Relatório final foi entregue pela CPI ao procurador-geral da República, Augusto Aras, dia 27 de outubro, um dia após a aprovação do texto
A assistente social Paola Falceta costuma ouvir áudios enviados pela mãe que ficaram gravados no celular dela, quase um ano depois da morte da mãe.
Italira Falceta morreu aos 81 anos, vítima da covid-19, em março de 2020. Naquele mês, 13,8 mil pessoas com mais de 80 anos perderam a vida em razão do novo coronavírus, veiculou o jornal O Estado de S. Paulo.
De acordo com uma das conclusões do relatório final da CPI da Covid-19 no Senado, deste universo, 3,5 mil idosos poderiam ter sido salvos caso o país não estivesse atrasado na campanha de vacinação. “Essa é a parte mais difícil”, afirmou Paola.
Contundente, a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) no Senado indiciou o presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), quatro ministros e outras 73 pessoas — além de duas empresas —, por crimes relacionados à pandemia. Mas, passados 100 dias desde a apresentação e aprovação do relatório final da CPI, não há nem sequer um inquérito aberto para investigar o alto escalão do governo Bolsonaro, com base no documento.
LENIÊNCIA
O relatório final foi entregue pelos senadores ao procurador-geral da República, Augusto Aras, dia 27 de outubro, um dia após a aprovação do relatório na CPI. Em 25 de novembro, Aras protocolou 11 petições, que tramitam em segredo de Justiça, relacionadas a Bolsonaro e a ministros. Trata-se de procedimentos preliminares, em que o procurador-geral avalia se vai, ou não, pedir investigação formal.
No Congresso, um clima de desconfiança se instalou entre os senadores da CPI, o que ficou explícito com a recente criação de observatório para acompanhar os desdobramentos do relatório. Os parlamentares temem a “inação” da PGR e da Polícia Federal. “Infelizmente, o PGR [Augusto Aras] não tem se mostrado solícito em relação a essa pauta, retardando de forma injustificada o avanço”, disse a senadora Simone Tebet (MDB-MS).
Essa lentidão se configura como crime de leniência, que nada mais é que o mesmo que lentidão, suavidade ou aquilo que é manso e agradável com aqueles que são protegidos por foro especial ou privilegiado.
Augusto Aras foi escolhido para o cargo por Bolsonaro por fora da lista tríplice organizada pelos procuradores da República. Por lei, Bolsonaro não é obrigado a seguir a lista, mas tornou-se costume os presidentes nomearem o mais votado pelos procuradores.
PRERROGATIVA DE FORO
A PGR tem pedido o compartilhamento de arquivos com a CPI, entre outros requerimentos ao STF (Supremo Tribunal Federal). No entanto, até agora, nenhum inquérito foi autuado na Corte Suprema para investigar agentes com foro.
Os casos estão com os ministros Dias Toffoli, Rosa Weber, Kassio Nunes Marques, Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso e Ricardo Lewandowski. A PGR afirmou que “não é possível fornecer informações adicionais sobre eventuais diligências e o andamento dos casos” ao ser questionada se já pediu abertura de investigação formal. Os ministros não se manifestaram.
Entre os alvos dos procedimentos preliminares no STF, além do presidente da República, estão ministros — Marcelo Queiroga (Saúde), Onyx Lorenzoni (Trabalho e Previdência), Braga Netto (Defesa) e Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União) —, e parlamentares como o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e os deputados federais Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), Carlos Jordy (PSL-RJ), Ricardo Barros (PP-PR), Bia Kicis (PSL-DF) e Carla Zambelli (PSL-SP).
A negligência na vacinação e o incentivo ao descumprimento de medidas sanitárias são as condutas mais graves atribuídas a Bolsonaro e ministros. Estudos citados no relatório afirmam que entre 120 mil e 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas se não fosse a omissão do governo.
Desdobramento, porém, pode ser contabilizado em instância inferior. Indiciado por incitação ao crime, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) vai ser investigado pelo Ministério Público estadual, que abriu PIC (Procedimento Investigatório Criminal) sigiloso.
Por outro lado, lista de 57 indiciados foi enviada para o Ministério Público do DF, mas o promotor de Justiça Clayton Germano afirmou que não tinha competência para atuar no caso.
PREVARICAÇÃO
Na semana passada, a PF finalizou inquérito sobre as negociações do Ministério da Saúde para a compra da vacina Covaxin sem sugerir o indiciamento de Bolsonaro, que foi acusado de ignorar alertas sobre suspeita de corrupção.
Relatório enviado ao STF concluiu que não houve crime de prevaricação.
Ex-presidente da CPI, o senador Omar Aziz (PSD-AM) criticou o relatório. “Se você é comunicado, é obrigado a falar. Imagina o presidente [da República] que, no ofício do cargo, tem a obrigação de mandar apurar? Então ninguém prevarica mais nesse país, esse crime não existe mais.”
Também na semana passada, Aras pediu ao Supremo que intimasse a cúpula da CPI para prestar esclarecimentos sobre suposta divulgação de dados sigilosos durante os trabalhos do colegiado. Nisso aí, Aras foi rápido e contundente.
COBRANÇA
Diante da ausência de respostas, houve quem procurasse caminhos alternativos para ajudar quem precisa. Paola Falceta é presidente da Avico (Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19), que oferece auxílio psicológico e amparo legal aos atingidos pela pandemia. “É um espaço onde podem chorar, rir, [falar] tudo que ninguém quer escutar”, disse ela.
Professora da UnB, Fernanda Natasha é voluntária na Avico. Ela perdeu o pai, Juraci Cruz Junior, aos 55 anos, em novembro de 2020.
“Meu pai não conheceu a minha filha. Ele sempre teve esse desejo muito forte de ser avô”. A Avico protocolou, antes da CPI da Covid-19, representação criminal contra Bolsonaro na PGR (Procuradoria-Geral da República). Aras não respondeu até hoje.
PRERROGATIVA DE FORO NO MUNDO
No artigo “Foro por prerrogativa de função no mundo”, publicado no portal Jusbrasil, o advogado Pedro Torres destrincha a questão.
“Os Estados Unidos não adotam o sistema do foro privilegiado, sendo que todas autoridades que eventualmente se envolvam em crimes — inclusive o presidente, habitualmente conhecido como ‘o homem mais poderoso do mundo’ — são julgadas pelo juízo de primeira instância.
Na Grã-Bretanha não se concede o benefício nem para a mais alta autoridade de governo. Tanto o primeiro-ministro quanto qualquer parlamentar estão sujeitos ao julgamento na primeira instância.
“Em Portugal, o presidente, o primeiro-ministro e o presidente da Assembleia são julgados pelo Supremo Tribunal de Justiça apenas em caso de crimes praticados no exercício do mandato, sendo que em qualquer outro tipo de delito eles serão julgados pelo juízo de primeiro grau, da mesma forma que todos os demais parlamentares”, explica Torres no artigo.
Em Cabo Verde, antiga colônia portuguesa na África, não prevê o benefício de foro por prerrogativa de função.
Outra colônia lusitana, “Moçambique, prevê que seus deputados só podem ser presos em flagrante e após autorização deliberada em seu Parlamento.”
A Espanha estabelece a prerrogativa de foro para membros dos três Poderes.
Na Itália, os cidadãos que compõem o Governo da República são submetidos à jurisdição ordinária após autorização do Senado da República ou da Câmara dos Deputados. O presidente da República, contudo, será julgado pelo Tribunal Constitucional, composto por 15 juízes e 16 cidadãos escolhidos de maneira aleatória mediante série de requisitos de elegibilidade. Explica Torres.
Na França, “os membros do Governo são penalmente responsáveis pelos atos praticados no exercício da função e qualificados como crimes ou delitos no momento em que são cometidos”. Eles são julgados pela Corte de Justiça da República.
“Assim como no Brasil, os membros do parlamento alemão (Bundestag) e o presidente gozam de imunidades em relação a investigações criminais quando estão no exercício dos respectivos mandatos. Para que um parlamentar alemão seja preso no curso de algum processo criminal é necessária a prévia autorização do próprio parlamento, entretanto, essa imunidade não existe nos casos de flagrantes. Contudo, não há foro privilegiado, sendo os parlamentares julgados no juízo comum.”
“A Argentina adota o sistema do foro por prerrogativa de função limitando-se a dar à Câmara dos Deputados o direito de acusar perante o Senado, que irá julgar o presidente, vice-presidente, chefe de gabinete dos ministros, os ministros e membros da Corte Suprema por mal desempenho das funções, crimes comuns ou crimes de responsabilidade”, acrescenta
A Constituição da República Popular da China prevê no artigo 74 que nenhum membro do Congresso Nacional do Povo (assembleia unicameral do país) pode ser “detido ou julgado sem o consentimento da Mesa da sessão em curso do Congresso Nacional Popular”. Conforme o artigo 65 da Constituição, tanto o presidente quanto o vice-presidente e o secretário-geral fazem parte da Comissão Permanente do Congresso Nacional Popular.