“Ameaça de invadir Seattle – dividir e incitar a violência em nossa cidade – é ilegal”.
“Faça-nos seguros: volte para o seu bunker”, respondeu a prefeita de Seattle Jenny Durkan após ameaça do presidente Trump, pelo Twitter, de invadir a cidade para aplastrar uma manifestação pacífica que o New York Times descreveu como um misto de “festival de rua e comuna” e nomeada pomposamente como “Zona Autônoma do Capitólio Livre”, na frente de um prédio de distrito policial abandonado, e onde não haveria necessidade de polícia, segundo os 500 participantes.
“O governador de esquerda radical Jay Inslee [o governador de Washington] e a prefeita de Seattle [Jenny Durkan] estão sendo ridicularizados e ignorados a um nível que nosso grande país nunca viu antes. Recuperem sua cidade agora. Se não, eu irei. Isso não é um jogo. Esses anarquistas feios devem ser parados imediatamente. Movam-se rápido!”, tuitou Trump.
A declaração da prefeitura se referia ao episódio, no quinto dias dos protestos contra o linchamento de George Floyd por um policial racista, em que o presidente foi conduzido às pressas pelo serviço secreto para o bunker subterrâneo da Casa Branca, diante da indignação que campeava nas ruas da capital dos EUA. Mais tarde, Trump asseverara não foi se esconder no bunker, mas “inspecionar”.
“Um homem totalmente incapaz de governar deve ficar fora dos assuntos do estado de Washington”, escreveu Inslee, que aproveitou para zombar de um erro de digitação de Trump no tweet do “se não, eu irei”.
Mesmo esse “se não, eu irei”, era para alegrar os corações dos fanáticos dele, que estão em estado de choque por verem estátuas confederadas derrubadas e por terem de ocultar aquelas fantasias de kukluxman.
Afinal,“Eu não devia estar lá”, havia acabado de dizer o chefe do Estado Maior dos EUA, general Mark Milley, pedindo desculpas por ter se envolvido na foto-encenação de Trump, na frente de uma igreja episcopal, depois de uma manifestação pacífica ser varrida no porrete, gás lacrimogêneo e bala de borracha.
Em coletiva de imprensa na quinta-feira (11) a prefeita Durkan acrescentou que “a ameaça de invadir Seattle – dividir e incitar a violência em nossa cidade – não só não é bem-vinda, seria ilegal”.
Como ela destacou, a esmagadora maioria dos protestos em Seattle foi pacífica e uma das coisas que Trump jamais entenderá é que “ouvir a comunidade não é fraqueza, é força”.
“Protestos pacíficos são fundamentalmente americanos, e estou esperançoso de que haja uma resolução pacífica”, disse o governador Inslee, que lembrou que ainda “estamos em uma pandemia” e que isso precisa ser levado em conta.
“O que não permitiremos são ameaças de violência militar contra washingtonianos vindos da Casa Branca”, enfatizou.
No prédio abandonado do distrito, há uma placa improvisada: “Departamento de Pessoas de Seattle”.
Um manifestante, apenas identificado como Rooks, disse à emissora Komo, uma afiliada da CNN, que a manifestação é pacífica. “Não é nada agressivo ou violento ou nada disso”, disse Rooks. “Nós não viemos aqui para nada disso. Tudo o que queríamos era o que é igual e o que é certo.”
Um morador, Christopher Derrah, relatou à Komo que “há pessoas tendo aulas, palestras, discussões políticas”. A funcionária de uma cafeteria próxima, Kate Van Petten, chamou o local de “zona antirracista”. “Estamos preparando café grátis para os manifestantes e fazendo tudo o que podemos para apoiá-los”, disse ela.
O repórter Dan Simon relatou que por dias, durante os protestos contra a morte de George Floyd, houve confrontos violentos na região e a polícia, tentando desescalar a situação, “essencialmente abandonou” o prédio da delegacia e a área foi ocupada pelos manifestantes. Alguns poucos policiais foram mantidos no interior do prédio da delegacia para zelar por ele.
A situação está tranquila no momento. “Realmente dá a sensação de um festival de rua”, disse Simon. “Há pessoas servindo comida para a multidão, há uma tenda médica montada, e os manifestantes até assistem filmes e tocam música ao vivo à noite”. Alguns poucos policiais foram mantidos no interior do prédio da delegacia.
No fundamental, a “zona livre antirracista” é uma das muitas formas com que, nos EUA, a população busca descartar o racismo enrustido e criar novas formas de convivência respeitosa, como visto nos atos em que policiais e manifestantes ajoelhavam como ensinara Colin Kaepernick, assimilando todo o horror do linchamento de Floyd, mas tornando essa tragédia em uma possibilidade de reconciliação, na medida em que jamais tantos brancos assumiram como sua a repulsa ao racismo.
Como em Minneapolis, onde o conselho da cidade quer substituir o departamento de polícia irrecuperável por uma nova estrutura de segurança pública, sem os cacoetes do racismo e de tratar como tropa de ocupação ao povo pobre. Ou em Louisville, onde o conselho proibiu o mandato em que a polícia pode invadir sem se identificar. Ou em Houston, onde foram banidos os golpes de estrangulamento.
Ou como a proposta de reforma dos democratas que, segundo pesquisas, conta com amplo apoio, inclusive entre eleitores republicanos, para boa parte do que propõe.
Já Trump acaba de anunciar a retomada dos seus comícios da reeleição, começando por Tulsa, e na data do fim da escravidão nos EUA e do massacre de 1921 de negros, uma das maiores manchas da história norte-americana. “Um tapa na cara”, disseram líderes antirracismo.
Culpado, por sua inépcia e obscurantismo, por mais mortes de norte-americanos pelo coronavírus do que nas guerras da Coreia, Vietnã e Iraque somadas, e com a economia em destroços pela pandemia e metástase do rentismo, Trump se aferra ao lema do “presidente da lei e da ordem”, apavorado com o significado em novembro de os negros motivados como nunca para votar e ajudarem a derrubar mais do que estátuas confederadas.