Presidente Boric chama sociedade civil e Congresso chileno a construir um “novo itinerário constituinte que reflita a ampla maioria cidadã”.
O não ao texto constitucional aprovado pela Convenção Constituinte saiu-se vencedora, por larga margem, no plebiscito no Chile neste domingo (4), em que 12,5 milhões de eleitores participaram. O “rejeitar” obteve 62% – aliás, mais do que as pesquisas indicavam – contra 38% do “aprovar”.
Em pronunciamento ao país, o presidente Gabriel Boric afirmou que a democracia chilena saiu “mais robusta” e que é assim que “o mundo inteiro a viu e reconheceu”. “Um país que em seus momentos mais difíceis opta pelo diálogo e acordos para superar suas fraturas e dores, e devemos nos orgulhar disso”, acrescentou.
A segunda mensagem, disse Boric, “é que o Chile não ficou satisfeito com a proposta de constituição que a convenção apresentou ao povo e, portanto, decidiu rejeitá-la claramente nas urnas”.
Decisão dos cidadãos que “exige das nossas instituições e atores políticos que trabalhemos com mais esforço, com mais diálogo, respeito e carinho até chegarmos a uma proposta que nos interprete a todos, que confie em nós e como país”.
Ele convocou a deixar de lado definitivamente “o maximalismo, a violência e a intolerância” e acrescentou ter recebido essa mensagem “com muita humildade”.
BORIC: “OUVIR A VOZ DO POVO”
“A voz do povo deve ser ouvida, não apenas neste dia, mas em tudo o que aconteceu nos últimos anos”, destacou, apontando que “não vamos esquecer por que chegamos aqui, esse mal-estar ainda está latente e não podemos ignorá-lo”.
Boric prometeu “fazer tudo” de sua parte para a construção, junto com o Congresso e a sociedade civil, de um “novo itinerário constituinte que nos dê um texto que, reunindo os aprendizados do processo, consiga interpretar uma ampla maioria cidadã”.
“Amanhã cedo me reunirei com os presidentes de ambas as câmaras e outras autoridades para avançar o mais rápido possível nessa direção e durante a próxima semana realizaremos uma rodada de conversas para reunir as propostas dos diferentes setores que comprometidos em estabelecer um novo processo constituinte”, adiantou.
Por fim, exortou as diferentes forças políticas do país a “pôr à frente qualquer divergência legítima e acordar o quanto antes os prazos e as fronteiras de um novo processo constitucional, contarão comigo para facilitar esse entendimento em que o Congresso deve ser o grande protagonista”.
Em suma, há urgência em enterrar de vez a putrefata constituição pinochetista, para que o Chile possa avançar.
DOBRO DOS VOTOS DE KAST
Um dado expressa bem o descrédito que atingiu o texto apresentado pela Convenção constitucional:o “rejeita” obteve mais de 7,5 milhões de votos – mais que o dobro do número que o então candidato presidencial José Antonio Kast [neofascista] conseguiu no segundo turno das eleições em que foi derrotado por Boric.
No plebiscito de 2020, que abriu o processo constitucional, depois das maiores manifestações no Chile em décadas, venceu por 78% a exigência popular de uma nova constituição para substituir a carta de Pinochet – esta, política, econômica e socialmente falida.
O voto no plebiscito foi obrigatório, ou seja, a participação dos eleitores foi 4,2 milhões de votos acima da verificada no segundo turno da eleição presidencial, de 8,3 milhões.
“HUMILDEMENTE”
Em nome da campanha pela aprovação, os deputados Vlado Mirosevic e Karol Cariola disseram aceitar “humildemente este resultado e seu conteúdo”. “Depois de um dia de participação histórica, que muito valorizamos, os cidadãos decidiram rejeitar o texto da Convenção Constitucional. Como comando da Aprovação, reconhecemos esse resultado e aceitamos humildemente o que o povo tem manifestado”, acrescentou.
Por sua vez, Cariola fez “um apelo à calma” e ao orgulho “do trabalho realizado”, e chamou a continuar em direção a um novo projeto constitucional. Lembrando os 78% que votaram pela nova constituição em 2020, ela afirmou que esta “vontade forte e clara” que nos trouxe até hoje “não se perde com este resultado”. “A constituição de 1980 não nos une nem nos representa, a decisão de nos darmos uma nova constituição ainda é válida hoje e foi reconhecida pelos representantes da Rejeição”, sublinhou. “A Constituição do abuso e da ditadura ficará no passado”, enfatizou.
Um dos porta-vozes da campanha pela rejeição, Claudio Salinas, comemorou o resultado, chamando a “seguir em frente”, e alegando que “o Chile não exige mais divisão, não pode suportar mais incertezas”. Outra apoiadora da rejeição, a senadora Ximena Rincón, da Democracia Cristã, bateu na mesma tecla, chamando o resultado de resposta a “um texto ruim” que “não une o país, não atende às necessidades urgentes, as confronta” e não “dá respostas para o que o país estava processando”.
SEM RELÂMPAGO EM CÉU AZUL
A vitória da rejeição não foi, por assim dizer, “um relâmpago em céu azul”. Nos últimos dias, a campanha do “sim” havia feito um enorme esforço para reverter o isolamento da constituição proposta pela Convenção Constitucional, constatado em pesquisas, e até conseguiu reunir 250 mil no ato de encerramento.
Mas ficou muito aquém de atender aos questionamentos de largos setores da sociedade chilena, que, como o resultado do plebiscito mostra, não se sentiram contemplados ou confiantes no texto deliberado.
Já em maio, segundo pesquisa do instituto Candem, o “rejeito” já superava o “aprovo” por 13 pontos percentuais, 48% a 35%. Um mês e meio mais cedo, o “aprovo” estava na frente por 46% a 36%, embora já com viés de queda.
Erros cometidos pelos constituintes – como usar grande parte do tempo inicial para discutir seu funcionamento e não as propostas -, o fascínio pelo identitarismo, assim como a pretensão de deliberar sobre temas sobre os quais não havia o consenso mínimo necessário na sociedade chilena, como a eutanásia ou a desmilitarização dos carabineros [polícia militar], facilitaram difundir na população a desconfiança sobre a Carta Magna proposta.
Em paralelo, a alta da inflação, sob o impacto da alta internacional dos combustíveis, teve como impacto uma rápida queda na popularidade de Boric, identificado com os setores majoritários do processo constituinte.
Ainda, a proposta de eliminação do Senado certamente facilitou coesionar setores políticos chilenos de peso nos esforços para barrar a nova carta, em particular os próprios senadores, cujo mandato se extinguiria com o “Aprovo”.
Além da desinformação em massa, como os rumores de que a nova carta colocaria em risco “a propriedade privada” e os “fundos de pensão”, apesar de ser uma de tantas fake news sobre o verdadeiro conteúdo da carta.