O ex-ministro da Defesa (2016-1018) e da Segurança Pública (2018), Raul Jungmann, afirmou que “os militares estão indisponíveis para qualquer ato antidemocrático”, em entrevista para Igor Gielow, do jornal Folha de S. Paulo.
O ex-ministro comentou os fatos da semana envolvendo a saída dos comandantes militares e do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva.
No dia seguinte à demissão de Azevedo e Silva, os comandantes Edson Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antonio Carlos Bermudez (Aeronáutica) entregaram os comandos ao novo ministro, general Walter Braga Netto. O general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira será o novo comandante do Exército. O almirante de esquadra Almir Garnier Santos assumirá o comando da Marinha e o tenente-brigadeiro do ar Carlos Baptista Junior será o comandante da Aeronáutica.
Segundo Jungmann, isso “foi o dia do fico, no caso, ficar com a Constituição, com a democracia. Foi exemplar”, porque as Forças Armadas rejeitaram a coação de Bolsonaro para elas trilharem o caminho golpista.
Leia a seguir trechos da entrevista de Jungmann:
Como o sr. avalia a crise militar desta semana? – Ela decorreu da situação do presidente. De um lado, ele vem enfrentando uma queda progressiva de popularidade. Do outro, ele tem uma relação conflituosa com o Judiciário.
A vitória política que ele teve na eleição das Mesas do Congresso é relativa. O Congresso, o centrão, tem um projeto autônomo que só às vezes coincide com o do Planalto. Isso ficou claro na fala do [presidente da Câmara] Arthur Lira sobre os “remédios fatais” contra o Executivo. O presidente dá sinais de perda de capacidade de exercer suas competências.
Nessa confusão do Orçamento, por exemplo? – Para mim, é o exemplo acabado. Sempre há negociações. O Orçamento enviado não é administrável. Isso aponta para a precariedade da articulação política, a pouca governabilidade. Por fim, tem a pandemia, fora de controle.
Pelo que foi informado, ele então resolve subir o sarrafo da lealdade e do endosso das Forças Armadas. Nesta hora, vem o não, e ele reage com uma intervenção.
Alguém pode me dizer um motivo pelo qual ministro e comandantes tenham sido afastados? Não estavam cumprindo a Constituição, seus afazeres? Único motivo é político.
Sempre que acuado, Bolsonaro busca associar-se aos militares, usou o “meu Exército” em fala. – Uso de pronome possessivo para falar das Forças Armadas é coisa de monarquia, onde o rei é Estado. Não é coisa de República, onde elas pertencem à nação.
Veja, o presidente se elegeu na onda da antipolítica e não fez o presidencialismo de coalizão. Como ele vai aprovar o programa dele? Ele apresenta duas forças: os militares e as massas. Mas falha redondamente.
Por isso ele apelou então ao centrão. – Isso é o reconhecimento de que a política não deu resultado. A posição dele é enfraquecida cada vez mais. Há o inquérito das fake news, chegando a atores do bolsonarismo, os processos sobre sua família, a pandemia.
Esse ano está perdido na economia. Ele busca se reforçar cedendo postos para o centrão. Mas é preciso lembrar que o centrão é pragmático e tem um projeto autônomo.
Como o sr. avalia a saída proposta para a crise, com Braga Netto na Defesa e os novos comandantes? Vê apaziguamento ou só enxugaram gelo? – Convivi bem com o Braga Netto. É um militar competente. Pelo lado do resultado, as escolhas que foram feitas de novos comandantes são a fotografia do fracasso de tentativa de politização. Eles estão em linha com os comandantes que saem. Não se disporão a qualquer ideia autoritária, e os Altos-Comandos também não.
Eles são a reafirmação do que eu sempre digo: os militares estão indisponíveis para qualquer ato antidemocrático.
Isso na cúpula. E a percepção de que a tropa se bolsonariza à medida em que descemos na hierarquia? – Não falo pelas Forças, mas tive convívio com elas e isso se perpetua. Acho que há um polo de apoio ao presidente na atual reserva, pessoas mais antigas, com mentalidade de Guerra Fria.
Parece haver algum apoio na suboficialidade, mas a possibilidade ruptura é inexistente. É evidente que há bolsonaristas nas Forças, como há em todo o Brasil. Isso não significa que elas vão romper princípios de respeito à democracia. O que elas ganhariam com isso? Nada.
Os militares aceitarão se Lula for candidato e ganhar? – Se qualquer um ganhar. Lula, Doria, Huck, Mandetta. Os militares deram uma demonstração definitiva nesta crise. Foi o dia do fico, no caso, ficar com a Constituição, com a democracia. Foi exemplar.
E não era inesperado. Na entrevista que eu e Etchegoyen fizemos com Pujol [em novembro], a resposta dele foi cristalina: não queremos fazer política, nem queremos política nos quartéis.
O sr. vê outros riscos para 2022? Em carta ao Supremo, o sr. dizia temer uma guerra civil devido à política armamentista de Bolsonaro. – Sim, é um problema. Quando o presidente transita o tema das armas da segurança pública para a política e a ideologia, dizendo que tem de armar a população, ele propõe a quebra do monopólio da violência do Estado.
Nenhum Estado democrático consolidado pode permitir isso, você fere o papel constitucional dos militares. E não há nenhuma ameaça, interna ou externa. Aí sim me preocupa o risco de termos algo ainda pior do que a invasão do Capitólio nos EUA.
Voltando aos militares, Braga Netto celebrou o golpe de 1964 na sua primeira ordem do dia. Falta autocrítica às Forças sobre o tema? – Tivemos um processo de anistia que foi negociado. Houve a Lei de Anistia no Congresso e, depois, sua validação no Judiciário.
Sob o aspecto político, democrático, está resolvido. Mas claro que há demandas de lado a lado. Qualquer ação que queira celebrar [a ditadura] ou busque revisar o que foi estabelecido deve ser desestimulada. Isso, claro, não significa interditar o debate, estudos, a democracia é dissenso, não consenso.
Isso é fruto das condições da transição democrática aqui, que foi diferente da do Chile e da Argentina. Não queremos que esse passado volte.
Para os militares, haverá impacto de longo prazo desta crise e também do desgaste que foi a gestão do general Eduardo Pazuello na Saúde? – Acho que sim, a começar pelo ineditismo, não víamos algo assim desde 1977.
Chamo atenção para o fato de que nunca houve insubordinação dos envolvidos. Isso fica claro e é duradouro. Foi o dia do não e o dia do fico com a democracia. Muito simbólico que tenha ocorrido um dia antes do 31 de março. Mas isso cria também um trauma.
Mas os militares entraram nessa voluntariamente, não? – Acho que o apoio a Bolsonaro foi mais um exercício de cidadania, de gente que votou. O sentimento era da população do antipetismo, um subproduto do que foi feito nos governos do PT, e da Lava Jato, que ceifou lideranças e criou um vazio.
As Forças Armadas são parte do povo. Os motores de Bolsonaro foram o rechaço a uma política que se deixou corromper e a insegurança da população.
Continuamos da mesma forma, nas relações público-privadas e no sistema de segurança pública. É preciso rever o pacto constituinte, senão citaremos Carlos Drummond de Andrade: “Sempre no mesmo engano outro retrato”.
O vice Hamilton Mourão era visto como um seguro contra impeachment pelas suas frases golpistas, havia sido punido duas vezes, uma inclusive em sua gestão na Defesa. Hoje é visto com um anteparo democrático no Planalto. O que o sr. acha? – Minha opinião é de que a lealdade dele está sendo incompreendida e hoje, ele é um vice-presidente que tem compromissos democráticos, independentemente de suas opiniões. Tenho uma relação fraterna com ele.
Como vê essa aproximação dos presidenciáveis que lançaram um manifesto? – É uma imposição. Individualmente, nenhum deles tem força para romper a polarização restabelecida entre Bolsonaro e o PT.
Ou bem se cria uma candidatura forte e única, ou bem seremos obrigados a ver a atualização da polarização que grande parte dos brasileiros não quer.
Vivemos uma crise política, sanitária e econômica, centenas de milhares pagaram com a vida. Isso é inédito. Se a política não resolver equacionar a crise, ela vai acabar engolida. Em outros impasses, os impeachments de Collor e Dilma, o mensalão, achamos saídas.
Como assim engolida? – Quando a necessidade vence o medo. Há risco de instabilidade social.