A carestia tem sido um dos temas que mais preocupa os brasileiros em tempos de Bolsonaro. Metade da população sofre com algum nível de insegurança alimentar e quase 20 milhões de pessoas estão passando fome no país. Mas dito assim talvez torne mais difícil visualizar o tamanho do problema e casos do dia a dia cumprem o papel de evidenciar o tamanho da crise.
Uma matéria divulgada pela BBC, nesta quinta-feira (18), trouxe o relato de uma professora da rede municipal do Rio de Janeiro que conta como uma aluna do ensino fundamental I, com apenas oito anos de idade, de uma escola do complexo de favelas da Zona Norte carioca, desmaiou de fome em sala de aula. O episódio narrado aconteceu em setembro deste ano.
“Essa aluna chegou bem atrasada. Ela bateu na porta da sala de aula, eu abri e notei que ela não estava bem, mas não consegui entender o porquê. Passei álcool na mão dela e senti a mão muito gelada, em um dia em que não estava frio para justificar”, conta a professora.
“Ela sentou e abaixou a cabeça na mesa. Eu estranhei e chamei ela à minha mesa. Ela veio e eu perguntei se ela estava bem. Ela fez com a cabeça que estava, mas com aquele olhinho de que não estava. Perguntei se ela tinha comido naquele dia, ela disse que não. Fui pegar algo para ela na minha mochila — porque eu sempre levo um biscoitinho ou uma fruta para mim mesma. Mas não deu tempo. Ela desmaiou em sala de aula”, continua.
O mais chocante é que não se trata de um caso isolado. Professores da rede pública de todo o Brasil relatam episódios semelhantes.
Outra professora dessa vez da cidade de Sumaré, no interior de São Paulo, viu um de seus alunos desmaiar de fome na aula de educação física.
“Não foi o primeiro caso. Com a volta às aulas presenciais, depois da pandemia, temos observado vários casos de alunos passando por necessidade. Casos de fome mesmo, de que o único alimento que o aluno tem é na escola”, conta a professora.
De acordo com a professora, a escola estadual conta com apenas uma refeição por turno, na hora do intervalo (10h para os alunos da manhã e 16h para os da tarde).
“Nesse caso, nós percebemos na educação física, porque o aluno desmaiou na quadra. Aí, conversando, ficamos sabendo que ele ainda não tinha se alimentado naquele dia e já era o período da tarde”, relata a educadora.
O menino tem outros irmãos e a mãe dele, que cuida das crianças sozinha e mora de aluguel, estava desempregada.
Outro estudo, dessa vez da Universidade Livre de Berlim, mostra que a fome – insegurança alimentar grave na linguagem técnica — atingia 15% dos domicílios brasileiros em dezembro de 2020. Nas casas com crianças e jovens com idades entre 5 e 17 anos esse percentual chegava a 20,6%.
O impacto da fome na aprendizagem
Talvez seja fácil perceber o quanto a fome pode impactar as atividades do dia a dia: mal humor, dificuldade de atenção nas atividades mais simples, todo mundo já deve ter passado por algo num dia corrido em que não sobrou tempo sequer para comer. Mas esse não é apenas um problema de um dia corrido para esse contingente de quase 20 milhões de pessoas e, com certeza, tem impactos ainda mais severos sobre a aprendizagem e desenvolvimento das crianças. Um presente do governo Bolsonaro.
Após o período de fechamento das escolas e do necessário distanciamento social para combater a pandemia do novo coronavírus, os estudantes enfrentam os efeitos da perda de emprego e renda dos pais e do falecimento de avós que muitas vezes sustentavam a família com suas aposentadorias.
Os professores alertam que os estudantes estão abandonando os estudos para trabalhar e ajudar suas famílias na geração de renda e crianças moradoras de favelas estão em alguns casos mudando para regiões ainda mais precárias das comunidades, devido ao custo do aluguel.
Na matéria da BBC, a professora da cidade de Sumaré observa que as crianças em situação de privação de alimento têm dificuldade de aprendizado. “A criança com fome não consegue se concentrar. Falta energia nela. Crianças normalmente têm muita energia, então você percebe a apatia”, diz a educadora.
Para tentar amenizar o problema, os professores organizaram uma campanha para recolher doações, após o primeiro episódio de um aluno que passou mal por fome. “Conseguimos muito alimento e passamos a distribuir às famílias. Você vê a diferença, o aluno vem mais ativo, com mais energia, e as mães ficam muito agradecidas”, conta.
“No caso do aluno que desmaiou, fomos à casa da família levar o que arrecadamos. Chegando lá, a mãe estava extremamente magra, muito abaixo do peso, porque ela estava tirando o pouco que tinha dela para dar para as crianças. Então você vê a gratidão da pessoa”, continua.
Noutro episódio, um conselheiro tutelar de um bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro foi chamado para atender o caso de uma menina de 7 anos que havia agredido um colega e xingado a professora.
“Havia um conflito dentro da escola, um nervosismo muito grande de uma criança sem histórico de agressividade”, conta o conselheiro tutelar.
O conselheiro conta que ao investigar as causas da agressividade constatou que a criança estava com fome. “Ela havia agredido uma colega, depois desafiou a professora e, por fim, acabou tentando agredir a direção. A escola nos chamou para conversar com essa criança e sua família, para saber se se tratava de uma reprodução de violência [quando uma criança agredida reproduz a violência que sofre]. Mas, conversando com essa criança, ela nos relata vontade de comer”, diz o conselheiro.
O caso da menina é comum a muitas famílias moradoras de bairros pobres: sua família — de sete pessoas, vivendo em um domicílio de dois cômodos — estava toda desempregada, vivendo com um benefício do Bolsa Família como única fonte de renda.
“Não é que essa criança não come nada, ela tem acesso à merenda, a um almoço. Mas a alimentação a que ela tem acesso é irregular e insuficiente para esse núcleo familiar. É uma criança que tem a comida contada, às vezes uma vez só no dia e sem um prato rico em nutrientes, em sabores”, explica o profissional.
“Muitas vezes, quando falamos em fome, as pessoas entendem que a pessoa não come nada. Mas a fome não é só isso, são necessidades para o desenvolvimento da criança que não estão sendo atendidas. Na realidade, todo o núcleo familiar está passando fome. A verdade é essa”, completa.
Evasão escolar como consequência da fome
Enquanto corre no Congresso Nacional a famigerada PEC 18 de 2011 que visa reduzir a idade de entrada da juventude no mercado de trabalho para 14 anos em qualquer setor da economia, a preocupação dos professores é exatamente com a evasão dos estudantes a partir dos 13 anos para trabalhar e ajudar na renda da família.
O Auxílio Emergencial que se encerrou no mês de outubro foi um dos elementos que conseguiu conter a evasão ao garantir uma renda mínima às famílias mais vulneráveis – mesmo após a redução no valor feita pelo governo Bolsonaro.
“Todo mundo está muito preocupado, principalmente as famílias. Já estamos tendo uma evasão muito grande de alunos, porque a prioridade deles é trabalhar e ajudar a levar o sustento para casa. Não é mais estudar, porque a fome é uma necessidade hoje”, diz a professora de Sumaré.
“A partir dos 13, 14 anos está acontecendo essa evasão, que é ainda mais grave no Ensino Médio. Acredito que, com o fim do auxílio emergencial, isso pode aumentar. É triste o aluno ter que deixar a escola para poder trabalhar, não conseguir conciliar”, lamenta a professora de física e matemática.
Ela lembra, ainda, que a situação é agravada pelo encerramento do turno noturno em três das cinco escolas de sua região e de cursos de Educação para Jovens e Adultos (EJA) no município e ressalta como a necessidade imediata de renda das famílias acaba comprometendo o futuro do jovem.
“É devastador, porque o aluno está deixando para trás uma parte da vida dele que é de extrema importância. É um aluno que poderia ir para a faculdade e pode ser que acabe não indo. Poderia fazer outras coisas da vida e acabe não fazendo”, diz a professora.
Desemprego
De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD-Contínua) há um número alarmante de pessoas que estão desempregadas há mais de um ano.
No segundo trimestre eram 14,4 milhões de desocupados no país, sendo que 41,2% desses procuram trabalho há mais de um ou dois anos. São 6 milhões de pessoas que buscam por emprego há mais de um ano. Desses, 3,8 milhões procuram por trabalho há mais de dois anos e não encontram.