“De fato, essa insistência absurda tem como objetivo desviar o foco do debate e aponta para uma política de extermínio”, apontou Gerson Salvador, infectologista do HU-USP
Jair Bolsonaro demitiu dois ministros da Saúde porque queria impor a todo custo o uso indiscriminado da cloroquina nos casos de infecção pela Covid-19. Tanto Henrique Mandetta quanto Nelson Teich tentaram alertar o presidente de que a eficácia da droga não tinha se comprovado em estudos clínicos.
Só depois de cometer todo esse atropelo, ele conseguiu o que queria. Mudou o protocolo do Ministério da Saúde sobre a cloroquina e recomendou o seu uso em larga escala nos pacientes acometidos pela doença. A atitude insana do presidente revoltou o país inteiro.
É compreensível que, diante de doenças graves, onde não há ainda um tratamento eficaz, se tente as mais diversas alternativas terapêuticas. E isso foi feito com a cloroquina. Vários hospitais no Brasil e no mundo testaram o medicamento em grande ensaios clínicos (ensaios clínicos são trabalhos onde e droga é testada em grande número de pacientes e comparadas cegamente com outras drogas ou apenas com o suporte clínico, sem uso de nenhum medicamento).
Durante algum tempo, antes que saíssem os resultados desses estudos, Jair Bolsonaro seguiu a orientação nada desinteressada de Donald Trump e advogou o uso indiscriminado da cloroquina.
RESULTADOS NÃO CONFIRMARAM EFICÁCIA
No entanto, infelizmente, os resultados dos estudos não confirmaram a eficácia da cloroquina e hidroxicloroquina e, mais do que isso, em editorial, a revista New England Journal of Medicine (NEJM), uma das mais conceituadas revistas médicas do mundo, afirmou que, depois de analisar o uso da cloroquina em mais de 1.300 pacientes, concluiu que, além de não ser eficaz contra o coronavírus, a droga, usada indiscriminadamente, pode provocar graves complicações cardíacas.
Para chegarem nesta conclusão, os médicos contaram com dados de pacientes que foram hospitalizados em decorrência da Covid-19. Ao todo, foram avaliadas 1.376 pessoas. Dessas, 811 receberam hidroxicloroquina e 565 não. Conforme revelaram os autores, dos 811 que usaram hidroxicloroquina, 262 tiveram como desfecho a entubação ou morte. No outro grupo, 84 evoluíram para entubação ou morte.
“Nosso estudo não deve ser tomado como regra de benefício ou prejuízo do tratamento com hidroxicloroquina. No entanto, nossos achados não apoiam o uso de hidroxicloroquina atualmente, fora de ensaios clínicos randomizados que testam sua eficácia”, concluíram os médicos que assinaram o artigo do NEJM. Segundo a análise, os pacientes que tomaram a hidroxicloroquina tiveram mais chances de ter insuficiências respiratórias do que aqueles que não a tomaram.
Segundo a pesquisa, o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina, combinando ou não com a azitromicina, é baseado apenas em relatos de médicos e não foram comprovados, até o momento, cientificamente. O principal estudo que ganhou relevância internacional, mesmo sem validação científica, foi conduzido na França, mas tinha uma amostragem pequena de pacientes e não houve grupo de controle, ou seja, uma parcela dos pacientes avaliados que não recebeu os medicamentos.
EFEITOS COLATERAIS
Sobre os efeitos colaterais, chamou a atenção arritmia muito frequente com o uso desse medicamento que é chamada Torsades de pointes (do francês “torções das pontas”) que pode levar à parada cardíaca.
Outros dois estudos publicados na revista científica British Medical Journal também apontaram a ineficácia da hidroxicloroquina no combate à Covid-19. Ambos foram publicados quase simultaneamente: um deles desenvolvido por pesquisadores franceses, e o outro por cientistas chineses.
O estudo francês analisou 181 pacientes. Eles foram divididos entre 84 que receberam a hidroxicloroquina nas primeiras 48 horas de internação e 97 que não receberam e serviram como grupo de controle. Durante o período de internação, os pesquisadores não perceberam nenhuma diferença significativa no número de pacientes que precisaram de transferência para UTI, que morreram após 7 dias, ou que desenvolveram Síndrome Respiratória Aguda Grave em 10 dias.
Enquanto isso, na pesquisa da China, o foco foi outro. Eles visaram entender principalmente o impacto da hidroxicloroquina em pacientes com sintomas leves e moderados da Covid-19. Foram 150 adultos divididos aleatoriamente em dois grupos: os que receberam a hidroxicloroquina e tratamento padrão e os que receberam só o tratamento padrão. O estudo é classificado como “open label”, o que significa que os pacientes sabem a qual grupo pertencem, possibilitando a criação de vieses no processo. Por isso, ele também não se enquadra no “padrão-ouro”.
Os pacientes do grupo da hidroxicloroquina receberam uma dosagem admitidamente alta do medicamento: 1.200 miligramas diários pelos três primeiros dias, seguidos de 800 mg ao dia pelo restante do tratamento.
Ao fim do dia 28 de testes, os pesquisadores não perceberam diferenças significativas entre os dois grupos. Entre os 150 pacientes, a maioria estavam curados do vírus muito antes do prazo. Foram 109 conversões negativas, sendo 56 do grupo padrão e 53 do grupo com hidroxicloroquina, e os 41 restantes não conseguiram a conversão antes do prazo e foram censurados.
Os pesquisadores também observaram um aumento no número de eventos adversos no grupo que usou a hidroxicloroquina. Enquanto no grupo de controle houve eventos adversos em 9% dos casos, essa proporção subiu para 30% entre os que receberam o medicamento, com dois pacientes enfrentando efeitos mais graves. Os pesquisadores dizem que eventos similares também foram observados em outros estudos que envolveram altas dosagens da droga.
Outro estudo, feito em Nova Iorque, também com mais de 1.300 pacientes, chegou a conclusões parecidas com o ensaio publicado na revista New England. O anti-inflamatório usado no combate à malária e nas doenças autoimunes, tipo Lupus Eritematoso Sistêmico e Artrite Reumatóide tem algum efeito antiviral em laboratório, mas não possui eficácia contra o coronavírus.
MUNDO BUSCA MEDICAÇÃO CONTRA COVID-19
O mundo científico está todo mobilizado em busca de alguma droga que consiga parar o vírus e também na elaboração de uma vacina, mas, infelizmente, até agora esses esforços ainda são infrutíferos.
Diante desses fatos, o presidente insistir em afrontar a ciência, atropelar dois ministros e impor à força aos médicos e pacientes o uso indiscriminado de cloroquina na pandemia da Covid-19 no Brasil, é um descalabro.
Desdenhar a opinião dos médicos e dos pesquisadores no Brasil e do mundo, e fazer questão de desconhecer os resultados negativos das pesquisas revela um desatino inaceitável do presidente da República. É uma atitude que trará consequências nefastas para grande parte da população sem que haja nenhum benefício para os doentes. Esta atitude arbitrária e arrogante de Jair Bolsonaro está revoltando o país. Principalmente pela forma como ele trata o assunto.
Na noite de terça-feira (19), dia em que morreram 1.179 pessoas pelo coronavírus no país, Bolsonaro, usou uma live para fazer piada sobre o uso de cloroquina.
ESPECIALISTAS OPINAM
O professor Eduardo Costa, pesquisador da Fudação Osvaldo Cruz (Fiocruz), afirmou à nossa reportagem que não concorda com o uso indiscriminado da cloroquina, como quer Bolsonaro, porque “não houve comprovação científica de sua eficácia no tratamento da Covid-19”.
Para o especialista, “esta é uma atitude simplista que não se sustenta nos trabalhos que foram recentemente divulgados sobre a eficácia da cloroquina. Segundo Costa, “esta droga apresentou algum resultado em laboratório, mas, na população, não confirmou esses resultados, e ainda trouxe efeitos colaterais graves que colocam em risco a voda das pessoas”. O professor levantou ainda o aspecto de que Bolsonaro passou a defender o uso da cloroquina logo em seguida a Donald Trump fazer o mesmo nos EUA.
“Os números de óbitos, apesar do grande uso de cloroquina nos protocolos de pesquisa, por si só, já desaconselham as conclusões de eficácia desta droga. Os trabalhos recentes confirmaram esta avaliação, afirmou Eduardo Costa.
O infectologista do Hospital Universitário da USP, Gerson Salvador, afirmou ao HP que a atitude de Bolsonaro em relação à cloroquina é uma forma de fugir de sua responsabilidade pelas mortes que estão ocorrendo no país. “O Brasil está com uma das piores respostas do mundo em relação à pandemia de Covid-19, com um número crescente de casos e de óbitos, com uma curva acelerada e descontrolada”, avaliou Salvador.
“É necessário aumentar as medidas de distanciamento social, garantir rendas para as pessoas poderem ficar em casa, e o presidente boicota essas iniciativas que podem funcionar. O governo federal não tem ajudado suficientemente os estados e municípios a montarem redes assistenciais para darem conta dos casos mais graves. O presidente usa cloroquina como uma falsa solução”, acrescentou.
“A cloroquina é um medicamento que só funcionou em laboratório, quando foi testada em população humana até o presente momento não funcionou, inclusive tem potenciais efeitos graves como arritmias cardíacas que podem levar as pessoas à morte. Jair Bolsonaro está usando a cloroquina como uma cortina de fumaça para desviar o foco do debate. A história vai julgar Bolsonaro e eu espero que a sociedade brasileira o faça antes disso. De fato ele tem praticado uma política de extermínio”, apontou o especialista.
SÉRGIO CRUZ
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