CARLOS LOPES
(HP 07/11/2003)
Até hoje não foram liberados os documentos sobre a ação do governo dos EUA para assassinar o primeiro-ministro do Congo, Patrice Lumumba. No entanto, o relatório da comissão presidida pelo senador Frank Church revelou a maior parte deles. Na época, após Watergate e do arrombamento do consultório do psicanalista de Daniel Ellsberg, que tinha divulgado a documentação secreta sobre o Vietnã conhecida como “Papéis do Pentágono”, o escândalo da ação da CIA dentro dos EUA tinha feito com que Ford, que sucedera a Nixon, instalasse uma comissão, sob a chefia de Nelson Rockefeller. Era uma investigação de fancaria – Rockefeller, durante o governo Eisenhower, tinha sido o mentor das operações encobertas da CIA. Porém, as informações começaram a vazar. Daí a investigação do Congresso, que levou à demissão do diretor-geral da CIA, William Colby. Para substituí-lo, Rockefeller indicou a Ford um nome seu: George Bush, o pai.
Colby, um dos maiores assassinos da CIA durante 30 anos (desde a época do seu antecessor, o OSS), queria reconhecimento pelos seus crimes. Em seu depoimento, ele não viu nada de mais em responder à acusação de que a Operação Phoenix – concebida e dirigida por ele no Vietnã – tinha assassinado 60 mil “suspeitos” de serem “ativistas comunistas”, dizendo que os assassinados tinham sido apenas, e precisamente, 20.587 (cf. o Relatório Church e a coletânea de textos que acompanha o seu obituário no Cemitério Nacional de Arlington).
Da mesma forma, o título que escolheu para suas memórias – “Homens de Honra”. Nelas, Colby afirma que “a CIA nunca matou alguém por si própria”, ou seja, sem ordem de cima – o que significa o presidente dos EUA.
Todas as provas mostram que a afirmação de Colby é verdadeira, com uma exceção: quando a vítima era o próprio presidente. Porque a CIA é mais ligada aos tubarões ianques do que ao próprio presidente, que esse bando considera que deve ser um seu representante, melhor dizendo, um seu servo.
CONSPIRAÇÃO DE EISENHOWER
Sobre o assassinato de Lumumba, no relatório da Comissão Church pode-se ler o seguinte:
“A comissão coletou sólida evidência de uma conspiração para assassinar Patrice Lumumba. A forte hostilidade para com Lumumba proclamada pelos mais altos níveis do governo, pode ter tido a intenção de iniciar uma operação de assassinato; no mínimo, ela engendrou tal operação. A evidência indica que é provável que a forte inquietação que o presidente Eisenhower expressou sobre Lumumba na reunião do Conselho de Segurança Nacional de 18 de agosto de 1960 foi tomada por Allen Dulles [diretor da CIA e irmão do secretário de Estado de Eisenhower, Foster Dulles] como uma autorização para assassinar Lumumba. (Nota da Comissão Church: De fato, um membro do Conselho presente à reunião de 18 de agosto acredita que testemunhou uma ordem presidencial para assassinar Lumumba)”.
Realmente, não se tratava de “autorização”. Essa é linguagem pasteurizada, usada pelo Relatório – segundo Colby, em seu livro, devido à pressão da CIA. Todos os testemunhos constantes do próprio relatório demonstram que Eisenhower ordenou, incitou a CIA, cobrou da CIA, o assassinato de Lumumba.
Lumumba havia estado em Washington no mês anterior. Tinha recebido algumas “ofertas de ajuda” do governo americano. No entanto, Lumumba não estava disposto a ver a exploração belga – num dos países de maiores riquezas naturais do mundo, inclusive a maior reserva de urânio do mundo – ser substituída pela dos ianques. Daí o ódio de Eisenhower por ele, no qual é evidente o elemento racista. Nos seus 67 dias de governo, Lumumba não teve tempo de fazer nenhuma nacionalização ou restrição aos interesses americanos. No entanto, era óbvio que o negro – e pobre, líder de um povo pobre – Lumumba não era dos que se submetiam.
“Na semana que se seguiu à reunião de 18 de agosto”, prossegue o relatório Church, “um conselheiro presidencial frisou ao Grupo Especial – a subcomissão do Conselho responsável por planejar as operações encobertas – ‘a necessidade de ação muito direta’ contra Lumumba e incitou a uma decisão que não descartasse a consideração de ‘qualquer tipo de atividade que possa contribuir para livrar-se de Lumumba’. No dia seguinte, Dulles telegrafou ao Funcionário da Base da CIA em Leopoldville, República do Congo, que ‘nos altos escalões’ a ‘remoção’ de Lumumba era ‘um urgente e prioritário objetivo’.
Logo depois, o serviço clandestino da CIA formulou uma trama para assassinar Lumumba” (página 13, III. Assassination Planning and the Plots, A. Congo).
O partido de Lumumba, o Movimento Nacional Congolês (MNC) tinha vencido por ampla margem as eleições que precederam a declaração formal de independência, no dia 30 de junho de 1960. Logo em seguida, a CIA enviou à sua base no Congo um novo membro, Victor Hedgman. É este que o relatório designa como o “Funcionário da Base”. A razão é que ele tinha contato direto com a direção da CIA, sem subordinar-se ao chefe da base, Larry Devlin.
Hedgman, ao depor na comissão Church “disse que o assassinato de Lumumba não foi discutido em seus comunicados à CIA anteriores à sua partida do Congo, nem durante seu breve retorno ao quartel-general em conexão com a visita de Lumumba a Washington em julho”.
E, realmente, os telegramas entre a CIA e sua base em Leopoldville (atual Kinshasa) só começam a se referir diretamente ao assassinato a partir de agosto, ou seja, depois da reunião em que Eisenhower “expressou” sua “forte inquietação”. O que não quer dizer – obviamente – que a CIA já não estivesse conspirando: um telegrama do mesmo dia da reunião do CSN, vindo do Congo para a sede da CIA, depois de mostrar dúvidas sobre se Lumumba era ou não comunista, fala em “ação para evitar outra Cuba” e que “o objetivo operacional da base é substituir Lumumba pelo grupo pró-ocidental”. No mesmo dia, o chefe da Divisão África da CIA, Bronson Tweedy, respondeu que “estava procurando a aprovação do Departamento de Estado para a operação proposta, baseada na ‘sua e nossa crença de que Lumumba deve ser removido’”.
Porém, no dia seguinte, portanto já depois da reunião do CSN com Eisenhower, “o diretor do ramo de operações encobertas da CIA, Richard Bissell, assinou um telegrama para Leopold-ville, dizendo que ‘você está autorizado a prosseguir com a operação’” (pág. 15). Ou seja, antes da reunião de 18 de agosto a CIA não estava autorizada.
“AÇÃO SEM RODEIOS”
Cinco dias depois, em 24 de agosto, Hedgman enviou o seguinte relatório ao diretor da CIA, Allen Dulles, sobre os congoleses que a CIA estava subornando: eles “abordaram Kasavubu [presidente do Congo] com plano de assassinar Lumumba. Kasavubu recusou concordar dizendo-se relutante [quanto] ao recurso à violência e não existir outro líder com suficiente estatura para substituir Lumumba” (pág. 15).
Um dia depois, Dulles foi a uma reunião do Grupo Especial. As minutas da reunião descrevem que, depois de Dulles expor o “esboço de alguns planos da CIA para ações políticas contra Lumumba, tais como arranjar um voto de não-confiança no parlamento congolês, Gordon Gray, o Assessor Especial do Presidente para Assuntos de Segurança Nacional, relatou que o presidente ‘expressou sentimentos extremamente fortes sobre a necessidade de uma ação sem rodeios, e que ele ficaria espantado se os planos apresentados forem suficientes para realizar isso’” (Relatório Church, pág. 15).
Dulles não tinha escrúpulos quanto a assassinatos. Mas não era um idiota. É evidente o que ele queria com os tais “planos de ação política” – inviáveis, porque o MNC tinha maioria ampla no parlamento: uma confirmação explícita por parte de Eisenhower (representado, na reunião, por Gray) da ordem de assassinato. E a obteve. No dia seguinte, ele mesmo enviou um telegrama à base da CIA em Leopoldville:
“Nos altos escalões aqui é agudamente clara a conclusão de que se Lumumba continua a ocupar alto cargo o inevitável resultado será no melhor dos casos o caos e no pior a pavimentação do caminho para a tomada do Congo pelos comunistas com desastrosas consequências para o prestígio da ONU e para os interesses do mundo livre. Consequentemente, nós concluímos que sua remoção deve ser um primeiro e urgente objetivo e que sob as condições existentes isso deve ser uma alta prioridade de nossa ação encoberta”.
Sobre a suposta preocupação quanto à ONU, nesse momento ela (e sobretudo o seu secretário geral, Dag Hammarskjold) apoiava Lumumba, que exigia a saída das tropas belgas do país, enviando, a pedido do primeiro-ministro, forças de paz para o Congo. Hammarskjold seria morto um ano depois num suspeito acidente aéreo, quando tentava um acordo na guerra civil que ensanguentou o Congo após o assassinato de Lumumba.
No mesmo telegrama, Dulles dá à sua base no Congo “irrestrita autoridade (….) incluindo mesmo a mais agressiva ação se ela puder ser mantida encoberta. Nós imaginamos que os alvos de oportunidade devem estar presentes por si próprios a você”. (pág. 16).
Se é possível dúvida a respeito do significado desse telegrama, elas foram tiradas pelo depoimento, na Comissão Church, do então diretor de operações encobertas da CIA, Richard Bissell. Segundo Bissell, “o telegrama era um meio de indicar, através de um circunlóquio, que o presidente queria Lumumba assassinado (Nota da Comissão Church: Bissell testemunhou que Dulles teria usado a frase ‘altos escalões’ para referir-se ao presidente)”.
GOLPE DE ESTADO
A mesma coisa disse Bronson Tweedy, o diretor da Divisão África da CIA. Tweedy – que, na verdade, redigiu o telegrama de Dulles. Tweedy disse que “o telegrama indicava que Dulles tinha recebido autorização do ‘nível político’”, isto é, Eisenhower.
No dia 5 de setembro de 1960, Kasavubu, sob os auspícios da CIA, demitiu o primeiro-ministro Lumumba, passando por cima do parlamento. No dia 14, o cão de fila Mobutu perpetrou um sanguinário golpe de Estado, tramado e apoiado pela CIA.
Lumumba ficou detido em sua residência, e as tropas da ONU impediram o seu assassinato naquele momento.
No entanto, mostra a Comissão Church, “a evidência indica que o afastamento de Lumumba não aliviou as preocupações acerca dele no governo dos Estados Unidos. Durante esse período, funcionários da CIA no Congo aconselharam e ajudaram contatos congoleses conhecidos pela intenção de assassinar Lumumba. Os funcionários também instaram alguns desses contatos congoleses ao ‘permanente descarte’ de Lumumba. Além disso, a CIA se opôs à reabertura do parlamento depois do golpe por causa da probabilidade de que o parlamento quisesse Lumumba de volta ao poder” (pág. 16).
CIA: “ELIMINAR FISICAMENTE”
Na verdade, sete dias antes do golpe – e dois dias após a demissão de Lumumba – um telegrama de Leopoldville para Dulles dizia, ao relatar um encontro com “políticos congoleses de alto nível em estreito contato com a base da CIA”: “Lumumba na oposição é quase tão perigoso quanto no cargo [o que] indica e implica a conclusão [que] deve ser eliminado fisicamente”. No telegrama, a “conclusão” é atribuída aos congoleses. Mas era a CIA que “instava ao permanente descarte” de Lumumba. Na véspera do golpe, o diretor da Divisão África, Bronson Tweedy, telegrafou à sua base: “Talentos e dinamismo de Lumumba aparecem [como] fator esmagador no restabelecimento de sua posição a cada vez que parece meio perdido. Em outras palavras, a cada momento Lumumba tem a oportunidade de ter a última palavra. Ele pode influenciar os acontecimentos em seu proveito”.
O que está transcrito em seguida é a íntegra de um parágrafo do Relatório da Comissão Church: “Um dia depois do golpe de Mobutu, o ‘funcionário da base’ [Hedgman] relatou que estava servindo de consultor de um esforço congolês para ‘eliminar’ Lumumba devido ao seu ‘medo’ de que Lumumba podia, na verdade, ter se fortalecido ao colocar-se sob a custódia da ONU, o que permitia uma base segura de operações. Hedgman concluía: ‘A única solução é removê-lo da cena rapidamente’ (Leopoldville para o Diretor, 15/09/60)”.
No entanto, os traidores congoleses não tinham coragem de assassinar Lumumba, o que fez com que a CIA redobrasse a instigação. No dia 17, o “funcionário da base” relatou outro encontro, com um “senador congolês”: “[o senador] relutantemente concordou que Lumumba deve ir permanentemente. Desconfia [de outro líder congolês] mas deseja fazer a paz com ele para os propósitos de eliminação de Lumumba (Leopoldville ao Diretor, 17/09/60)”.
Mas os renegados tinham medo de Lumumba, ou seja, do povo. A CIA, então, que tinha tramado o golpe de Mobutu, inventou um golpe de Estado… liderado por Lumumba: “o ‘funcionário da base’ advertiu a um líder-chave congolês sobre a trama de golpe articulada por Lumumba e dois correligionários, e ‘instou à prisão ou outro mais permanente descarte de Lumumba, Gizenga e Mulele’ (Leopoldville para o Diretor, 20/09/60). Gizenga e Mulele eram os principais líderes do MNC, depois de Lumumba.
Nessa situação, Washington mandou um enviado ao Congo: “Bissell pediu a um cientista da CIA, Joseph Scheider, para fazer preparados para assassinar ou incapacitar um ‘líder africano’. De acordo com [o depoimento de] Scheider, Bissell disse que o encargo vinha da ‘mais alta autoridade’. Scheider procurou materiais biológicos tóxicos e recebeu ordem de Tweedy para entregar esses materiais ao funcionário da base em Leopoldville. Em setembro, Scheider entregou as substâncias letais ao funcionário da base em Leopoldville e instruiu-o para assassinar Patrice Lumumba. O funcionário da base testemunhou que foi dito por Scheider que o presidente Eisenhower tinha ordenado o assassinato de Lumumba”.
Aqui existe uma discrepância, mais provavelmente uma omissão por parte da CIA nos depoimentos à comissão Church. O chefe da base da CIA, Larry Devlin, relatou (ver seu depoimento no documentário “Who Killed Lumumba?”, de David Akerman, da BBC) que quando Lumumba ainda estava sob a proteção da ONU, recebeu ordens da sede para esperar um enviado, e que este era o sinistro Sidney Gottlieb, chefe do MKultra, o departamento de controle da mente (MK=Mind Kontrol) da CIA, que entregou-lhe um tubo de pasta de dente envenenada, para que a introduzisse no banheiro da residência de Lumumba. No relatório Church não há menção a Gottlieb no Congo. O mais provável é que tanto Scheider quanto Gottlieb tenham sido enviados para lá. Scheider, segundo o seu depoimento, e o de Hedgman, partiu do Congo em 30 de outubro. A prisão domiciliar de Lumumba ainda duraria até 27 de novembro. Logo, é provável – Devlin conhecia Gottlieb – que, na histeria contra Lumumba, outra tentativa tenha sido feita.
É baseado no fracasso dessas tentativas que o relatório Church conclui pela inocência da CIA e do governo americano. Para chegar a essa conclusão, os membros da comissão não investigaram a ação da CIA na perseguição a Lumumba, quando este tentou chegar a Stanleyville, onde seus partidários se concentraram após o golpe de Estado, a ação para impedir que as tropas da ONU o protegessem e evitassem sua prisão e tortura pública e, sobretudo, o incitamento da CIA (documentado, entre outros, por Akerman) para que Mobutu o entregasse ao psicopata Moise Tshombe e aos mercenários belgas que o sustentavam em Katanga.
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