Charlatanismo da cloroquina, sabotagem às vacinas, estímulo à disseminação do vírus e corrupção, que provocaram mais de 750 mil mortes, foram consideradas normais pela “Engavetadoria-Geral da República”
A sub-procuradora-Geral da República, Lindôra Araújo, pediu nesta segunda-feira (25) ao Supremo Tribunal Federal (STF) o arquivamento de sete das dez apurações preliminares de Jair Bolsonaro, ministros e ex-ministros do governo abertas a partir das conclusões da CPI da Pandemia.
A PGR também pediu o arquivamento de apurações que envolviam os ministros Marcelo Queiroga (Saúde) e Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União); o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR); os ex-ministros Eduardo Pazuello (Saúde) e Braga Netto (Casa Civil); Élcio Franco e Hélio Angotti Netto (ex-secretários do Ministério da Saúde), Heitor Abreu (ex-assessor da Casa Civil) e o deputado Osmar Terra (MDB-RS).
No relatório final, a CPI da Pandemia concluiu que Bolsonaro cometeu nove crimes, entre eles charlatanismo, prevaricação, infração de medida sanitária preventiva, emprego irregular de verba pública e epidemia com resultado de morte.
Os senadores Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que foi vice-presidente, e Renan Calheiros (MDB-AL), que foi relator, denunciaram a decisão da procuradora bolsonarista, como uma blindagem em véspera de eleição. Randolfe anunciou que vai recorrer da decisão da PGR.
Entre os episódios analisados estão a contaminação do governador do Acre Gladson Cameli após visita de Bolsonaro, o não uso de máscara pelo presidente e o aumento da ocupação de leitos hospitalares do Estado do Acre de 88,7% para 96,2%. Bolsonaro não só disseminou o vírus amplamente com as aglomerações que promoveu durante toda a pandemia como defendeu que a população se infectasse o mais rapidamente possível. Ele pregou a imunidade de rebanho e foi responsável por centenas de milhares de mortes que poderiam ser evitadas. Ficou conhecido no mundo inteiro como um genocida.
Em seu esforço para livrar o “chefe” das acusações, Lindôra escreveu absurdos como o que segue: “Inúmeras pessoas contaminadas nem sequer tiveram contato direto ou indireto (por meio de terceiras pessoas) com o Presidente da República, afastando a possibilidade de responsabilização por esse fato”, argumentou.
“A correlação tecida no Relatório Final entre a presença do Presidente da República e o aumento de casos de Covid-19 nos locais visitados é frágil, sem constatação em dados elementares, como a identificação dos pacientes internados e o contato direto ou indireto deles com pessoas que se aglomeraram em razão da presença de Jair Messias Bolsonaro”, prossegue o texto assinado pela vice-procuradora.
Segundo ela, o fato do Brasil ter sido o segundo país do mundo em números absolutos de morte por Covid-19 não tem nada a ver com o comportamento irresponsável e criminoso de Bolsonaro, que combateu o uso de máscaras aglomerou e sabotou a vacinas. De acordo com a vice-procuradora, “quanto às aglomerações, o acúmulo de pessoas não pode ser atribuído exclusiva e pessoalmente ao Presidente da República. Todos que compareceram aos eventos noticiados, muito embora tivessem conhecimento suficiente acerca da epidemia de Covid-19, responsabilizaram-se, espontaneamente, pelas eventuais consequências da decisão tomada”.
“No caso em análise, frise-se, a norma que impõe o uso de máscara protetiva e que teria sido descumprida pelo Presidente da República somente prevê sanção de multa como mecanismo de coerção ao cumprimento da obrigação, não ressalvando a aplicação cumulativa da sanção penal”, prosseguiu o texto. A obrigatoriedade do uso de máscaras, é bom que se lembre, consta, desde 2 de julho de 2020, da Lei 13.979, que prevê que as autoridades podem adotar, no âmbito de suas competências, “uso obrigatório de máscaras de proteção individual”.
A campanha negacionista de Bolsonaro matou mais de 675 mil brasileiros, mas a procuradora acha que a sabotagem de Bolsonaro não foi tão grave assim. “No campo socialmente agudo de uma pandemia, a norma editada pelo Poder Legislativo previu unicamente a sanção administrativa de multa como instrumento para compelir os cidadãos ao uso de máscara”. Segundo ela, “é suficiente a penalidade administrativa contra aquele que desobedece a norma que impõe o uso de máscara”, defendeu. Como pode a procuradora afirmar que a recusa à medida protetiva não caracteriza desrespeito ao ordenamento jurídico? Como afirmar que a atitude de negar aplicação à lei que ele próprio sancionou não caracteriza conduta ilegal?
O crime de charlatanismo cometido por ele e por sua equipe, que insistiram em recomendar a cloroquina, uma medicação comprovadamente ineficaz, foi explicado pela procuradora com os mesmos argumentos dos criminosos. Ela disse que era uma medida excepcional para uma doença sem tratamento. “Os fatos apontados pela CPI ocorreram em um contexto emergencial, de pandemia, em que, assim como apresentado no próprio Relatório da Comissão, havia urgência no combate à doença, cujo tratamento ainda não existia (seja por medicamentos ou vacina). Tal cenário levou à necessidade da adoção de medidas excepcionais, voltadas ao enfrentamento da epidemia nacional […]”, disse o documento da PGR.
E prossegue: “A partir dos elementos de informação colacionados aos autos, depreende-se que todos os fatos foram exaustivamente analisados e deles não se pode concluir pela prática de ato ilícito pelo Presidente da República Jair Messias Bolsonaro no âmbito criminal”. Ou seja, o charlatanismo explícito, ao contrário do que diz a lei, foi considerado por ela como um ato normal e sem consequências.
O escândalo de desvio de verba pública para a compra da medicação ineficaz também foi considerado lícito pela engavetadora. “Quando da imputação apresentada pela Comissão Parlamentar de Inquérito, o crime é atribuído não por terem verbas sido aplicadas em destinação diversa da estabelecida em lei, mas sim por terem sido aplicadas em suposto desacordo com as orientações científicas vigentes à época, o que não preenche o tipo penal para fins de imputação criminal do delito de emprego irregular de verbas públicas”, diz e procuradora.
O pedido de investigação de Bolsonaro, Queiroga, Braga Netto, Pazuello, Elcio Franco, Helio Angotti, Heitor Abreu e Osmar Terra por epidemia tendo como resultaante os óbitos, depois deles terem sabotado o combate ao vírus, foi na mesma direção. “As narrativas apresentadas e os elementos de prova angariados no inquérito parlamentar não foram capazes de confirmar a presença das elementares típicas do crime de epidemia majorado pelo resultado morte” […] Segundo a PGR, “ainda que se possa eventualmente discordar de medidas políticas e/ou sanitárias que tenham sido adotadas, nenhum deles propagou germes patogênicos”.
O escândalo de corrupção na compra da vacina Covaxin, onde um dos investigados, denunciados na CPI, pediu propina de um dólar por dose, foi considerado um ato corriqueiro e sem gravidade pela sub-procuradora. O fato de um servidor do Ministério da Saúde ter denunciado o crime na compra da vacina ao próprio Bolsonaro e depois ter sido exonerado e perseguido, indo morar fora do país para fugir das ameaças, não aponta para uma ação criminosa. A procuradora cumpriu o seu papel de engavetadora. Ela agiu no lugar do seu chefe, Augusto Aras, que foi indicado por Bolsonaro sem respeitar a lista tríplice dos procuradores. Ele nomeou Aras porque pretendia desonrar o juramento que fez de respeitar a Constituição e “observar as leis”. É isso o que ele vem fazendo desde que assumiu.