(HP 07/09 a 10/10/2012)
Os escritos econômicos do presidente Getúlio Vargas – em geral levados ao público sob forma de pronunciamentos – necessitam uma urgente edição. É bastante extraordinário que a maior personalidade da História do Brasil tenha, até hoje, a sua obra teórica tão subestimada que até podemos ver, ao escrever a palavra “teórica”, as caretas, arrepios e frissons de alguns elementos.
No entanto, não seremos, provavelmente, os primeiros a ressaltar esse aspecto da obra de Getúlio. Ao ler seus discursos, torna-se evidente que ele foi o grande formulador do nacional-desenvolvimentismo, acima de todos os excelentes homens que o acompanharam. Já mostraremos essa capacidade do grande presidente, porém, vale ressaltar que não poderia ser diferente: era a ele – ainda que com a ajuda, evidentemente, de seus colaboradores – que cabia formular a política econômica de seu governo. Nenhum líder, nenhum governante, pode deixar a outros essa tarefa, sob pena de um fracasso que não será apenas seu, mas do país. Todos ainda nos lembramos do momento em que o presidente Lula, após a sua reeleição, tomou as rédeas da política econômica e levou o Brasil ao seu mais recente triunfo econômico.
Há decisões que são intransferíveis. Por mais bem intencionados que sejam os ocupantes de cargos nessa área, é àquele que foi escolhido pelo povo que cabe dirigir e tomar as decisões que afetam milhões, dezenas de milhões de pessoas, das crianças aos idosos. A liderança política é também um critério, e essencial, para decidir sobre a economia. Aliás, deveria ser o principal critério, tanto assim que, há tempos, o cavalo de batalha (mais de Troia que de batalha) do neoliberalismo passou a ser uma pregação por supostas decisões “técnicas”, que são apenas decisões políticas a favor dos antros financeiros, com bancos centrais “independentes” que o são apenas em relação ao povo e à nação – precisamente para submetê-los a um cartel de meia dúzia de bancos externos que pilham o Tesouro.
Getúlio, é verdade, vai além da política econômica, entrando plenamente no terreno da economia política – isto é, das relações de produção. Mas, como dirigente prático, é a partir da política econômica – cujo objetivo é o desenvolvimento (ou não) das forças produtivas – que ele chega à economia política, vale dizer, à necessidade de mudar as relações de produção.
Há exatamente 30 anos, em agosto de 1982, Cláudio Campos explicitou a seguinte questão:
“… do ponto de vista objetivo, qualquer revolução só se torna possível e necessária quando as relações de produção existentes no país atrasam-se em relação ao desenvolvimento de suas forças produtivas, tornando-se um entrave ao avanço destas. (…) é preciso, pois, apontar quais as principais características das relações de produção, no Brasil, que entravam o desenvolvimento atual de nossas forças produtivas. Será o fato de serem relações de produção capitalistas? Parece-nos claro que não. É evidente que, do ponto de vista econômico, não é o capitalismo em geral o que está centralmente em jogo em nossa revolução atual, nem tampouco a constituição já de uma economia socialista.
“O principal entrave ao desenvolvimento das forças produtivas do Brasil de hoje não é o caráter capitalista das nossas relações de produção, é o caráter dependente dessas relações. É essa dependência o que é preciso, centralmente, romper agora. As imensas energias produtivas acumuladas no país, mesmo sob a dependência, estão hoje sendo sufocadas por um modelo de desenvolvimento que tem suas principais diretrizes e prioridades definidas a partir de interesses externos – mais concretamente, a partir dos interesses dos círculos financeiros internacionais e das grandes corporações multinacionais.” (v. HP 07/05/2010).
Cláudio foi, também, o grande responsável pelo resgate da obra e da figura de Getúlio como decisiva para a revolução brasileira. Com efeito, vejamos este trecho de um discurso quase esquecido – pronunciado em homenagem ao então presidente do Paraguai, Higinio Morínigo, na histórica cidade de Volta Redonda, em 1938:
“Não será exagero atribuir, historicamente, a nossa conduta de incompreensão e passividade ao provincialismo que a Constituição de 1891 estabeleceu e ao reclamo dos países industriais interessados em manter-nos na situação de simples fornecedores de matérias-primas e consumidores de produtos manufaturados. Aquela expressão ‘país essencialmente agrícola’, de uso corrente para caracterizar a economia brasileira, mostra em boa parte a responsabilidade do nosso atraso” (grifo nosso).
Getúlio, como se pode perceber, não conseguia pronunciar discursos burocráticos e meramente formais (ou seja, vazios) nem quando estava apenas recepcionando um chefe de Estado de país vizinho.
Mas as ideias que expunha eram produto de uma longa reflexão, em especial sobre os resultados das medidas econômicas.
Recentemente, ao ler mais uma biografia do presidente Vargas, nossa atenção foi despertada para a impermeabilidade do autor ao modo como o pensamento, as convicções do biografado, se desenvolveram e se desdobraram. O biógrafo até consegue perceber que, antes mesmo de sua eleição para o governo do Rio Grande do Sul, Getúlio já fora além do positivismo de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros. Mas esse é um aspecto que foi frisado pelo próprio Getúlio, em texto conhecido há quase 20 anos:
“À noite, conversava com meu filho Lutero sobre a preocupação filosófica nos últimos anos de minha vida de estudante, a ânsia de encontrar na ciência ou na filosofia uma fórmula explicativa da vida e do mundo. Falou-me dos vestígios que ele encontrava dessa preocupação nos livros da minha biblioteca, que ele estava percorrendo, e nas anotações encontradas. No conceito que eu lhe repetia, e que ele encontrara nessas anotações ou referências, estava, como aplicação da teoria darwiniana, que vencer não é esmagar ou abater pela força todos os obstáculos que encontramos – vencer é adaptar-se. Como tivesse dúvidas sobre a significação da fórmula, expliquei-lhe: adaptar-se não é o conformismo, o servilismo ou a humilhação; adaptar-se quer dizer tomar a coloração do ambiente para melhor lutar” (cf. Getúlio Vargas, “Diário“, anotação de 13 de março de 1936).
No entanto, a modificação que a campanha a presidente, pela Aliança Liberal, sobretudo os espetaculares comícios do Rio e São Paulo, provocaram em Getúlio, é, nessa biografia, não somente ignorada como abertamente negada – apesar dessa falha tornar sem lógica o resto do livro.
Getúlio detestava dogmas – o que parece único entre os políticos anteriores a 1930, mesmo (ou, talvez, principalmente…) aqueles outros que se destacavam por alguma erudição, e, nesse caso, não estamos lembrando apenas de Washington Luiz e Artur Bernardes, mas de figuras como Gilberto Amado, o Graciliano da primeira fase (vide suas cartas dessa época) e o, também da primeira fase, Barbosa Lima Sobrinho (vide seu livro de 1933, “A Verdade Sobre a Revolução de 30”). A República Velha era o reino do dogma, melhor dizendo, da esclerose – o que prejudicou homens que, depois, contribuiriam inestimavelmente para o país.
O período posterior ao golpe de 29 de outubro de 1945 foi de intensa reflexão para Getúlio. É, então, que ele pronuncia no Senado uma série de discursos sobre os problemas econômicos, que começamos hoje a publicar.
Nesse período que vai até sua “volta ao governo nos braços do povo”, em 1950, uma das questões mais importantes era o papel dos EUA após a morte de Franklin Delano Roosevelt. Esse papel não era, apesar do próprio golpe de 1945 e da ação do embaixador norte-americano, Adolf Berle Jr., totalmente claro, ao contrário do que fora – e continuava sendo – o papel da Inglaterra.
Anteriormente, o presidente brasileiro já havia, várias vezes, descortinado a situação do pós-guerra, considerando os EUA tal como era esse país entre 1933 e 1945. Por exemplo:
“… estamos empenhados numa luta decisiva, em que se jogam os destinos da civilização, e devemos confiar na voz profética de Franklin Roosevelt, o grande líder do continente americano, certos de que esta guerra não é feita para garantir privilégios e amparar monopólios, mas para estabelecer a paz com justiça e assegurar a todos uma vida melhor, subordinando as vantagens individuais aos deveres para com a coletividade” (Discurso no quinto aniversário do Estado Novo, 10 de novembro de 1942).
Dois anos depois, entretanto, o mesmo conteúdo é dito sob forma de advertência:
“Não podemos admitir a hipótese (…) de que, terminada a guerra e depois de tantos sacrifícios, venham a persistir nas relações entre os povos os mesmos processos condenáveis de dominação econômica. (…) A excelente máxima de ‘viver e deixar viver’ terá de presidir aos ajustes e convênios futuros. E nem vale a pena pensar em que desorganização caótica, de revoluções e perturbações, mergulhará o mundo de novo se não for ouvida a voz da razão e não nos convencermos de que não é possível a hegemonia de nenhum povo ou raça, isoladamente, sobre os demais” (cit. in Miguel Bodea, “Trabalhismo e Populismo no Rio Grande do Sul“, Porto Alegre/RS, 1992, Ed. UFRGS, pág. 148).
Nas eleições de dezembro de 1945, Getúlio foi eleito, de acordo com a legislação da época, senador por dois Estados (Rio Grande do Sul e São Paulo) e deputado pelo Rio Grande do Sul, São Paulo, Distrito Federal, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Paraná.
Um ano depois, em 13 de dezembro de 1946, ao fazer o balanço de seu primeiro governo, na tribuna do Senado, ele dirá:
“… eu tinha e tenho a confiança do povo. Podia utilizar em benefício do próprio povo, da nossa pátria, da América e da humanidade essa confiança. Podia e devia. E foi o que fiz. E a prova de que o povo me conforta com a generosidade de sua confiança está na minha presença nesta nobre Casa.“
Apenas algumas semanas antes, em 29 de novembro de 1946, o então ex-presidente, publicamente – era um comício da candidatura Alberto Pasqualini ao governo do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre – expressou sua avaliação do golpe de Estado:
“As causas remotas da campanha política que sofri, seus motores ocultos e os ostensivos, geram uma convicção.
“Essa convicção é de que fui vítima dos agentes da finança internacional, que pretende manter o nosso país na situação de simples colônia, exportadora de matérias-primas e compradora de mercadorias industrializadas no exterior.
“Os empreiteiros desses agentes colonizadores, os advogados administrativos e representantes de tais empresas, por elas estipendiados, blasonando independência e clamando por liberdade, adulteraram sistematicamente a verdade, criando um falso ambiente que contaminou certas classes ou setores sociais. Isso levou patriotas desavindos ou desviados de suas funções a supor que praticavam um ato de salvação nacional com o golpe de 29 de outubro. Não os acuso por isso. Até explico e compreendo. A verdade, porém, está lavrando nas consciências e um dia poderá surgir documentada.
“Não podem perdoar-me os usufrutuários e defensores de trustes e monopólios que meu governo houvesse arrancado das mãos de um sindicato estrangeiro, para restituí-lo sem ônus ao patrimônio nacional, o Vale do Rio Doce, com o Pico de Itabira, contendo uma das maiores jazidas de ferro do mundo.
“Tampouco me perdoariam os agentes de finanças estrangeiras a nacionalização das outras jazidas minerais do nosso rico subsolo e das quedas d’água geradoras de força, o uso obrigatório do carvão nacional, as fábricas de alumínio e de celulose e a construção de Volta Redonda.
“Era contra os interesses da finança internacional a industrialização progressiva e rápida do Brasil.
“Pedantocratas e fariseus acusam-me de inflacionista. Bem-aventurada inflação que redimiu o Nordeste, realizando as obras contra as secas; que saneou a Baixada Fluminense; que iniciou no Rio Grande do Sul a construção de grandes barragens para fornecer energia barata às suas indústrias e promoveu a defesa de sua capital contra as enchentes, que periodicamente a assolavam. Estendeu sobre o país milhares de quilômetros de estradas de ferro e de rodagem, construiu pontes e arsenais. Remodelou a capital da República, abrindo novas artérias e realizando novas construções que assinalavam o estágio de uma civilização. Salvou as classes produtoras da maior das suas crises com o reajustamento econômico. Valorizou o trabalhador com a legislação social e amparou a agricultura e a pecuária com o crédito bancário. Bem-aventurada inflação que construiu a grande siderurgia, que armou o Brasil para a defesa na maior guerra mundial, que reduziu em 40% a dívida externa, contraída pelos governos anteriores, que deixou um encaixe-ouro de 700 milhões de dólares, tornando o cruzeiro uma das moedas mais estáveis do mundo. Com essa mesma inflação pretendia ainda, através da Companhia Hidrelétrica do São Francisco, já criada, iniciar grandes obras no mais brasileiro dos nossos rios, para que os futuros governos formassem aí uma nova civilização industrial. Pretendia, ainda, deixar criada a grande companhia de construção de material elétrico. Seus estudos já estavam feitos por outro grande técnico que, na sua especialidade, rivaliza com o de Volta Redonda.“
Getúlio, naquela altura, parece ter chegado a uma conclusão sobre as batalhas futuras. Então, pronuncia seu primeiro discurso na Constituinte, que é seguido por mais quatro outros, sempre com o foco nos problemas econômicos.
É verdade que – num plenário em que havia uma bancada reacionária permanentemente hostil não apenas a suas ideias, mas a ele, pessoalmente – ele teve que enfrentá-la, o que fez com o brio costumeiro. Provocado por um obscuro – e hoje esquecido – constituinte, que fora chefe de polícia em Pernambuco antes da Revolução de 30, com atos que causaram a sua prisão pelo movimento revolucionário, Getúlio replicou:
“Quando for votada a Constituição, falarei ao povo para definir minha posição perante a história de minha pátria. Mas, para que não suponham que haja nesta atitude qualquer vislumbre de receio, venho declarar que, se alguém tiver contra mim motivos de ordem pessoal ou se julgar com direitos a desagravo, fora do recinto desta assembleia estarei à sua disposição.“
Ninguém se apresentou.
O discurso que publicaremos na próxima edição, em versão condensada, é o primeiro grande discurso de Getúlio na Constituinte. Para o leitor que quiser conhecê-lo na íntegra, pode ser encontrado na excelente coletânea “Getúlio Vargas”, organizada por Maria Celina D’Araujo para a série “Perfis Parlamentares”, publicada pela Câmara dos Deputados.
(continua)