Debate surgiu depois que estudos da OMS mostram importância do rastreamento dos pré-sintomáticos e dos sintomáticos leves de Covid-19 para conter a pandemia
Uma falsa polêmica se estabeleceu após a declaração, feita na segunda-feira (08), pela chefe do programa de emergências da entidade, Maria van Kerkhove, de que parece ser “rara” a transmissão da Covid-19 por pacientes sem sintomas da doença.
O negacionista Bolsonaro que, desde o início, não queria fazer nada a não ser deixar a “manada” se infectar, independente de quantos morreriam, foi o primeiro e comemorar a declaração.
“Foi noticiado ontem [segunda], também de forma não comprovada, como nada é comprovado na questão do coronavírus. Mas que a transmissão por parte de assintomáticos é praticamente zero. Então isso vai dar muito debate e muitas lições serão tomadas”, disse Bolsonaro.
Em seguida, o presidente afirmou: “Com toda certeza, isso pode sinalizar uma abertura mais rápida do comércio e a extinção daquelas medidas restritivas adotadas, segundo decisão do STF, adotadas por governadores e prefeitos.”
Os esclarecimentos feitos pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS), nesta terça-feira (09), de que os assintomáticos podem até ter baixa transmissibilidade – não se tem certeza ainda -, mas os pré-sintomáticos, ou seja, aqueles que ainda não manifestaram os sintomas, ou nem perceberam que tiveram os sintomas da Covid-19, é que são os grandes transmissores da doença, desautorizou a estupidez do presidente e reforçou os defensores do isolamento social.
Mas, como diz um amigo, que por sinal entende muito do assunto, há “timing”, ou seja, “tempo certo” para tudo nesta vida. Agora a discussão central não é o isolamento versus não solamento, mas sim as medidas de rastreio de casos para conter a pandemia. Para ele, o isolamento passa a ser um elemento adjuvante desta batalha.
“Se ficarmos discutindo isolamento versus não isolamento nesta altura do campeonato, muita gente vai pagar por uma discussão fora de hora”, diz.
Desde o início, quando as medidas de isolamento eram extremamente necessárias, era fundamental complementá-las com a ação de rastreio de casos com testagem dos casos sintomáticos, de suspeitos, seus contatados e seus familiares, para abafar os focos da doença e, assim, interromper a circulação do vírus.
O isolamento, que não podia ser mais longo do que a sociedade poderia suportar, tinha – e tem – que ser crescentemente complementado pelas ações de vigilância epidemiológica.
O professor Eduardo Costa, da Fundação Osvaldo Cruz, em seu artigo “Alerta Renovado”, já vinha alertando enfaticamente para este problema. Depois, Roberto Bittencourt, professor do Programa de Pós Graduação da Escola Superior em Ciências da Saúde do Distrito Federal, em seu trabalho “A fase II do enfrentamento da pandemia”, também chamou a atenção para a grave deficiência dos gestores nas ações de vigilância epidemiológica, de rastreio de casos e de isolamento.
Ambos alertaram para o fato de que o isolamento sozinho já não era capaz de resolver o problema da contenção da pandemia e nem era possível de ser mantido por muito mais tempo.
Vários países mostraram isso com clareza. Era a “martelada” inicial e a “dança” da busca intensiva de casos, como mostrou o artigo de Tomas Pueyo, publicado em março pela Universidade de Stanford.
Os dois especialistas brasileiros foram enfáticos no alerta de que era necessário agir rapidamente. Quanto mais tempo, mais difícil vão se tornando as ações de rastreamento de suspeitos e sintomáticos. Esses números crescem diariamente.
Eis que o biólogo Átila Iamarino, um dos primeiros a trazer para o Brasil os resultados do famoso estudo do Imperial College de Londres, aparece para ajudar no debate. Ele reforçou as orientações da OMS de que é necessário manter o máximo possível o isolamento social e as medidas de proteção e higiene, como forma de combate à pandemia, mas destacou que, quando a OMS se manifestou sobre o tema da transmissibilidade de assintomáticos, a entidade estava discutindo exatamente sobre o rastreio que deve ser feito e que, segundo Átila, “o Brasil está fazendo muito pouco”.
Algumas prefeituras, como a de Florianópolis, por exemplo, tem feito isso com bastante sucesso na contenção da pandemia. (v. HP de 8 de junho de 2020 “Testagem e controle ativo contiveram a pandemia”, diz secretário de Saúde de Florianópolis).
Átila explicou como se faz essa vigilância epidemiológica na base do sistema de saúde que, segundo ele e os especialistas citados acima, está faltando no Brasil. “É ter uma equipe de pessoas dedicadas para quando uma pessoa aparece com sintomas no hospital ou em algum teste, você rastrear os contatos dessas pessoas, com quem ela teve contato, quem é a família dela, que região ela vive, para ver se há mais Covid-19 naquela região”, disse ele, em entrevista à TV Globo. “Neste rastreio”, explica o biólogo, “o que a OMS está orientando é que o que vale mais a pena ser investigado é a transmissão dos casos sintomáticos”.
“Quando você vê alguém que tem Covid-19, e vai investigar com quem essa pessoa teve contato, dentro daquelas pessoas vale muito mais a pena acompanhar quem tem sintomas da Covid porque se você conseguir tirar essa pessoas e colocá-las em isolamento, você consegue conter a transmissão do vírus”, explica o especialista. Para ele, o grande problema está nas pessoas que são pré-sintomáticas. Elas são pessoas que transmitem a doença sem saberem que estão transmitindo. Somente um esquema de rastreio muito forte poderá detectar essa pessoa.
Maria van Kerkhove voltou a se pronunciar nesta terça-feira, depois de estabelecida a polêmica. Ela disse que recebeu “muitas mensagens da noite para o dia” e que achou importante esclarecer o mal-entendido. Também explicou que as pesquisas estão em andamento. “A maioria das transmissões que conhecemos ocorre por pessoas com sintomas que transmitem o vírus por meio de gotículas infectadas. Mas há um subconjunto de pessoas que não desenvolvem sintomas”, afirmou.
“Para realmente entender quantas pessoas não têm [os sintomas], pois ainda não temos essa resposta, existem algumas estimativas. Elas sugerem que entre 6% e 41% da população podem estar com o vírus, mas não apresentar os sintomas.”
Maria van Kerkhove completou: “Acho que é um mal-entendido afirmar que uma transmissão assintomática globalmente é muito rara, sendo que eu estava me referindo a um subconjunto de estudos. Também me referi a alguns dados que ainda não foram publicados, e essas são as informações que recebemos de nossos Estados-Membros”.
Ao analisar o tema nesta segunda-feira, Kerkhove citava dados de países com grande capacidade de testagem e rastreio. Além disso, ela disse que, em alguns casos, quando uma segunda análise dos supostos casos assintomáticos é feita, descobre-se que os pacientes tiveram, na verdade, leves sintomas da infecção.
No documento, a entidade diz que “estudos mais abrangentes sobre a transmissão de indivíduos assintomáticos são difíceis de conduzir”, mas cita um trabalho como exemplo. A pesquisa aponta que, entre 63 indivíduos assintomáticos estudados na China, havia evidências de que 9 (14%) infectaram outra pessoa.
No mesmo documento, a OMS alerta: “Os dados disponíveis até o momento, que tratam de casos de infecção em pessoas sem sintomas são decorrentes de um número limitado de estudos com pequenas amostras que estão sujeitas a revisões e não podem dizer se eles carregam a transmissão.”
Se for confirmado, como aventou Maria van Kerkhove, que as pessoas assintomáticas, ou seja, aquelas que nunca vão manifestar sintomas, apesar de terem sido infectadas, têm baixo potencial de transmissão, a opção não é não fazer nada, como se assanhou Bolsonaro, mas sim complementar o isolamento social possível com a intensificação das ações de rastreio de casos.
Para isso será necessário, obviamente, reconstruir a capacidade de atuação do SUS, investir nos profissionais, na carreira de Estado, nas equipes de saúde da família, nos agentes de saúde, etc, etc. Estamos atrasados, mas podemos fazer o que tem que ser feito.
SÉRGIO CRUZ