Com preços duplicados e serviços públicos com reajuste de 248,2%, as compras nos supermercados e mercearias argentinas tiveram queda em todos os meses de 2024, com o consumo sempre inferior ao de 2023, apontou consultora especializada, desmentindo o governo
A recessão a que o governo Milei sujeitou as classes média e baixa pôde ser claramente vista na queda de 18% nas compras nos supermercados, mercearias e mercadinhos de bairro em dezembro passado e de 13,9% se compararmos as vendas totais do ano com as de 2023, um dos piores baques no consumo em mais de duas décadas na Argentina.
O estudo da consultora especializada Scentia, divulgado pelo jornal Página12 na quarta-feira (15), desmente a alegação feita com estardalhaço no dia anterior pelo ministro da Economia, Luis Caputo, de que as finanças atravessam uma “forte recuperação” e que “ao contrário de outras oportunidades”, o rendimento real da população está crescendo, assim como o crédito ao setor privado.
Infelizmente, a realidade é bem diferente. O relatório da Scentia aponta que em 2024 o consumo fechou com quedas consecutivas em todos os meses, sendo sempre inferior ao ano anterior. Os preços duplicados e os salários extremamente arrochados, somados ao reajuste de 248,2% nos serviços públicos tiveram um impacto devastador, diminuindo o porte dos carrinhos e das cestas de consumo, deixando cada vez menos espaço para compras de alimentos e outros itens de primeira necessidade.
Em dezembro de 2023, as compras já haviam sido abaladas pela desvalorização e desregulamentação de preços implementada por Milei poucos dias após a posse. No ano passado, o mercado interno sofreu com o abalo sísmico da política neoliberal de demolição do Estado.
RETRAÇÃO ESCANCARA CRISE ECONÔMICA
A retração no consumo anual escancara um cenário de crise econômica que o governo não tem como negar, particularmente quando diz respeito a itens como alimentos congelados (8,6%), alimentação (9,5%), café da manhã e lanches (12,6%), roupas e limpeza doméstica (13,9%) e mesmo higiene e cosméticos (17%). Para não falar na queda de itens como bebidas não alcoólicas (18,3%), chocolates e doces (18,6%) ou bebidas alcoólicas (19,6%), deixadas de lado diante da luta pela sobrevivência.
Mestre em economia política e professor da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, Luis Campos avalia que o principal problema ao longo do último ano foi o “programa de ajuste implementado pelo governo, que pesou diretamente na situação dos trabalhadores e trabalhadoras”.
Em entrevista exclusiva ao HP, o investigador do Instituto de Estudos e Formação da Central dos Trabalhadores da Argentina (CTA), assinalou que os próprios dados oficiais reconhecem que “há níveis salariais como os do setor público que registraram uma queda em termos reais de 15% em comparação ao que recebiam há um ano”. Assim, mesmo se uma parcela tenha conseguido à custa de imensa pressão recuperar parte dos salários perdidos, “outros estão muito abaixo”. Além disso, ponderou, “subiu demasiado o custo dos serviços públicos, fazendo com o que os recursos restantes sejam menores, provocando a retração do consumo”.
REDUÇÃO DE MAIS DE 200 MIL POSTOS DE TRABALHO FORMAIS NO ÚLTIMO ANO
Embora os dados oficiais não apontem uma queda da magnitude da registrada pela Scentia, disse o professor, é mais do que evidente “o retrocesso nos níveis de emprego”. “Houve a redução de mais de 200 mil postos de trabalho formais, o que representa uma queda de 2%, um percentual muito grande para o último ano”, frisou.
“O custo é altíssimo, uma recessão pesada, sobretudo a partir do aumento da pobreza na primeira metade do ano, que saltou de 40% para quase 50%, um crescimento de 10%, um retrocesso bastante forte nas condições de vida das pessoas, agravando as tensões sociais”, denunciou Luis Campos.
Para o professor, em prol de uma meia dúzia, “estamos vivendo um momento de valorização cambial que torna a vida muito cara para os argentinos e para qualquer um que venha ao país”. “Isso vai fazer com que a conta do turismo seja muito deficitária porque há uma parte da população que está indo para o Brasil, Chile, Uruguai ou Paraguai, que ficaram bem mais baratos”, explicou. O problema, enfatizou, “é que as coisas ficaram baratas às custas do desemprego, da desindustrialização e da desnacionalização, sobretudo da indústria têxtil, metalmecânica, automotrizes e de pneumáticos”.
A raiz do problema, esclareceu Campos, “é que temos um governo das grandes corporações locais, de dez ou vinte, não mais, que são donas da Argentina em aliança com setores do capital financeiro internacional”. “Este é o principal apoio político deste governo, que conta com os funcionários dessas empresas e seus advogados contábeis para assessorar na administração. É um governo cooptado”, condenou.
Conforme o relatório da Scentia, a contração do consumo ocorreu de forma homogênea, comprovada em todos os pontos geográficos do país. Nas redes de supermercados e lojas de autoatendimento o recuo foi semelhante, da ordem de 17,3% e 18,7%, respectivamente, em dezembro. Enquanto isso, na Região Metropolitana de Buenos Aires (Amba) o recuo de 19,7% superou o de 16,8% do interior.
LEONARDO WEXELL SEVERO