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Não foi esclarecido sobre a remuneração e condições de trabalho das pessoas, observa a coordenadora-auxiliar do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública, Fernanda Balera
Ministério Público, Defensoria Pública e entidades do movimento social questionaram a proposta do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), de enviar moradores de rua da capital e mandá-los para trabalho no campo.
Tarcísio, que foi ministro da Infraestrutura do governo Bolsonaro, e teve o apoio do ex-presidente na disputa ao governo de São Paulo, planeja lançar em breve um programa batizado de ‘Saindo das Ruas’. Travestida de benefício, a proposta tem como um dos focos principais, a mudança de pessoas em situação de rua para o meio rural para trabalhar em pequenas propriedades agrícolas.
O plano vem sendo estruturado pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social. O envio da população alvo se daria através de incentivos a produtores rurais que contratassem pelo menos uma pessoa oriunda das ruas de São Paulo. A contrapartida seria o Estado comprar a produção em questão.
“Temos hoje no estado 187 mil famílias agricultoras que precisam de mão de obra, e cerca de 50 mil moradores de rua na cidade de São Paulo. É possível combinar as duas necessidades”, defende o secretário-executivo da pasta, Filipe Sabará, milionário expulso do partido Novo após defender a política do “rouba, mas faz” durante campanha à Prefeitura de São Paulo em 2020. Ele se filiou ao Republicanos para apoiar Tarcísio de Freitas.
Para promover a “limpeza da cidade”, Sabará diz ter conversado nos últimos meses com produtores e entidades agrícolas que se mostraram simpáticos à ideia, mas o custo com o transporte será bancado pelo Estado. “Perguntei se aceitariam que o estado comprasse 100% da produção em troca de empregar um morador de rua. Todos disseram que sim, até mais de um”, afirma.
Por sua vez, a população de rua será submetida a um trabalho de “abordagem qualificada” para “convencê-los” a mudar-se para o meio rural, que envolveria assistência emocional e socioeconômica.
CONDIÇÕES DE TRABALHO
O coordenador da Pastoral do Povo da Rua, Padre Júlio Lancellotti, levanta várias questões sobre o projeto. “Como seriam feitos os contratos? As pessoas teriam residência onde? Como seriam alojadas, seriam registradas? Como seria feito esse registro e quais os direitos trabalhistas que as pessoas teriam? Qual o salário? Os produtores estariam dispostos a receber? Seria uma pessoa só por produtor? Tudo isso precisa se saber antes”, diz.
A coordenadora-auxiliar do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública, Fernanda Balera, que ainda não teve acesso ao conteúdo do projeto, também manifesta preocupação com a ideia.
Ela questiona como se dará a prática de convencer o morador de rua a se mudar e aponta falta de informações sobre capacitação dos trabalhadores. Também não foi esclarecido sobre a remuneração e condições de trabalho das pessoas, observa Fernanda, que alerta também para a “possibilidade de empregos análogos à escravidão”.
O Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos (NCDH), também manifestou preocupação com uma eventual política de expulsão de pessoas em situação de rua. Em nota, o órgão informou que não teve acesso ao teor do programa e busca tomar conhecimento do projeto para, então, definir seu posicionamento e atuação, em caso de eventuais violações de direitos. “O que, caso verificado [violações de direitos], ofenderia o direito constitucional à liberdade e a diretriz da Política Estadual de Atenção Específica para a População em Situação de Rua (art. 4º, parágrafo 9, da Lei Estadual 16.544 de 2017) de respeito às singularidades de cada pessoa em situação de rua, com observância do direito de livre circulação entre municípios e a permanência nos municípios que forem mais convenientes à manutenção de sua vida e dignidade, conforme opção de cada indivíduo”, disse, em nota.
Ainda segundo o órgão, a Resolução nº 40 de 2020 do Conselho Nacional de Direitos Humanos também deve ser observada, já que estabelece no artigo 13 que “configura violação de direitos humanos a suspensão e expulsão de pessoas em situação de rua dos serviços públicos como forma de solução de conflitos”.
O governo alega que vai atuar junto com os órgãos de fiscalização das condições de trabalho.
O procurador de Justiça e professor de Direitos Humanos Eduardo Dias Ferreira observa que nem todos estão em situação de rua por falta de emprego. Segundo ele, um programa assim precisa garantir os direitos dos trabalhadores. “A questão do emprego, do trabalho, é uma das portas de saída para população em situação de rua, mas para essa solução nós precisaríamos pensar na complexidade do tema, o que leva essas pessoas e pensar nesse trabalho também com as condições de trabalho”, disse ao g1.
“Ela implica, por exemplo, em ter empregados em pouca quantidade, porque a maior parte dessa produção é feita pela família e muitas vezes esse próprio produtor já tem sua condição de moradia, ele nem mora mais na propriedade com medo de roubos e assaltos, mora na cidade, vai trabalhar durante o dia na propriedade, como é a condição de alojamento dessas pessoas?”, questionou.
Para o presidente do Movimento Estadual da População de Rua de São Paulo, Robson Mendonça, a característica de levar pessoas para trabalho em propriedades rurais é preocupante, considerando a vulnerabilidade dessa população e o contexto de ocorrência de trabalho análogo à escravidão no setor.
“Quem garante que essa população não vai ser explorada, trabalhar [em situação] análoga à escravidão, com essa desculpa de levar para fazenda para ter ocupação? Então eu vejo esse projeto completamente negativo, eu acho que devia ser melhor estudado. A gente não sabe qual é a fazenda que vão ser encaminhados, não sabe qual é a metodologia que vai ser usada, então eu, de início, sou totalmente contra esse programa do governo”, disse Robson à Agência Brasil.
Ele avalia que “um projeto satisfatório seria reunir os movimentos de população em situação de rua, as entidades que trabalham com população em situação de rua e a população de rua e ver a maneira mais viável, mais aceitável para que haja um projeto, não de cima para baixo, mas de baixo para cima, capaz da recuperação e da inclusão social das populações”.
Luiz Kohara, fundador do Centro Gaspar de Direitos Humanos, também critica a falta de diálogo com a sociedade. Ele alerta que empresas e trabalhadores precisam estar preparados para um programa como este. “Primeiro as empresas estarem preparadas e com disposição de fazer esse trabalho, porque as pessoas que estão em situação de rua, muitas vezes, até chegar na rua, ela chega com muitas vulnerabilidades. O trabalho é uma das necessidades que ela tem, mas ela também precisa de outros apoios, dependendo de cada situação”, disse.
“E também as pessoas precisam estar preparadas para esse tipo de trabalho. Tem o risco, porque a gente escuta e vê muitas situações em que as pessoas, principalmente as mais fragilizadas, mais vulnerabilizadas e mais simples, acabam se submetendo a trabalho escravo. Precisa ter um controle social para realmente ser um processo de inserção social”, acrescentou.
Em relação ao tipo de abordagem com maiores chances de sucesso para reinserir a população em situação de rua, Kohara aponta que experiências, inclusive internacionais, revelam ser importante garantir moradia.
“O básico e estruturante é primeiro de tudo garantir a moradia dessas pessoas e, junto com a moradia, que a pessoa tenha uma estabilidade, ter apoio na área da saúde, que até a própria situação de rua leva para muitas condições de problema de saúde. E depois também o trabalho. Esse tripé, para quem está em situação de rua, é fundamental porque ela vai criando um processo, tendo uma moradia, tendo um tratamento e tendo acesso ao trabalho e renda, ela vai se fortalecendo e vai ganhando autonomia. E ela vai construindo todo um processo de ir ela mesma dando os passos da própria vida”, disse.
FARINATA
Sabará, ferrenho defensor do projeto, é o sujeito da “farinata”, um alimento feito com sobras de outros alimentos desidratados que seria oferecida na merenda escolar durante a gestão do ex-prefeito de São Paulo João Doria, e que acabou não acontecendo devido às críticas recebidas.
O produto ficou conhecido como “ração humana”. O “faria limer”, que à época era titular da mesma secretaria em que se encontra hoje, mas no âmbito municipal, protagonizou uma cena grotesca envolvendo o produto durante uma entrevista.
Convidado por um jornalista a experimentar a “ração”, ele mastiga o alimento granulado, faz cara de quem não gostou e demonstra dificuldade para engolir, mas, ao ser questionado sobre o que achara, desconversou: “Vai do gosto de cada um”.