Homero de Giorge Cerqueira saiu da presidência do órgão de defesa ambiental ligado ao governo federal em agosto de 2020
O coronel da Polícia Militar de São Paulo Homero de Giorge Cerqueira, que presidiu o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) até agosto de 2020, atualmente representa garimpeiros na Confederação Nacional de Mineração (CNMI) ao lado de um empresário investigado por extração ilegal de ouro, conforme apuração da Agência Pública.
Demitido da presidência do ICMBio, Cerqueira participou em março de encontros, reuniões e audiências públicas sobre a legalização do garimpo na Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós, no Pará, ao lado do investigado.
Coronel aposentado da PM de São Paulo, o ex-chefe do ICMBio hoje se apresenta como Diretor de Assuntos Ambientais e Sustentabilidade da Confederação Nacional de Mineração. A dedicação do ex-presidente do Instituto Chico Mendes à tal confederação é tanta que ele chegou ao ponto de vestir o colete da organização que defende “os interesses de milhares de mineradoras pelo país. Orgulhoso da posição que exerce, Cerqueira ainda divulgou o “feito” no seu blog, em novembro do ano passado, conforme informa a Agência Pública.
Segundo ele, a confederação será a “cabeça” da representação minerária no Brasil e irá orientar “seus associados na mineração artesanal sustentável”. “A mineração artesanal é uma atividade legalmente estabelecida no País, mas a imprensa muitas vezes utiliza a palavra ‘garimpo’ como sinônimo de ‘extração ilegal’”, argumenta.
“Desde que cumpra a legislação ambiental, a trabalhista e opere formalmente, essa mineração de menor porte é legal e garantida pela Constituição, pois a mineração é importante na economia do Brasil”, acrescenta o ex-policial militar, reproduzindo o argumento de Bolsonaro ao defender a mineração em áreas indígenas.
Procurado pela Agência Pública, ele disse que seu papel na entidade é o de promover a interlocução entre o setor mineral e os órgãos ambientais. “Principalmente no que concerne a mediação de conflitos, bem como na orientação, doutrinação e regularização do setor da mineração brasileira, pois é uma atividade legal”.
Oficialmente registrada na Receita Federal no dia 28 de janeiro de 2022, a CNMI é presidida por Bruno Cecchini, um empresário com uma extensa lista de pedidos de extração mineral na Agência Nacional de Mineração (ANM) e que responde a uma investigação da Polícia Federal (PF) por extração e comércio ilegal de ouro desde 2019. A ficha corrida do suspeito no inquérito policial já acumula cerca de 13 mil páginas.
Em 2019, a PF apreendeu 111kg de ouro em barras escondidas sob os bancos de uma aeronave no Aeroporto Internacional de Goiânia, avaliadas em R$ 18 milhões em valores da época. A apreensão foi o início de uma investigação da PF contra Bruno Cecchini, que já dura quase três anos. O monomotor pertencia a uma de suas empresas, a RJR Minas Export Eireli.
Cecchini vem mostrando serviço na função que exerce. Apenas um mês depois de fundar a organização, conseguiu uma reunião com o atual presidente do ICMBio, o também coronel da PM paulista Marcos Castro Simanovic. Segundo Cerqueira, “foi uma visita de cortesia”, da qual ele também participou. “Já agendamos outras reuniões com outros ministérios do Governo Federal. Não constitui crime ou transgressão disciplinar, nem tampouco fere a ética receber as pessoas que querem o bem, respeita os valores da dignidade humana e não pactua com descaso do cidadão brasileiro”, disse.
Na audiência, foram discutidas propostas para a regularização do setor minerário na APA Tapajós, que é a Unidade de Conservação (UC) da Amazônia mais afetada pela extração de ouro com indícios de irregularidades, conforme estudo da Universidade Federal de Minas, Gerais, intitulado “Legalidade na produção de ouro no Brasil”. A bacia do Tapajós abriga uma das maiores áreas de produção de ouro do mundo, a Província Aurífera do Tapajós. As áreas protegidas da região, como as UCs e as Terras Indígenas, são alvos constantes de invasões por parte de garimpeiros ilegais. Muitos destes grupos criminosos reivindicam a regularização da mineração em terras protegidas pela Constituição.
Além dos representantes da CNMI, participaram da reunião o Secretário Municipal de Meio Ambiente e Mineração de Itaituba Bruno Rolim, o presidente da Cooperativa dos Garimpeiros Mineradores e Produtores de Ouro do Tapajós (Coopouro), Antônio Araújo, e o prefeito da cidade Valmir Climaco (MDB).
Na ocasião, o secretário Bruno Rolim afirmou que o grupo busca parceria com o ICMBio para que o município possa licenciar as atividades garimpeiras da APA Tapajós e comemorou a conquista de um “forte aliado”, o ex-presidente do órgão. “O Instituto Chico Mendes da Biodiversidade é um parceiro e quando eu estava presidente, o nosso presidente Jair Messias Bolsonaro sempre teve um olhar muito detalhado para mineração, a importância da mineração no Brasil”, disse Cerqueira em entrevista à TV Tapajoara minutos antes da reunião. “A confederação está aqui para proteger os mineradores”, destacou o presidente da CNMI, que também participou da reunião.
O coronel defendeu “a necessidade” de regulamentar as mineradoras da APA Tapajós. Segundo ele, isso seria feito “por meio de um Termo de Referência (TR) com a anuência do ICMBio, que expedirá a Autorização de Licença Ambiental (ALA), conforme Instrução Normativa do ICMBio nº 10, de 2020”. A norma foi criada por ele quando ainda presidia o órgão ambiental. O ex-policial também defendeu a criação de uma plataforma digital para rastrear o minério extraído das lavras e a construção de um laboratório que fizesse a análise da água dos rios no entorno da mineração, apesar de não acreditar que o garimpo seja o responsável por contaminar os rios de mercúrio.
CONTAMINAÇÃO
O estudo recente Exposição de Mulheres ao Mercúrio realizado em quatro países latino-americanos pela Rede Internacional de Eliminação de Poluentes (International Pollutants Elimination Network) em conjunto com o Biodiversity Research Institute (BRI) e que contou com apoio do Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, avaliou o impacto do mercúrio na saúde das pesquisadas. Além de brasileiras, participaram mulheres da Bolívia, Colômbia e Venezuela.
O mercúrio advindo do garimpo ocasiona danos à saúde e afeta o sistema neurológico, com graves riscos para as grávidas. Sintomas de intoxicação incluem tremores, insônia, perda de memória, alterações neuromusculares, dores de cabeça e disfunções cognitivas e motoras. Para grávidas, os efeitos da contaminação pela substância podem chegar ao feto, comprometimento o sistema neurológico, danos aos rins e ao sistema cardiovascular, revelou o estudo.
A pesquisa avaliou residentes da comunidade de Vila Nova, no município de Porto Grande, no Amapá. Foi detectada uma alta concentração de mercúrio no corpo das participantes, com uma média de 2,8 ppm, que excede o limite estabelecido pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (USEPA) de uma parte por milhão (1 ppm) no qual começam os efeitos negativos no desenvolvimento das crianças em gestação. Segundo a Agência, 0,58 ppm é a concentração mais baixa na qual ocorrem impactos negativos sutis, mas reconhecíveis, para o feto.
Das 34 mulheres testadas, 16 declararam estar diretamente envolvidas com o garimpo ou serem casadas com garimpeiros. Das outras dezesseis, algumas vivem de subsistência, extraindo alimentos da floresta e peixes dos rios. Todas, no entanto, mantêm o hábito de comer peixes locais pelo menos uma vez por semana.
Em 2020, um estudo já havia apontado o alto índice de mercúrio nos peixes do Amapá e uma campanha de conscientização foi lançada obre os efeitos danosos do mercúrio e como evitar a contaminação.
Outro estudo, da Fiocruz em parceria com o WWF-Brasil respalda o anterior: todos os participantes foram afetados pelo agente contaminante. A pesquisa analisou moradores do médio Rio Tapajós, nos municípios de Itaituba e Trairão, no Pará, e constatou que o povo indígena Munduruku está sofrendo com o impacto do mercúrio usado largamente em atividades garimpeiras. De cada dez participantes, seis apresentaram níveis de mercúrio acima de limites seguros: cerca de 57,9% dos participantes apresentaram níveis de mercúrio acima de 6µg.g-1 – que é o limite máximo de segurança estabelecido por agências de saúde.
A contaminação é maior ainda em áreas mais impactadas pelo garimpo, nas aldeias que ficam às margens dos rios afetados. Nessas localidades, nove em cada dez pessoas apresentaram alto nível de contaminação. As crianças também são impactadas: cerca de 15,8% delas apresentaram problemas em testes de neurodesenvolvimento.
Decio Yokota, coordenador do Programa Gestão da Informação do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), afirma que o governo brasileiro deveria combater os garimpos, o que infelizmente não acontece. “O que vemos hoje é um Governo Federal incentivando que garimpeiros ilegais invadam áreas protegidas, como Unidades de Conservação e Terras Indígenas. Se aprovado, o Projeto de Lei 490 (atualmente PL 191/2020) mudará o regramento para a demarcação e uso de Terras Indígenas, abrindo-as para esse tipo de atividade, como um prêmio a criminosos que roubam terras e degradam a natureza de forma irreversível”, critica.
Atualmente, o PL 191/2020 está tramitando na Câmara dos Deputados e poderá entrar em votação. No dia 9 último, a pedido de Jair Bolsonaro, a Câmara aprovou um requerimento para que a matéria tramite em regime de urgência. “Precisamos do apoio da sociedade civil, indígena e não-indígena, para pressionar os deputados a derrubarem esse projeto de lei”, defende Yokota.
LOBISTAS
A audiência na Câmara Municipal de Itaituba foi convocada pelo vereador Wescley Tomaz (MDB), “um dos nomes de destaque do lobby pró-garimpo nos últimos anos”, conforme o estudo “O cerco do Ouro: garimpo ilegal, destruição e luta em terras Munduruku”, do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração. Ele está no seu terceiro mandato e na última eleição foi o mais votado sob o mote “Vereador do Garimpeiro”. Ele tem como aliado na sanha para escancarar o garimpo, o deputado Joaquim Passarinho (PSD/PA), “responsável, em grande medida, pelo fácil acesso que esses grupos tiveram ao Palácio do Planalto depois que Jair Bolsonaro assumiu a presidência”, de acordo com a pesquisa.
Juntos, os parlamentares vêm realizando lobby em Brasília. No dia 24 de fevereiro, os dois se reuniram com representantes dos Ministérios da Justiça, de Minas e Energia e com o diretor da Agência Nacional de Mineração, Ronaldo Lima. “O Ministro da Justiça (Anderson Torres), através de toda a sua assessoria e da Polícia Federal, se comprometeu em criar um grupo de trabalho para a gente dar legalidade às áreas que são permitidas por lei”, relatou Wescley Tomaz em vídeo publicado em suas redes sociais após o encontro. As tratativas feitas com o Governo Federal em defesa da mineração do Tapajós neste dia foram apresentadas durante a audiência pública na Câmara Municipal de Itaituba.
O assédio de lobistas em defesa do garimpo se intensificou entre fevereiro e março deste ano. Resultado disso foi a aprovação para acelerar a tramitação do PL da Mineração, de autoria do governo federal. Além de autorizar uma espécie de “liberou geral” para a atividade garimpeira nas áreas protegidas, o PL de Bolsonaro tem outros agravantes, como a autorização para a construção de rodovias, hidrelétricas, pesquisa e lavra mineral em TIs não homologadas, sem a autorização do Congresso Nacional e a consulta prévia dos indígenas, como prevê a Constituição.
O PL é alvo de críticas de diversos setores. Até mesmo a associação que reúne as grandes mineradoras em operação no Brasil se posicionou contrária. O Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) defende um maior debate sobre a proposta, incluindo ouvir populações locais.
No dia 9 de março, data em que foi votado o regime de urgência para o PL, o cantor e compositor Caetano Veloso e diversos artistas, junto com centenas de organizações da sociedade civil e representantes indígenas, protestaram contra esse e outros projetos que poderão ser votados nos próximos meses e representam danos enormes para o meio ambiente e à sociedade em geral.