêutica com a PEC. “Quais são os interesses escusos que pretendem alavancar um retrocesso tão imenso? Quanto dinheiro e quais são os interesses comerciais de grandes empresas farmacêuticas que advogam pela PEC 10/2022?”, indagou em artigo publicado no site da entidade.
“O Brasil procura se recuperar a duras penas das feridas que uma pandemia administrada com crueldade e incompetência lhe deixaram. Mais de 700 mil mortos em uma cena que dantescamente já nos demonstrou aonde nos leva o “salve-se quem puder”. O peso das mortes e do sofrimento sempre recai nos mais vulneráveis. Apesar do descalabro, o SUS emergiu da pandemia com maior legitimidade do que nunca. Quais são as forças que querem fazê-lo retroceder?”, ressaltou a médica.
SANGUE NÃO É MERCADORIA
O secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde, Carlos Gadelha, definiu uma eventual liberação da comercialização de plasma no Brasil como “um retrocesso”. Segundo Gadelha, a Organização Mundial da Saúde (OMS) rejeita a ideia em debate no Legislativo brasileiro.
“Foi uma conquista do Brasil ter proibido a comercialização de sangue na nossa Constituição. Antigamente, tínhamos uma situação onde os brasileiros precisavam vender o próprio sangue para poder ter um prato de comida”, relembra.
Ainda de acordo com Gadelha, a mudança na lei seria desnecessária no momento em que o Brasil vem reduzindo a dependência de outros países por hemoderivados por meio da Hemobrás, a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia. Atualmente, 30% dos hemoderivados ofertados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) são resultado do fracionamento do plasma doado no país e a previsão é que, a partir de 2025, com a conclusão da sua planta, a Hemobrás passe a produzir e processar 80%.
“Hoje, a Hemobrás é muito aberta à parceria com o setor privado. Portanto, pode-se estabelecer parcerias público-privadas, mas sem que o sangue vire mercadoria e possa ser, inclusive, exportado em detrimento da saúde da nossa própria população”, diz o secretário, reforçando que a cultura de doação de sangue, já consolidada no país, poderia ser prejudicada com uma orientação comercial em desfavor do ato altruísta.
“Se a gente desestimular a doação de sangue porque o sangue virou um comércio, pode faltar sangue até para transfusão, além de faltar o plasma para a Hemobrás processar, em assistência aos hemofílicos. Poderia faltar sangue na ponta, como quando você entra na emergência do hospital”, acrescenta.
VOTAÇÃO
A sessão da CCJ começou com a apresentação de um voto em separado do senador Marcelo Castro (MDB-PI), que sugeriu permitir a comercialização não do plasma, mas dos serviços de processamento do plasma. A PEC alternativa apresentada por Castro submetia esse serviço a uma “autorização específica do Ministério da Saúde”.
“Eu acho mais razoável a minha emenda, porque permite a industrialização, o processamento e a comercialização dos hemoderivados; só não permite a venda do sangue humano – a diferença é só essa”, defendeu o senador.
Em seu parecer, a relatora da PEC, senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), negou a mudança sugerida por Castro. “Julgamos que a exigência de autorização do Ministério da Saúde para a atuação da iniciativa privada limita demasiadamente sua capacidade de produção, possuindo o condão de afastar investimentos”, destacou.
Durante a sessão, a relatora Daniella Ribeiro defendeu que a medida é importante para facilitar a fabricação e comercialização de medicamentos que usam o plasma como insumo.
“Quando a gente fala em abrir a iniciativa privada para auxiliar, a gente está falando em baratear medicamentos para o SUS, porque, na hora em que entra a iniciativa privada, senador e querido amigo Marcelo Castro, é óbvio que a concorrência vai baixar o medicamento, e o SUS vai comprar mais barato”, argumentou.
A senadora Mara Gabrilli (PSD-SP) se posicionou contrária à comercialização do plasma humano. “Faço novo apelo à relatora para que busquemos os meios de unir esforços para que a iniciativa privada participe da produção dos hemoderivados e que nos tornemos autossuficientes, é isso que a gente quer, mas a partir de doações”, pontuou.
Já o senador Rogério Carvalho (PT-SE) disse temer que a permissão da venda de plasma crie uma competição com a doação de sangue. “Na hora que você abre à comercialização, nós vamos ferir de morte a assistência, porque quando a pessoa sofre um trauma ou vai fazer um procedimento cirúrgico, a pessoa precisa de sangue. E se esse sangue for comercializado ou compensado, sabe para onde vai? Vai para a indústria. Vai faltar sangue na hora da cirurgia, vai faltar sangue na hora do trauma, vai faltar sangue”, ponderou.
O senador Humberto Costa (PT-PE), por sua vez, ressaltou que o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece esses medicamentos produzidos com plasma e que a PEC não impede que a iniciativa privada apenas compre o plasma do brasileiro e continue mandando para processar no exterior.
“Quando essa empresa pegar o plasma do povo brasileiro e mandar lá para a França, para fazer o processamento, quem vai garantir que ele mandou tudo de volta? É lógico que esse recurso, que esse plasma que vai para lá, ela vai comercializar na Europa e no resto do mundo”, afirmou.
Ao final do debate, a relatora Daniella Ribeiro disse que a comercialização não seria para a coleta, mas do produto fabricado após a coleta. “A intenção do projeto é a gente poder atender à demanda. Outras discussões serão feitas no âmbito da lei infraconstitucional, onde vamos estipular, por exemplo, o cuidado para não perder a doação de sangue, ligando a doação de sangue à de plasma”, finalizou.