Programa de pré-iniciação científica é desenvolvido por pesquisadores de universidades públicas e financiado por meio de emendas parlamentares geridas pelo CNPq
No mesmo momento em que o governo Bolsonaro cortou 90% das verbas da Ciência e Tecnologia, um projeto sobrevive com a ajuda de emendas parlamentares e leva a ciência das universidades e institutos de pesquisas para as escolas de ensino fundamental e médio da rede pública de educação.
O WASH (Workshop Aficionados em Software e Hardware) é um programa que tem por objetivos a promoção da iniciação científica e a popularização da ciência para estudantes do ensino fundamental, com a participação de estudantes do ensino técnico e médio que desenvolvem pesquisas nas mais distintas áreas, com apoio de pesquisadores experientes.
O projeto surgiu em 2013, através de uma parceria entre o Centro de Tecnologia da Informação (CTI), Ricardo Archer, e o Instituto Federal de São Paulo (IFSP), do Campus de Campinas, tem crescido nos últimos dois anos e conta hoje com instituições como a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal do ABC Paulista (UFABC). O WASH já atendeu diretamente cerca de 3.000 estudantes, além de inúmeros outros através de atividades e palestras. O projeto é financiado por meio de emendas destinadas por parlamentares ao MCTI e geridas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Mariana Moura, pesquisadora EXP-A e fundadora do Movimento Cientistas Engajados, é uma das coordenadoras do projeto na cidade de São Paulo. Ela afirma que o projeto possui um potencial enorme de transformação da relação entre a academia e sociedade, bem como das relações educacionais no Brasil.
“É um projeto lindo e transformador. Transformador da realidade destes bolsistas do Ensino Médio e dos estudantes do Ensino Fundamental que tem acesso a esse conhecimento, transformador da vida escolar, transformador dos professores que veem uma perspectiva aberta de pesquisa, de produção de conhecimento e transformador da realidade brasileira e que tem uma possibilidade incrível aberta pela frente”, disse Mariana.
“É muito lindo porque coloca em contato direto a escola pública com a pesquisa de ponta, então são instituições de excelência como os Institutos Federais, as INCT [Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia] que são vinculados ao MICT e universidades como a USP, a UFABC que participam do projeto, colocam seus pesquisadores bolsistas de ensino médio das escolas públicas”, continuou.
Mariana lembra que por muito tempo os cientistas brasileiros ficaram afastados da relação com a sociedade e que uma das formas vistas pela comunidade acadêmica e pelos pesquisadores hoje para garantir uma maior aproximação é através da educação pública. “Seja por medo de perseguição – que foi o que aconteceu durante a ditadura – ou, o que depois, numa prática em que a gente fica preso em nossos laboratórios, em nossas pesquisas, e essa relação com a sociedade ficou abalada”, lembrou.
“A educação brasileira está muito carente, não só de recursos, de pessoal, de valorização das equipes profissionais que trabalham nas escolas públicas brasileiras, mas também está carente dessa relação dos cientistas e pesquisadores terem mais carinho com a educação pública brasileira. Além disso, o projeto tem como objetivo chegar no ensino fundamental. A Ideia é fazer uma cadeia de transmissão de conhecimento da ponta do pesquisador que está na fronteira do conhecimento até o ensino fundamental”, afirmou a pesquisadora.
A pesquisadora explica que o WASH já é considerado o maior projeto de pré-iniciação científica do país. Na cidade de São Paulo, conta com o apoio da Universidade de São Paulo (USP) e deve beneficiar 50 estudantes.
“A gente espera que o projeto cresça muito mais com a ajuda de parlamentares – porque ele é financiado por emendas de deputados federais, de parlamentares do Congresso Nacional e estamos nesse momento buscando apoio de deputados federais para ampliar o projeto na cidade de São Paulo”, disse Mariana Moura.
Alfabetização científica
Elaine Tozzi iniciou como voluntária no WASH, coordena o projeto no Paraná e compõe a equipe de gestão com Victor Mammana, idealizador e Coordenador Geral do Programa junto ao CNPq, explica o funcionamento do projeto: “O WASH é um programa de programas, é intergeracional atende um público de várias idades, envolve as redes de ensino, a sociedade civil, a sua implementação e as estratégias são construídas e estabelecidas com professores, estudantes, gestores e acabam por ter características próprias de acordo com a realidade da comunidade em que ele se insere”.
“Quando a gente fala em alfabetização científica e tecnológica me refiro aos processos de educação que torna o indivíduo alfabetizado cientificamente, é um processo contínuo que ocorre ao longo da vida. Existem várias definições sobre esse termo cunhado por vários pesquisadores. Os debates desta expressão iniciaram no final dos anos de 1950 nos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria e da corrida espacial. No final de 1970 e inicio dos anos 80 ocorreram várias debates sobre essa expressão. Os movimentos sociais desde a década de 1970 ressaltam a importância da relação entre a ciência, tecnologia, sociedade e meio ambiente para formar cidadãos e contribuir com a tomada de decisão na sociedade. A essência do programa é atuar com as crianças, estimular a cultura científica, envolvendo o ensino médio, a graduação e que a iniciação científica desenvolvida por esses jovens tenha uma relevância social e que os projetos atendam as demandas da comunidade. Os resultados têm sido fantásticos em termos de projetos voltadas para a comunidade”, disse Elaine.
Para Elaine, o processo de alfabetização científica e tecnológica, objetivo principal do projeto, ganha ainda mais importância em nossa contemporaneidade. A importância das emendas parlamentares para o financiamento do projeto e contra partida do legislativo é fundamental para continuidade do projeto. “Se não tivéssemos as emendas parlamentares, teríamos muita dificuldade para conseguir tocar esse projeto. Então quando o deputado ou deputada investe em educação científica e tecnológica, ele está investindo em ciência cidadã”.
Elaine lembrou, ainda, que para esses estudantes da periferia, a bolsa paga, além de incentivo a pesquisa, também representa uma importante fonte de complementação de renda para os estudantes e suas famílias, coisa que nesse momento da conjuntura brasileira ganha ainda mais importância dado os efeitos da pandemia na renda das famílias mais vulneráveis.
“Quando o deputado coloca esse recurso, os alunos têm a oportunidade de receber 12 meses de bolsa com efeito imediato para o aluno, para a família do aluno com esse recurso de 160 reais”, afirmou Elaine.
A bolsa paga aos estudantes como incentivo à sua participação na pesquisa científica é de R$ 161,00 para uma carga horária de 15 horas semanais. O valor é superior ao pago pelo CNPq em outras bolsas de pré-iniciação científica e muito próximo ao que é pago em média em programas de distribuição de renda como o Bolsa Família (R$192).
Defesa da ciência
O deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), é um dos parlamentares apoiadores do WASH e falou sobre a importância do investimento em ciência em tempos de obscurantismo bolsonarista.
“O governo Bolsonaro praticamente acabou com orçamento de pesquisa no Brasil, inacreditável. Isso depois que o mundo percebeu que foi graças a ciência que a tragédia da Covid-19 não foi maior. Tiveram a capacidade de cortar o orçamento de R$ 600 mil, que já é uma mixaria, pois o Brasil deveria investir muito mais em ciência porque não vamos ter um projeto nacional de desenvolvimento se não tiver muito investimento em ciência, em pesquisa, em tecnologia para que nós passamos desenvolver a nossa economia”, disse Orlando.
O parlamentar afirmou que a ciência é um setor fundamental para que o Brasil possa “produzir com mais capacidade, gerar emprego. Não tem nação desenvolvida no planeta que não tenha foco no investimento em ciência e tecnologia, na formação de pessoas, na educação e eles estão fazendo tudo que podem para desmontar isso.”
A União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo (UMES-SP) apoia a realização do projeto na capital paulista. Segundo a entidade, que indicou escolas para a realização do WASH, estas iniciativas são fundamentais para contrapor ao governo Bolsonaro.
Lucca Gidra, diretor da UMES-SP, afirmou que o WASH “ganha ainda mais importância nessa atual conjuntura tanto diante dos cortes que Bolsonaro vem fazendo nas pastas da ciência e da educação, quanto de reafirmação e fortalecimento da ciência, que tem sofrido tantos ataques no último período, ampliando sua relação com a sociedade. A gente só tem conseguido superar as dificuldades e desafios impostos pela pandemia graças a ciência como ferramenta principal para combater o coronavírus”.
“Além disso, o projeto demonstra que a ciência também pode ser uma importante ferramenta na construção de uma sociedade mais justa. Muitas vezes os estudantes saem da escola pública sem saber o que é um laboratório, sem saber o que é fazer um experimento, sem ter essa vivência com a ciência. Esse projeto tem feito com que a ciência fique mais perto da juventude e que essa juventude tem a possibilidade de se interessar por algo tão importante para o desenvolvimento do nosso país”, completou Lucca.
Estudantes e escola com maiores perspectivas
Em São Paulo, entre as escolas participantes está a Escola Estadual Mauro de Oliveira, na Zona Oeste da capital, que realizou uma feira de ciências na última semana com a participação de pesquisadores ministrando palestras e orientando os estudantes, em atividades presenciais e remotas.
Isabel Gonzaga, professora há 20 anos, está no Mauro de Oliveira a quase quatro anos, falou sobre a importância do projeto e como ele tem mudado a dinâmica escolar, mudando professores e estudantes. “É uma alegria muito grande poder tocar nessa realidade com projetos como nos proporciona essa escola. Quando decidimos que fazer esse trabalho com projetos de robótica, eu mesma não conhecia, não sabia como fazer porque sou formada em matemática, nessa escola trabalho física. Fui abrindo o material e, junto com os alunos, descobrindo.
“O primeiro dia que o motorzinho funcionou foi uma alegria, levei até um susto, aí eu falei ‘nossa, eu consigo!’ e daí tudo que eu fui conseguindo muito mais. Eles acabaram descobrindo fazendo mais cursos, eu também fui buscando, aprendendo. Quando chegou o WASH em nossas vidas foi uma resposta ” não desistam”, porque chega um momento que a gente não sabe o que fazer mais. Ai o WASH veio como um apoio com equipes, com pessoas que já sabem, que já estão na universidade e que dão todo esse ânimo, essa estrutura para que nós pudéssemos continuar”, disse Isabel.
Professora do Ensino Médio, Isabel conta como os alunos evoluíram com o contato com a pesquisa e com os pesquisadores. “Eles avançam cada dia mais, eles buscam, eles conversam, eles pesquisam, então tem sido essa maravilha. A nossa feira de ciências esse ano foi um sucesso porque tivemos muitos cientistas aqui na escola fazendo palestras, nos ajudando com vídeo chamadas, orientando. Então estamos com esse respaldo dos cientistas em nossa escola”, contou.
O projeto tem um grande impacto na forma como os estudantes se relacionam com o ambiente escolar e suas perspectivas de futuro, mas também impacta significativamente a forma como essa garotada pensa e se relaciona com a sociedade.
Transformação
O estudante do 3º ano, Marcos Vinicius, 17 anos, defendeu a importância de projetos como esse no atual momento da conjuntura onde a ciência é ataca diariamente pelo discurso obscurantista, negacionista.
“Nós estamos num período de obscurantismo científico, digamos assim, que a ciência está sendo colocada de lado. Ela deve ser questionada, mas nesse momento ela está sendo questionada de uma maneira mais a difamar a imagem da ciência e nesse momento é muito importante que a gente discuta isso e replicando para que a gente possa provar que a ciência é sim válida e que no Brasil nós fazemos ciência e que no futuro esperamos competir com outros países, outras potências da área científica”, defendeu Marcos.
Marcos Vinicius também falou de como o projeto ajudou a fortalecer o trabalho coletivo, a entender a dificuldade dos colegas e classificou o projeto como transformador. “Eu sempre falo isso porque a escola trabalha tão bem o aluno que você se vê melhor, a escola te chama para ver. O WASH é algo incrível, porque desde pequeno eu queria ir para essa área científica, estudar um pouco mais só que era algo que eu via mais a longo prazo, talvez uma graduação, uma pós-graduação, mas nesse ano eu tive a oportunidade”, disse Marcos Vinicius.
Gabriel, 17 anos, 2º ano do ensino médio, afirmou que “o maior desafio foi transmitir um conhecimento que eu não tinha que ainda não fazia a menor ideia e em três meses na eletiva a professora me chamou para o projeto. O fato de não saber me fez querer pesquisar ainda mais, porque se eu for passar um conhecimento eu não quero passar errado. Aprendi a pesquisar, eu aprendi a cultivar uma paciência, uma forma de entender o outro muito grande. O fato de você me dizer que não sabe, eu vou te entender. Aprendi a entender e ser mais paciente com o outro.”
Caio Vinicius, 17 anos, 3º ano, explicou que sempre teve interessa em robótica e que já participou de feiras na USP para aprender mais sobre o tema. “Mas tudo começou aqui na escola com os professores que me apresentaram a robótica.”, disse Caio.
O estudante nos conta que em determinado momento em que desistia do sonho de aprender mais sobre robótica, foi o WASH quem resgatou sua vontade de trabalhar com o tema. “Para falar a verdade, quando começou o WASH, eu estava num momento muito difícil psicologicamente e que eu estava distante da robótica. Teve um momento que eu pensei em desistir da robótica, foi o mesmo momento que eu desisti do grêmio, pensei ‘vou sair de tudo’. A robótica, o WASH, posso dizer que me fizeram voltar a vida, viver novamente o que eu gostaria de viver. O WASH com pessoas com mais experiência que mostraram que eu tinha muito o que estudar, que tinham muito mais a evoluir.” contou Caio.
Milton, 17 anos, é estudante do 2º ano do ensino médio, também participante do projeto, desenvolveu para a feira de ciência da escola um braço hidráulico e já pretende levar o projeto adiante para que no futuro possa fazer um braço em impressoras 3D para ajudar pessoas com o desenvolvimento de próteses. “Quero ajudar as pessoas que perderam membros ou alguma parte do rosto a continuar a vida sem sentir vergonha”, disse o estudante.
“Está sendo uma experiência muito boa, na minha outra escola não tinha o WASH, não tinha a oportunidade de fazer vários projetos, de pôr a mão na massa como eu gosto, como a gente está tendo aqui no Mauro de Oliveira. Com o WASH da vontade de aprender mais, de pesquisar mais, de estar ali para aprender mesmo, antes eu não tinha essa vontade de aprender. É muito divertido estar com os colegas aprendendo cada vez mais, eu descobri outra paixão que é mecatrônica”, disse Milton.
Murilo Soares, 15 anos, 1º ano, contou como a reação de sua família com sua participação no projeto e como ele próprio sentiu-se satisfeito e orgulhos com os projetos que ajudou a desenvolver. O estudante fez um humidificador de ar para apresentar na feira de ciência, pensando em como ajudar as pessoas com doenças respiratórias quando o tempo está muito seco.
“Fiquei em dúvida se aceitava o convite da professora para participar do projeto, mas hoje eu acho que me arrependeria se não tivesse entrado. Meus pais ficaram bastante felizes, ficaram muito orgulhosos de mim e eu também fiquei muito orgulhoso de mim por ter tomado essa decisão porque eu sempre quis aprender a programar. Meus colegas, socializo muito com eles, me ajudaram muito e quando a gente está junto conseguimos fazer bastante coisa. Tenho pesquisado mais, hoje em dia pesquiso bastante, sou também mais responsável por conta dos compromissos de entrega e etc. O WASH precisa de muita atenção”, disse Murilo.
RODRIGO LUCAS