“Nenhum país de significativa participação de hidroelétricas privatizou totalmente seu setor elétrico. Estados Unidos, Canadá, Rússia, Índia, China, Suécia e Noruega são os membros desse seleto clube de privilégio geográfico que o Brasil acaba de se desligar”
O engenheiro e professor Roberto D’Araújo, uma das maiores autoridades em energia do Brasil, apresenta neste importante estudo, que o HP divulga hoje em primeira mão aos seus leitores, as consequências negativas para o Brasil da era das privatizações, onde mais de 100 empresas públicas foram vendidas desde o final da década de 1980 e início de 1990 até hoje.
O texto lista as principais privatizações e demonstra que o crescimento do PIB do Brasil neste período, de 1980 a 2022, comparado à média do mundo, foi bastante decepcionante. As diferenças acumuladas entre 1980 e 2022 chegaram a 63%. O setor industrial foi o mais atingido. Ou seja, o país ficou para trás, na comparação com o resto do mundo. D’ Araújo adverte que “se parte do capital é usado apenas para transferência de propriedade, nada novo é construído!”
O especialista lembra, ainda que o caso da Eletrobrás é ponto extremo desse descaminho. “A Eletrobrás privada é uma incoerência com a própria história, pois apenas 8% das nossas usinas hidráulicas nasceram de iniciativas privadas. A grande maioria foi adquirida de empresas estatais”, diz ele. Confira!
PRIVATIZAÇÃO E CRESCIMENTO
ROBERTO PEREIRA D’ ARAÚJO*
Apesar de diversos motivos poderem ter relação com a pífia evolução da economia brasileira nos últimos 40 anos, as privatizações se destacam nas pautas da grande mídia. Visões antagônicas são classificadas como ideológicas, mas, quem frequentemente coloca esse tema sempre na “berlinda” é a própria imprensa.
O discurso tem sido mantido sem reconhecer que, de 1990 até 2022, o Brasil privatizou mais de 100 empresas, sendo o recordista no mundo. Se há realmente um cuidado com os destinos do país, o mínimo que se pode fazer é examinar os resultados dessa longa experiência. É essa análise que se apresenta aqui.
“O Brasil privatizou mais de 100 empresas, sendo o recordista no mundo”
No governo Sarney (1985 – 1990) as privatizações são classificadas como “tímidas” em comparação aos outros períodos iniciados a partir da década de 90, mas, segundo dados do BNDES, 18 estatais foram privatizadas, entre elas, Aracruz Celulose, Sibra, Caraíbas Metais e a Companhia Brasileira de Cobre (CBC).
O governo Collor (1990 – 1992) focou a venda em 3 setores: Siderurgia, Petroquímica e Fertilizantes: Usiminas, Piratini, CST, Acesita, Petroflex, Copesul, Álcalis, Nitriflex, Fosfertil são alguns exemplos. E qual foi a performance da economia brasileira nesse período? Segundo dados do FMI ou do Banco Mundial, o PIB brasileiro caiu 3,7% enquanto a média mundial se expandia com 4,7%.
O governo Itamar Franco (1992 – 1994) vendeu a Embraer e a Companhia Siderúrgica Nacional e, nesse período o Brasil cresceu 6,14% em relação a 1992, mas o mundo já expandia sua economia em 12,5%.
O governo Fernando Henrique (1994 – 2002) privatizou 80 empresas de muitos setores. Vale, Telebras, Embratel, bancos, diversos portos, muitas distribuidoras estaduais de energia e a Gerasul da Eletrobras. Nesses 8 anos o PIB do Brasil aumentou cerca de 20%, mas o PIB médio mundial cresceu 32%.
O governo Lula (2003 – 2010) fez uma mudança na forma das privatizações através do formato de concessões. As usinas do rio Madeira (Jirau e Santo Antônio) e Teles Pires foram concessionadas com a participação minoritária da Eletrobras. Diversas concessões de trechos rodoviários foram implementadas. O mesmo processo foi feito para alguns aeroportos, tais como os do Galeão e Viracopos. Nesses 8 anos o PIB brasileiro cresceu cerca de 38% e o mundo cresceu 40%. Entretanto, essa melhor performance não alterou a trajetória de perda.
O governo Dilma (2011 – 2016) manteve a políca de concessões de transporte rodoviário e linhas de transmissão, mas privatizou o IRB-Brasil Resseguros e continuou a concessão de aeroportos existentes, como Guarulhos, Cofins e Brasília. Nesse período o PIB brasileiro praticamente não cresceu enquanto o mundo cresceu 25%.
O governo Temer (2016 – 2018) retomou privatizações nos moldes da década de 90. Usinas, portos, aeroportos e rodovias, mas não conseguiu concluir a maioria dos projetos em sua administração. Foram vendidas a Eletro Acre e a Ceron. O Brasil cresceu seu PIB em menos de 1% enquanto o mundo cresceu 8,8%.
Finalmente o governo Bolsonaro (2018 – 2022), sob um discurso totalmente privasta, vendeu Eletrobras, Companhia Docas do Espírito Santo, BR Distribuidora e Liquigás. O Brasil cresceu 2,6% e o mundo 13%.
Diferenças acumuladas entre 1980 e 2022 foi de 63%. Ou seja, o crescimento do PIB do Brasil, comparado à média do mundo foi bastante decepcionante.
“Se novos investimentos não forem exigidos, o capital se retrai. Afinal, os recursos financeiros não são ilimitados e, se parte do capital é usado apenas para transferência de propriedade, nada novo é construído!”
Se esses dados não são suficientes para nos advertir que algo de muito errado se deu nesse processo, certamente não deciframos o mistério de repasses de estatais para o capital privado. Na verdade, esses resultados nem deveriam nos surpreender, pois a venda de ativos prontos não implica necessariamente em crescimento. Se novos investimentos não forem exigidos, o capital se retrai. Afinal, os recursos financeiros não são ilimitados e, se parte do capital é usado apenas para transferência de propriedade, nada novo é construído!
Dentre todos esses exemplos, alguns setores deveriam ser privatizados mesmo. Por muitas razões, o estado foi obrigado a atuar em muitos setores que, se não existissem, comprometeriam a economia gravemente.
Todavia, alguns outros envolvem questões da geografia, da água, da ocupação territorial, do transporte, e outras demandas. O caso da Eletrobrás é ponto extremo desse descaminho, pois até o planeta tenta nos ensinar. Nenhum país de significativa participação de hidroelétricas privatizou totalmente seu setor elétrico. Estados Unidos, Canadá, Rússia, Índia, China, Suécia e Noruega são os membros desse seleto clube de privilégio geográfico que o Brasil acaba de se desligar.
A Eletrobrás privada é uma incoerência com a própria história, pois apenas 8% das nossas usinas hidráulicas nasceram de iniciativas privadas. A grande maioria foi adquirida de empresas estatais.
Desde a adoção do sistema mercantil que impôs um grande mimetismo de sistemas de predominância térmica, a evolução da tarifa de energia elétrica brasileira mostra um encarecimento que ultrapassa o dobro da inflação desde 1995. Furtos de energia em ascensão mostram que a população mais pobre não está mais conseguindo encaixar e conta no orçamento doméstico.
Dados utilizados: Comparação de crescimento entre países:
htps://www.imf.org/external/datamapper/NGDP_RPCH@WEO/OEMDC/ADVEC/WEOWORLD
Dados históricos das privatizações:
htps://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/transparencia/desestatizacao/processos-encerrados/Privatizacao-Federais-PND
*ROBERTO PEREIRA D’ ARAÚJO é Engenheiro Elétrico pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). M. Sc. em Engenharia de Sistemas e Controles, também pela PUC-Rio. Pós-graduado em Power Systems Operation & Planning pela Waterloo University, no Canadá. Fez estágio técnico na Bonneville Power Administration, em Oregon, nos Estados Unidos. Foi chefe de departamento de Estudos Energéticos e de Mercado na Furnas Centrais Elétricas. Professor do curso de pós-graduação executiva em Petróleo e Gás do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE) e professor da Escola de Políticas Públicas e Governo da Universidade Cândido Mendes.