Em sua sentença, que barrou a colocação da turismóloga, especializada em hotelaria, Larissa Rodrigues Peixoto Dutra na presidência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o juiz Adriano de Oliveira França, da 28ª Vara Federal do Rio de Janeiro, faz uma observação pertinente:
“Embora pareça notório (…) que a promoção e proteção do patrimônio cultural não se enquadra dentro da expertise dos igualmente relevantes profissionais formados em turismo e hotelaria, (…) podendo por vezes até haver contraposição de interesses (…), constata-se que todos os ex-Presidentes do IPHAN, pelo menos desde 1988, não se formaram em turismo e hotelaria, mas sim em história, arquitetura ou antropologia. Estes ramos da ciência mais se coadunam com os componentes descritos nos incisos do art. 216 da Constituição, o que corrobora para identificação de incompatibilidade da nomeada para o cargo de presidente do IPHAN.”
Em sua ação, pedindo a suspensão da nomeação, o deputado Marcelo Calero (Cidadania-RJ) aponta que Larissa Rodrigues Peixoto Dutra “não possui qualificação compatível com o cargo de Presidente do IPHAN, pois não preenche técnica e moralmente nenhum dos requisitos exigidos”.
O deputado anexou ao seu pedido a gravação da reunião ministerial de 22 de abril deste ano, que consta do Inquérito Policial nº 4.831, instalado pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Nessa reunião, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, propôs que o governo usasse a epidemia de COVID-19 como distração à imprensa, para derrubar a regulamentação sobre o meio ambiente, sobre o Patrimônio Histórico, sobre a Agricultura – e sobre tudo o mais:
RICARDO SALLES: … tudo que a gente faz é pau no judiciário, no dia seguinte. Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação regulam… é derregulatório que nós precisamo (sic), em todos os aspectos.
A resposta a essa proposta de assalto, por Jair Bolsonaro, foi a seguinte:
JAIR BOLSONARO: E assim nós devemos agir. Como tava discutindo agora. O IPHAN, não é? Tá lá vinculado a Cultura. Eu fiz a cagada em escolher, nu… não escolher uma pessoa que tivesse o… também um outro perfil. É uma excelente pessoa que tá lá, tá? Mas tinha que ter um outro perfil também. O IPHAN para qualquer obra do Brasil, como para a do Luciano Hang. Enquanto tá lá um cocô petrificado de índio, para a obra, pô! Para a obra. O que que tem que fazer? Alguém do IPHAN que resolva o assunto, né? E assim nós temos que proceder. E assim, cada órgão, como eu falei da Teresa Cristina, que mudou uma Instrução Normativa, revogou uma Instrução Normativa, ajudou quatrocentos mil pessoas no Vale do Ribeira – parabéns a ela – assim são outras decisões. A questão de armamento, né? As questões de … mas por quê? Espera aí! Ministro da Justi … senhor ministro da Justiça, por favor. Foi decidido a pouco tempo que não podia botar algema em quase ninguém. Por que tão botando algema, em cidadão que tá trabalhando, ou mulher que tá em praça pública, e a Justiça não fala nada? (grifo nosso).
OS VÂNDALOS
À observação do juiz sobre os ex-presidentes do IPHAN, é possível acrescentar que o primeiro presidente da instituição, nomeado após sua fundação pelo presidente Getúlio Vargas, em 1937, foi Rodrigo M. F. de Andrade, um dos maiores intelectuais da História do Brasil, autor de dois clássicos da historiografia brasileira (“Brasil: Monumentos Históricos e Arqueológicos”, de 1952, e “Artistas Coloniais”, de 1958).
Rodrigo M. F. de Andrade – que era bisneto do primeiro biógrafo do Aleijadinho e pai do cineasta Joaquim Pedro de Andrade, e deixou também um notável livro de contos, “Velórios”, de 1936 – foi presidente do IPHAN por 30 anos, tal a sua notabilidade.
Durante esse tempo, ele praticamente moldou a atitude do poder público brasileiro em relação ao patrimônio histórico e artístico nacional, isto é, àquele produzido e pertencente ao povo brasileiro.
Esse molde foi consagrado pela Constituição de 1988, no artigo citado pelo juiz Adriano de Oliveira França, como fundamentação para suspender a nomeação da amiga de Bolsonaro para o IPHAN:
“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
“I – as formas de expressão;
“II – os modos de criar, fazer e viver;
“III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
“IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
“V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
“§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
“§ 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.
“§ 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.
“§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.
“§ 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.”
É essa rede de proteção sobre mais de cinco séculos de História do Brasil, que Bolsonaro e o “véio da Havan” querem destruir, com a nomeação da turismóloga Larissa Rodrigues Peixoto Dutra para a presidência do IPHAN.
QUEM APROVEITA?
Em 7 de agosto de 2019, Luciano Hang, o amigo e financiador das milícias digitais de Bolsonaro, conhecido como “o véio da Havan”, publicou um vídeo, em que dizia:
“Nossa obra em Rio Grande (RS) está parada porque encontraram fragmentos de pratos. Fomos obrigados pelo IPHAN a contratar um arqueólogo. Queremos inaugurar a loja em novembro, mas como os burocratas no Brasil não têm pressa, me pergunto: quando teremos uma resposta do IPHAN? É um absurdo. De novo, a burocracia sentado (sic) em cima do cidadão, sentado (sic) em cima da geração de emprego” (v. vídeo).
A empresa de Hang, a Havan, para obter autorização da obra, assinara um compromisso com o IPHAN. A obra era uma “megaloja” da Havan, onde o sujeito pretendia instalar outra cópia da estátua da liberdade (aquela do porto de Nova Iorque).
Pelo compromisso, a Havan era obrigada a contratar uma empresa de consultoria em arqueologia, pois estava construindo em um terreno onde havia a possibilidade de existirem restos de outras épocas da História do Brasil.
Como esclareceu o IPHAN, na época sob a presidência da historiadora maranhense Kátia Bogéa, “a obra da empresa Havan, na cidade de Rio Grande (RS), não foi embargada pelo Iphan. A paralisação foi recomendada pela empresa de consultoria em arqueologia contratada pela própria Havan. A empresa assumiu a responsabilidade de autolicenciar-se junto ao IPHAN, o que significa suspender, por livre iniciativa, as atividades caso fossem identificados sítios arqueológicos. Em casos de achados arqueológicos, a paralisação das atividades deveria ocorrer apenas no local do achado, não implicando, portanto, embargo total da obra”.
O “véio da Havan”, além de entreguista, é, portanto, mentiroso.
Mas Bolsonaro demitiu a presidente do IPHAN, Kátia Bogéa, que respondeu, sobre Hang:
“Ele criou esse escarcéu porque nem a mais simples das obrigações eles querem fazer. Estávamos ali para cumprir a Constituição. O que queriam é que não observássemos a lei.”
Bolsonaro nomeou, para o lugar até então ocupado por Kátia Bogéa, a arquiteta Luciana Feres.
Apenas 24h depois, a nomeação de Luciana Feres foi anulada pela família Bolsonaro, após um chilique daquele nazista que era secretário de Cultura, Roberto Alvim, que queria nomear para o IPHAN um monarquista de nome Olav Schrader, discípulo online de Olavo de Carvalho.
Então, Bolsonaro nomeou a turismóloga e especialista em hotelaria Larissa Rodrigues Peixoto Dutra para a presidência do IPHAN.
FINALIDADE
Em seu parecer sobre a ação do deputado Calero contra a nomeação de Larissa Rodrigues Peixoto Dutra, o Ministério Público Federal apontou outro problema: o ato era ilegal porque a especialista em hotelaria “não atende os requisitos legais para a investidura no cargo de Presidente do IPHAN, por não preencher critérios objetivos estabelecidos pelo Decreto 9.727/19, quais sejam, (i) possuir título de mestre ou doutor, (ii) possuir experiência mínima de 5 anos em atividades correlatas às áreas de atuação do IPHAN e (iii) possuir formação acadêmica compatível com o exercício da função”.
O decreto foi assinado pelo próprio Bolsonaro.
Tal como o deputado Calero, o MPF levantou, também, o desvio de finalidade na nomeação de Larissa Rodrigues Peixoto Dutra: sua nomeação seria para contemplar os interesses do dono da Havan.
O juiz Adriano de Oliveira França não aceitou essa última argumentação. Mas, aduziu:
“… a finalidade da criação do IPHAN é a promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro definido pelo art. 216 da Constituição, com o que não se identifica a formação e a experiência profissional da nomeada para o cargo. Esta, (…) embora tenha exemplar perfil profissional e formação acadêmica, tal perfil e formação não são compatíveis com a finalidade determinada por lei para o IPHAN. (…) a promoção e proteção do patrimônio cultural não se enquadra dentro da expertise dos igualmente relevantes profissionais formados em turismo e hotelaria”.
(C.L.)
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