Com a presença dos familiares, amigos, personalidades, artistas e líderes políticos a cidade de Minneapolis prestou a última homenagem na quinta-feira (4) ao cidadão negro assassinado George Floyd, com o principal orador da cerimônia, o reverendo e líder dos direitos civis, Al Sharpton, convocando “tirem o joelho dos nossos pescoços” e chamando a derrotar o racismo, a injustiça e os meneios ao arbítrio ensaiados por Trump.
No décimo dia consecutivo do povo na rua bradando “sem justiça, sem paz” e “diga o nome dele: George Floyd”, as manifestações essencialmente pacíficas – apesar de toda a ira e dor – se estenderam a mais cidades. No Brooklyn, Nova Iorque, eram milhares de pessoas na Praça Cadman, sob aplausos que vêm das janelas e das calçadas.
A capital, Washington, e Los Angeles, a segunda maior cidade do país, deram por encerrado o toque de recolher, após o sucesso das lideranças e da população em coibir provocadores e oportunistas. Aonde o toque de recolher foi mantido, vem sendo desafiado por fieiras de jovens.
Cerimônias fúnebres irão ocorrer ainda em Raeford, na Carolina do Norte, onde ele nasceu, nesta sexta-feira, e em Houston, cidade onde foi criado e viveu a maior parte da vida, na segunda-feira e terça-feira. Está marcada uma grande manifestação no sábado em Washington.
OITO MINUTOS E 46 SEGUNDOS
No país inteiro, multidões de jovens, brancos e negros, se deitaram de bruços no chão na quinta-feira, com as mãos nas costas, como se algemados, tal qual Floyd foi forçado a ficar, e permaneceram em silêncio por 8 minutos e 46 segundos – o tempo de asfixia registrado no laudo da autópsia.
O punho erguido dos panteras negras virou coisa do dia a dia nos protestos, por negros, latinos e brancos. No Capitólio, senadores democratas homenagearam Floyd com um silêncio de 8 minutos e 46 segundos, ação que se reproduziu em vários estados.
No ato de despedida no auditório apinhado de uma universidade de Minneapolis, o irmão Philonise Floyd afirmou que “todo mundo quer justiça, nós queremos justiça para George, ele vai conseguir”. Ele vestia um terno escuro e um crachá com uma foto de George e as palavras “não consigo respirar” na lapela.
“É incrível que ele tenha tocado tantos corações, salientou. O irmão caçula, Rodney, deu seu testemunho sobre quem era George Floyd: um cara que “ficaria contra qualquer injustiça, onde quer que fosse”.
Terence, o terceiro irmão, se disse muito orgulhoso pelos protestos, que reiterou que devem ser pacíficos, “esse era o jeito de George”, destacou.
CHAGA ABERTA
Havia um painel pintado com o rosto de George Floyd, reproduzindo o feito no memorial na rua onde ele foi morto, um retrato dele e coroas de flores, uma delas da NCAAP, a entidade nacional que há décadas condensa a luta dos negros contra a herança maldita da segregação e da escravidão, de que os linchamentos, como o que sofreu Floyd no feriado que homenageia os norte-americanos caídos em combate, são uma chaga ainda aberta.
Ao chegar, o prefeito de Minneapolis, Jacob Frey, repetiu o ajoelhar respeitoso do jogador de futebol americano Colin Kaepernick, de rechaço ao racismo, com que Floyd tem sido homenageado nas ruas. Colocou a mão sobre o caixão, e se emocionou. Também estava lá o governador de Minnesota, Tim Walz, o prefeito de Saint Paul, Melvin Carter, as senadoras Amy Klobuchar e Tina Smith, e a deputada federal Ilhan Omar.
O único filho de Martin Luther King ainda vivo, Martin Luther King III, estava lá, acompanhado da esposa, Andrea, e da filha, Yolanda. O reverendo Jesse Jackson, companheiro de luta de Luther King, também compareceu, assim como outros líderes da comunidade afro-americana.
A namorada de Floyd, Courtney Ross fez uma oração silenciosa. Presentes também os rappers Ludacris e Tyrese Gibson, o comediante Kevin Hart, a atriz Tiffany Haddish e o amigo de infância, o ex-astro do basquete Stephen Jackson.
VÍRUS DO RACISMO
O advogado da família, Ben Crump, lembrando que a autópsia confirmara que ele estava com coronavírus, ressaltou que a doença que matou Floyd foi a “pandemia do racismo e da discriminação”.
Crump enfatizou que “não queremos dois sistemas de justiça na América. Um para negros e um para brancos”, o que queremos é atingir a igualdade. Ele acrescentou que George Floyd significa “a melhor oportunidade que eu já vi em um longo tempo de alcançar essa elevada ideia sobre a qual este país foi fundado”.
Questão destacada também pelo reverendo Sharpton, que conclamou os presentes a não agirem como se estivessem em um funeral programado. “George Floyd não deveria estar entre os mortos”, denunciou. “Ele não morreu de suas condições de saúde que eram normais, ele morreu de uma disfunção comum da justiça criminal americana”, sublinhou.
Ele apontou que o momento de construir tal sistema de justiça criminal justo era agora e se disse mais esperançoso hoje do que nunca, se referindo ao texto bíblico em Eclesiastes.
NOVA ESPERANÇA
“Quando eu observei desta vez e vi manifestações onde, em alguns casos, os jovens brancos superavam os negros marchando, eu sei que é uma época diferente e uma estação diferente”, sublinhou o reverendo.
“Quando olhei e vi pessoas na Alemanha marchando por George Floyd, é uma época diferente e uma estação diferente. Quando eles foram diante do parlamento em Londres, Inglaterra, disseram que era uma época diferente e uma temporada diferente”, acrescentou.
“Eu vim para dizer a vocês, América, este é o momento”, assinalou Sharpton.
Ele, então, questionou as ideias racistas e xenófobas de Trump, sem precisar dizer tal nome. “Falam sobre a América Grande. Grande para quem? Nunca foi grande para os negros. Nunca foi grande para os latinos. Nunca foi grande para os outros. Não foi grande para as mulheres. As mulheres tiveram de marchar para obter o direito de votar”, acrescentou.
“Vamos fazer a América grande para todos pela primeira vez”, asseverou.
“TIRA ESSE JOELHO”
O racismo, a intolerância e a discriminação eram, na comparação de Sharpton, o “grande joelho” que impede o progresso e a concretização de sonhos. “O que aconteceu a Floyd acontece todo dia neste país, na educação, na saúde, e em cada área da vida americana. É hora de, em nome de George, nos levantarmos e dizermos: ‘tire seu joelho dos nossos pescoços”.
Também muita gente foi até a frente da mercearia em que George Floyd foi assassinado, para deixar uma flor, uma mensagem, um desenho, um agrado, com o local transformado em um memorial, com um rosto enorme de George, o “gigante gentil”.
Na véspera o filho mais velho, Quincy, se emocionara diante do memorial. Sua irmã caçula, de apenas seis anos, veio trazida pelo amigo de infância do pai, Stephen Jackson. Ela resumiu o que entendeu daquilo tudo: “Papai mudou o mundo”.
Com quarenta milhões de desempregados em 11 semanas nos EUA, 100 mil mortos pela inépcia e obscurantismo e iminência de uma depressão econômica, a dureza do distanciamento para conter a pandemia, enquanto uma dúzia de bilionários norte-americanos no mesmo período aumentou, segundo a Reuters, na ciranda de Wall Street, em meio trilhão de dólares sua riqueza – graças às manobras e benesses do Federal Reserve -, está cada vez mais duro agüentar tamanho joelho, que sufoca a quase todos.
E sob um governo que, como notou um ex-chefe do Pentágono, aposta na divisão do povo norte-americano – o que tenta agravar com a nova estratégia reeleitoreira de “presidente da lei e da ordem”, que vai por cabresto “na ralé” que foi às ruas.
Possivelmente, é isso que explica a explosiva adesão de tanta gente, de origens e histórias diversificadas, nas ruas dos Estados Unidos, assumindo como seu tamanho desabafo: “não consigo respirar”.