STJ liberou fim da cobertura de procedimentos fora da lista da ANS. Com a decisão, operadoras poderão negar tratamentos e procedimentos indicados por médicos, mas que estejam fora do rol
Entidades representativas e pais de pessoas com autismo, em tratamento de câncer e doenças diversas anunciaram que recorrerão ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que estabeleceu que as operadoras de planos de saúde só precisam cobrir procedimentos da lista estabelecida pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o chamado “rol taxativo”.
Os usuários de planos de saúde denunciam que a decisão do STJ favorece as operadoras e inviabiliza o tratamento de milhares de pessoas no país ao impedir o acesso ao atendimento médico.
Na quarta-feira (8), os ministros do STJ avaliaram se a lista de procedimentos a serem cobertos pelos planos de saúde deveria ser taxativa – restrita ao que está escrito atualmente pela ANS, ou exemplificativa, podendo incluir novas técnicas, procedimentos e tratamentos que ainda estejam fora da lista da ANS.
O julgamento sobre o tema foi iniciado pelo STJ em setembro de 2021, com o voto do ministro Luis Felipe Salomão, relator do processo, que acatou o argumento das operadoras de saúde de que coberturas mais amplas gerariam “desequilíbrio financeiro no setor”.
Em fevereiro, a ministra Nancy Andrighi decidiu pelo caráter exemplificativo do rol da ANS e empatou a votação. Ao dar o seu voto, a ministra já havia citado que a atuação das agências reguladoras deveria ser compatível com a Constituição e com os limites legais, de forma que a instituição que exerce atividade regulatória não pode substituir a lei na definição de direitos e obrigações. Segundo ela, as agências não têm a capacidade de inovar a ordem jurídica, especialmente para impor restrições aos direitos das pessoas.
Nesta quarta-feira, os ministros Vilas Bôas Cueva, Raul Araújo, Isabel Gallotti, Marco Buzzi e Marco Aurélio Bellizze se juntaram ao relator e o julgamento terminou com 6 votos a favor do rol taxativo, contra 3 votos pelo rol exemplificativo.
Os ministros Paulo de Tarso e Moura Ribeiro tiveram o mesmo entendimento de Nancy Andrighi, de que a lista da ANS deveria representar apenas a cobertura mínima dos convênios.
FAMÍLIAS CRITICAM A DECISÃO
Andrea Werner, jornalista, escritora, ativista, fundadora do Instituto Lagarta Vira Pupa, que representa as famílias de pessoas do espectro do autismo esteve em frente ao STJ nesta quarta-feira e, após o julgamento, manifestou-se em seu perfil nas redes sociais: “É muito difícil ter esperança neste país de que não é o dinheiro que manda. Vai gente morrer, menino autista ficar sem tratamento, criança com deficiência vai ficar sem tratamento”.
“Essa decisão vai matar pessoas. Vai deixar pessoas com deficiências, doenças graves, doenças raras desatendidas… É uma tragédia gigante que se abateu neste país hoje e espero que todo mundo esteja bem ciente disso”, condenou Andrea.
“Vamos recorrer ao STF. Estamos unindo entidades e familiares que precisam de tratamentos com decisão da Justiça”, ressaltou Andrea Werner.
Familiares de pessoas com espectro autista ou doenças raras, lamentaram a derrota. “Doença não se escolhe, muito menos tratamento. Então, se alguém tem um plano de saúde há 20 anos e é surpreendido com alguma doença rara, por exemplo, o plano de saúde não pode atender apenas se for obrigado. O rol taxativo favorece as operadoras, que a ANS não deveria estar protegendo”, disse Renê Patriota, coordenadora executiva da Associação de Defesa dos Usuários de Seguros, Planos e Sistema de Saúde (Aduseps).
Entidades de defesa do consumidor também criticaram a decisão do STJ. “Apesar de toda a união da sociedade pelo rol exemplificativo, os ministros do STJ decidiram por 6 votos a 3 pelo entendimento taxativo mitigado do rol da ANS. Dessa forma, as operadoras poderão negar tratamentos e procedimentos indicados por médicos, mas que estejam fora do rol”, escreveu o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) no Twitter.
Para Marina Paulelli, advogada do programa de saúde do IDEC, a decisão é um retrocesso e vai prejudicar o consumidor, além de levar a mais processos judiciais.
“O STJ alterou a jurisprudência consolidada em favor de um entendimento que é bastante benéfico às operadoras. Na prática, se o consumidor receber uma prescrição ou orientação médica, as operadoras, em princípio, não são obrigadas a custear. E isso coloca o consumidor numa posição de vulnerabilidade diante das operadoras”, explica.
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) também se posicionou contra o rol taxativo. O conselho encaminhou, na última terça (7), uma recomendação ao STJ, para que julgassem pelo entendimento de que o rol de procedimentos da ANS tivesse caráter.
“O rol é uma lista usada como referência básica para a cobertura de tratamentos pelos planos de saúde. A decisão pelo caráter taxativo pode afetar negativamente a vida de milhões de pessoas”, disse o órgão em nota.
JUDIACILIZAÇÃO DO SUS
A advogada Luciana Munhoz, mestre em bioética, considera que a taxatividade do rol limita a possibilidade dos usuários de se utilizarem do plano para determinados procedimentos de saúde. “Com um rol taxativo teremos uma limitação da possibilidade de que essa saúde suplementar realmente venha abarcar tratamentos que o SUS não conseguiria entregar para os segurados da mesma forma. Certamente, a decisão do STJ pode causar uma pressão muito maior de judicialização no SUS, tendo em vista que a saúde é um direito que tem que ser entregue pelo Estado”, analisou a especialista.
Vitor Boaventura, advogado especialista em direito do seguro salientou que “a decisão do STJ a respeito do rol de procedimentos da ANS é, sem dúvida, mais um revés aos direitos dos consumidores e consumidoras de planos de saúde no Brasil”.
Para ele, o rol de procedimentos foi criado para ser um balizador, um referencial dos procedimentos mínimos a serem ofertados pelos planos de saúde.
“Lamentavelmente, com a chancela do STJ, se torna um instrumento dos planos de saúde contra a pretensão legítima de cobertura dos consumidores e consumidoras do sistema. Além de reajustes de 2 dígitos, os consumidores e consumidoras de planos de saúde devem estar preparados para negativas em série por parte dos planos, sobretudo naqueles casos em que a prescrição médica do tratamento adequado para as suas enfermidades, não constar do rol da ANS”, completou.
EXCEÇÕES
A decisão do STJ admite “exceções” para a ampliação do rol da ANS. Especialistas apontam, no entanto, que esses casos não englobariam a maioria dos usuários que dependem dos planos.
“Ao que parece, a situação será bem restrita. Para crianças com deficiência, por exemplo, não fará diferença. Então, vamos ao Supremo tentar reverter, mas até que o STF julgue essa questão será um estrago muito grande na vida de muitas pessoas e famílias”, disse Andrea Werner.
O advogado Matheus Falcão, pesquisador do programa de saúde do Idec afirma que a decisão do STJ representará uma barreira ainda maior para usuários de plano garantirem tratamento.
“Levantamentos do instituto já revelavam forte tendência por parte das operadoras em recusar coberturas. A partir do que decidiu o STJ, atingiremos nível ainda mais alto”, disse. De acordo com Falcão, o Idec também avalia recorrer ao Supremo.
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