Atraso na aquisição das vacinas causou a morte de dezenas de milhares de pessoas. CPI da Pandemia está no encalço dos responsáveis
Os documentos que chegaram à CPI da Pandemia já são suficientes para provar que Jair Bolsonaro agiu intencionalmente contra a aquisição das vacinas, causando a morte de milhares de brasileiros. Agora, vem à tona mais uma denúncia grave: a existência de 54 e-mails que confirmam que, ao lado da sabotagem criminosa às vacinas, havia um intenso esforço do Planalto para adquirir a cloroquina, medicação ineficaz para o tratamento da Covid-19.
E-MAILS TROCADOS COM GOVERNO E EMPRESÁRIOS INDIANOS
Os 54 e-mails foram trocados entre o governo brasileiro e o governo da Índia, bem como com representantes de farmacêuticas do país asiático. Os documentos sigilosos, em poder da CPI, foram obtidos pela agência de dados Fiquem Sabendo, especialista em Lei de Acesso à Informação. Os e-mails foram trocados entre março e junho de 2020. O investimento de Bolsonaro para obter cloroquina, em vez de priorizar a busca por vacinas, é uma das frentes de investigação da CPI.
Os documentos revelam que a prioridade absoluta do governo era a obtenção da cloroquina. Algumas mensagens foram respondidas pelo governo brasileiro em 15 minutos, à noite e até em fins de semana. O esforço pelo medicamento ineficaz se contrapõe à postura do Executivo em relação às vacinas. No caso da farmacêutica Pfizer, o governo demorou mais de seis meses para responder aos contatos da empresa e ignorou várias ofertas de venda do imunizante.
Algo parecido ocorreu na crise de Manaus. Em plena falta do oxigênio, com gente morrendo, o governo não fez nada, mas mobilizou uma equipe, ou melhor, uma ‘força-tarefa’ do Ministério da Saúde para levar cloroquina à capital do Amazonas.
PEDIAM A MAIOR URGÊNCIA POSSÍVEL
As mensagens de e-mails foram enviadas pelo ministro-conselheiro da Embaixada do Brasil na Índia, Elias Antônio de Luna e Almeida Santos, segundo na hierarquia do posto diplomático. “Estamos acompanhando esta questão com muita atenção”, disse Santos em um e-mail de 31 de março ao diretor de uma empresa fornecedora de hidroxicloroquina. Em outro, o diplomata brasileiro pediu “a maior urgência possível” a um representante de uma farmacêutica sobre o preenchimento de documentos.
No dia 11 de abril de 2020, um sábado, Gaurav Kumar Thakur, secretário para América Latina e Caribe do Ministério das Relações Exteriores da Índia, escreveu a Santos para oferecer uma carga 100 mil comprimidos de hidroxicloroquina já prontos, uma vez que havia uma demanda do governo brasileiro pela matéria-prima do medicamento pendente de liberação. Em menos de oito horas, o funcionário do Itamaraty respondeu que “o governo brasileiro demonstrou interesse na oferta”.
No dia seguinte, na noite de domingo, o funcionário do Itamaraty enviou um segundo e-mail cobrando agilidade do colega indiano por informações sobre a empresa que forneceria os comprimidos de hidroxicloroquina. “Se você pudesse fornecer os detalhes até amanhã de manhã, ficaria muito grato, para que possamos iniciar contatos diretos com eles”, disse o diplomata brasileiro.
MENSAGENS ATÉ NOS FINS DE SEMANA
Duas semanas depois, no dia 25 de abril, em outra troca de e-mails também em um sábado à tarde, Santos levou apenas 15 minutos para responder à dúvida de um funcionário de um laboratório indiano que providenciava a remessa dos produtos ao Brasil. Em 30 de maio, outro sábado, Santos cobrou de funcionários indianos a mesma disposição para trabalhar aos fins de semana. Ele escreveu a Nitish Suri, autoridade do comércio exterior do governo da Índia, pedindo redução de prazo para uma remessa ao Brasil. “Desculpe por escrever em um sábado. Com relação às mensagens anteriores, seria possível que essa autorização fosse emitida ainda hoje?”, solicitou.
Em outro e-mail, T.C. Reddy, diretor de uma farmacêutica da Índia, sugeriu a empresários brasileiros que, gentilmente, “pressionassem Bolsonaro” a falar com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, para liberar a carga de hidroxicloroquina. Bolsonaro já havia telefonado ao presidente Modi, conforme ele mesmo disse em seu Twitter. “Nossos agradecimentos ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, que, após nossa conversa por telefone, liberou o envio ao Brasil de um carregamento de insumos para produção de hidroxicloroquina”, postou Bolsonaro.
Em 20 de maio do ano passado, a Sociedade Brasileira de Infectologia publicou um informe no qual afirmava que os “estudos clínicos com cloroquina ou hidroxicloroquina não mostraram eficácia no tratamento farmacológico de Covid-19 e não devem ser recomendados de rotina”. Ainda assim, quinze dias depois, em 5 de junho, Santos enviou e-mails a duas empresas indianas para saber preço, quantidade e prazo para entrega de difosfato de cloroquina, um dos componentes do medicamento, que é usado para malária e doenças autoimunes.
COM VACINAS O RITMO ERA MUITO MAIS LENTO
O comportamento em relação às vacinas era o inverso. O governo se movia com muita lentidão. Além da Pfizer, também houve atraso no processo de compra de doses da Coronavac, fabricada no Brasil por uma parceria do Instituto Butantan com a farmacêutica chinesa Sinovac. O diretor do Butantan, Dimas Covas, relatou que propostas para compra de vacinas foram ignoradas por dois meses. Mesmo após iniciar as tratativas, houve reveses em razão da postura do presidente.
Em outubro do ano passado, Bolsonaro desautorizou o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que havia anunciado, em uma reunião com governadores a compra de 46 milhões de doses da vacina do Butantan. Em entrevista, Bolsonaro mandou cancelar a compra de doses do imunizante. Em um vídeo, alguns dias depois, ao lado de Bolsonaro, Pazuello afirmou: “É simples assim: um manda e o outro obedece”. Pazuello mentiu à CPI ao dizer que não foi desautorizado e que a fala de Bolsonaro não tinha atrapalhado a compra da vacina. O Brasil inteiro assistiu ao seu vexame. Ele foi desmentido por Dimas Covas na CPI.