Bolsonaro declarou, na terça-feira, que os assassinatos da ditadura são “balela”. Com seu peculiar domínio do português (e da lógica), disse ele:
“Não existem documentos se matou, não matou, isso aí é balela. Você quer documento para isso, meu Deus do céu. Documento é quando você casa, você se divorcia. Eles têm documentos dizendo o contrário?”
A declaração foi depois de um encontro com o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), quando repórteres lhe perguntaram sobre a interpelação do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, para que esclarecesse suas declarações a respeito do desaparecimento de seu pai, Fernando Santa Cruz.
Algo gaguejante, Bolsonaro respondeu: “O que eu sei é que não tem nada escrito de que foi isso ou foi aquilo”.
Apenas um dia antes, ele dissera:
“Um dia se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele”.
Horas depois, afirmou que Fernando Santa Cruz foi morto por seus próprios companheiros (“Eles resolveram sumir com o pai do Santa Cruz”).
Fernando Santa Cruz, pai do presidente da OAB, é um dos casos de “desaparecimento”, durante a ditadura, mais bem documentados – inclusive com documentos das Forças Armadas que registram a sua prisão – devido aos esforços de sua família, que recorreu até a figuras militares, como o marechal Juarez Távora, que apoiavam aquele regime (a pedido da mãe de Fernando Santa Cruz, nove meses após o seu desaparecimento, Távora enviou carta ao então comandante do II Exército, Ednardo D’Ávila Mello, pedindo esclarecimentos – o que foi, aliás, em vão; v. CNV, vol. 3, p. 1605).
Apenas 24 h depois de suas declarações, Bolsonaro recuou, agora, para dizer que não existem documentos (“O que eu sei é que não tem nada escrito de que foi isso ou foi aquilo”).
O presidente da OAB anunciara que ia entrar com interpelação no Supremo Tribunal Federal (STF) – isto é, com pedido para que Bolsonaro dissesse o que sabia sobre o desaparecimento de seu pai.
Fernando Santa Cruz é, há muito, um mártir e um símbolo da luta pela liberdade.
“Em Recife, seu nome foi atribuído a uma praça e a uma escola pública, na rua Boanerges Pereira. O Teatro de Arena, na cidade de Olinda (PE), também recebeu seu nome. No estado do Rio de Janeiro, o Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal Fluminense (UFF) e uma rua no bairro Recreio dos Bandeirantes também foram batizadas com o nome de Fernando. A UFF, onde Fernando ingressou no curso de Direito, também o homenageou com a produção do filme 25 anos sem Fernando (1999). Além das homenagens listadas, a mãe de Fernando, Elzita, que sempre se empenhou na busca pelo paradeiro do filho, lançou em 1984 o livro Onde está meu filho?, contando a história da eterna busca da família por seu ente querido” (op. cit., p. 1602).
Fernando Santa Cruz também é o patrono do Diretório Acadêmico dos estudantes de Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), desde que foi reaberto, em 1979, depois de anos de fechamento, durante a ditadura.
Em entrevista à BBC, seu filho, Felipe Santa Cruz, disse, sobre as declarações de Bolsonaro:
“Eu não acho que seja um ataque a mim. Claro que me dói pela violência, pela crueldade, pela falta de empatia. Mas acho que é muito mais grave, é um ataque à memória dos que lutaram pela democracia, pela construção democrática do país, que passa pela Constituição de 1988. É um gesto de rancor com a democracia.”
Abaixo, a íntegra da entrevista do presidente da OAB.
BBC News Brasil – Bolsonaro mencionou o desaparecimento de seu pai subitamente quando falava sobre a atuação da OAB no caso Adélio Bispo. Qual foi, no seu entender, a motivação do presidente da República para esse ataque?
FELIPE SANTA CRUZ – Essa parte eu te confesso que eu não consigo chegar a uma conclusão, porque o presidente da República age de formas muito tortuosas. As estratégias dele não são claras para mim.
Ele tem um grave problema com a memória do meu pai, já fez ataques à memória do meu pai anteriormente, mas nada nessa escala que ele imprimiu hoje (na segunda-feira), introduzindo fatos novos, que ele diz conhecer e que eu estranho muito, porque são fatos que escapam a toda a historiografia do país. Então assim, ele teria que ter tido acesso direto à tortura ou a pessoas que torturaram, na época da ditadura.
Então é muito grave o que ele afirmou, e eu não sei qual é a finalidade disso. Só estou realmente impactado porque (a fala) abre ainda mais ódio, reabre feridas do país, que foram feridas difíceis de serem curadas, de serem superadas.
A própria OAB teve parte nisso, com a Lei de Anistia. O país há muitos anos tenta superar essas feridas. O governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) reconheceu essas mortes… todo o processo de redemocratização foi em cima dessa pacificação. O presidente hoje parece ter tomado a decisão de reabrir velhas feridas.
BBC News Brasil – O desaparecimento do seu pai é um crime imprescritível. Se o presidente admite ter informações sobre este assunto, isso faz dele uma testemunha.
FELIPE SANTA CRUZ – Sim, ele é presidente da República e fez um juramento de contar a verdade. Tanto que eu vou ao Supremo interpelá-lo. Estamos discutindo qual o melhor instrumento. Vamos interpelá-lo para que ele esclareça se ele soube (sobre o desaparecimento), quem contou, quando, detalhes. Não só do meu caso, mas de outros desaparecidos.
(Se) ele, como mandatário da República, tem informações que interessam a centenas de famílias, é muito importante que ele venha a público esclarecer de forma séria. De forma que seja compatível com o cargo que ele exerce, que é o de supremo mandatário da República.
BBC News Brasil – Do ponto de vista da democracia, não é grave que um presidente da República parta para um ataque tão pessoal e dolorido?
FELIPE SANTA CRUZ – Eu não acho que seja um ataque a mim. Claro que me dói pela violência, pela crueldade, pela falta de empatia. Mas acho que é muito mais grave, é um ataque à memória dos que lutaram pela democracia, pela construção democrática do país, que passa pela Constituição de 1988. É um gesto de rancor com a democracia.
BBC News Brasil – O sr. era pequeno quando o seu pai desapareceu. O sr. pode contar um pouco sobre a figura do seu pai?
FELIPE SANTA CRUZ – Eu tinha menos de dois anos (quando do desaparecimento). Meu pai é um desaparecido paradigmático. Ele dá nome a um diretório acadêmico (o diretório do curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco, em Recife).
Eu digo que é isso por conta de ele ser quase uma vítima civil da ditadura. Ele era estudante, servidor público, com endereço conhecido. Um líder estudantil, mas que não era uma grande liderança. Ele tinha irmãos que foram para o exílio, então ele tinha um grande compromisso com a democracia, e mantinha relações com pessoas que lutavam contra a ditadura.
Então ele é essa vítima, digamos assim, estudante, jovem. Que mostra que os processos autoritários matam qualquer defensor da ideia de liberdade. Mesmo que ele não seja uma grande liderança. Meu pai não era essa grande liderança da resistência democrática. Era um menino, estudante.
BBC News Brasil – O presidente pode ter incorrido em crime quando faz a defesa da tortura?
FELIPE SANTA CRUZ – Pode. Pode.
Aí há uma lista de possíveis crimes que ele pode estar incorrendo sim. (A começar pela) falsidade, a dar declaração falsa, provavelmente num arroubo verbal. É uma tentativa permanente de dividir a sociedade.
Ele tem um claro problema para dividir o que é público do que é privado, e isso se dá na forma de comunicação dele. É um presidente que apresenta grandes desafios para a democracia brasileira.
BBC News Brasil – Então o sr. duvida que Bolsonaro tenha de fato alguma informação sobre o caso.
FELIPE SANTA CRUZ – Eu acho que essas informações não teriam sido guardadas por ele por tanto tempo. Se ele tiver, que ele venha a público e esclareça. Acho que é mais um gesto de irresponsabilidade, como vários outros que ele fez.
BBC News Brasil – O sr. acha que mereceria algum tipo de reparação nesse caso?
FELIPE SANTA CRUZ – Eu já tive. O poder público reconheceu o desaparecimento do meu pai. O Poder Judiciário, numa decisão transitada em julgado, reconheceu o desaparecimento.
Veja, a redemocratização do país já é uma reparação. Óbvio que nós gostaríamos de saber os detalhes do desaparecimento, e a minha avó morreu sem saber onde estava o corpo do filho dela. Mas isso é parte desse dramático processo histórico.
Agora, é terrível o presidente reabrir. Reabrir velhas feridas, e ultrapassou hoje, acho, limites… Todas as correntes políticas do Brasil se solidarizaram, inclusive pessoas do partido do presidente. O presidente da Câmara (Rodrigo Maia, DEM-RJ), o governador de São Paulo (João Doria, PSDB), os governadores do Nordeste.
O presidente da República mexeu hoje, digamos assim, com todos os democratas do Brasil. Ele conseguiu ultrapassar as questões ideológicas do dia a dia, da conjuntura, e ofendeu todos aqueles que são democratas no Brasil.
BBC News Brasil – Alguma colocação final?
FELIPE SANTA CRUZ – É estranho que um presidente da República que baseia toda a sua… Meu pai era um militante católico. Era extremamente católico. E eu estranho que um presidente da República que baseia toda a fala dele em preceitos cristãos, em Deus, que tem Deus no seu slogan de campanha, tenha condutas que são tão contra o que prega o pensamento cristão. Tão de ódio, raiva, rancor. E não de amor e solidariedade. Ele deveria se preocupar em governar para todos os brasileiros e não em reabrir feridas terríveis da sociedade brasileira.
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