Ex-presidente e veterano combatente uruguaio José Pepe Mujica é uma referência pela coerência entre discurso e prática com que dedicou toda sua vida pela justiça social e solidariedade
“Meu ciclo acabou. Sinceramente, estou morrendo. E o guerreiro tem direito ao seu descanso”, afirmou o ex-presidente do Uruguai, José Pepe Mujica, de 89 anos, ao anunciar na quarta-feira (8) que, após dezenas de sessões de radioterapia, o câncer do esôfago se espalhou para o fígado, estando sem condições de combater a metástase por estar idoso e ter duas doenças crônicas.
Líder do Movimento de Libertação Nacional Tupamaros, organização guerrilheira que enfrentou a ditadura militar, Mujica levou seis tiros que lhe levaram meio pulmão, ficou quase 15 anos preso, 11 deles em uma solitária – onde precisou beber a própria urina para não morrer de sede – foi deputado, senador, ministro e presidente (2010 a 2015), transformando-se gradualmente em referencial da luta pela democracia, justiça social e pelos direitos humanos com reconhecimento internacional.
O velho combatente anunciou em abril do ano passado ter sido diagnosticado com um tumor, que havia passado por inúmeras intervenções médicas, mas que decidiu não se submeter a mais procedimentos. “Não posso fazer nem um tratamento bioquímico nem uma cirurgia porque meu corpo não aguenta”, explicou.
“O que eu peço é que me deixem em paz. Que não me peçam mais entrevistas ou qualquer outra coisa”, acrescentou Mujica, frisando ter encerrado o seu tempo.
Um período exemplar de mais de meio século de lutas e conquistas, onde o velho combatente cativou a todos dando vida às palavras do cubano José Martí: “A melhor maneira de dizer é fazer!”
Sempre clamou pela reflexão com seus discursos anticonsumistas, praticando o que predicava e abrindo futuro às novas gerações, como fez quando garantiu que as centenas de milhares de estudantes das escolas públicas tivessem o seu próprio computador.
Entre as principais parcerias registrava a da Venezuela de Hugo Chávez, líder a quem considerava “o governante mais generoso que conheci, com vários gestos enormemente solidários com os uruguaios”.
Nas frases de Mujica, consistência e coerência: “A economia globalizada não tem outra força motriz senão o interesse privado de muito poucos”; “Prometemos uma vida de esbanjamento e desperdício, que em última análise constitui uma contagem regressiva contra a natureza e contra a humanidade como o futuro”; “Se nós, nesta humanidade, aspiramos a consumir como um americano médio, três planetas são essenciais para podermos viver”; “Nosso mundo precisa de menos organismos globais servindo cadeias hoteleiras e de mais humanidade e ciência”.
De forma humilde, o eterno combatente tupamaro mora numa pequena chácara nos arredores de Montevidéu, em uma casa modesta que necessitou transformar o galinheiro para hospedar a guarda presidencial. À frente do governo doou 90% do seu salário ao Juntos, plano de moradia estatal, e tem como único bem em seu nome um Fusca azul de 1987.
Chegava no Parlamento pilotando seu Fusca ou a moto Vespa com terras nas unhas, vestindo botas de plástico sujas após cultivar flores e hortaliças. Por quê? “Os políticos têm que viver como vive a maioria e não como vive a minoria”. Afinal, “A política é a luta pela felicidade de todos!”
“POLÍTICA NÃO É PASSATEMPO, É PAIXÃO COM SONHO DE CONSTRUIR FUTURO SOCIAL MELHOR”
A coerência entre discurso e prática faz com que suas mensagens de amor e solidariedade calem profundamente: “A política não é um passatempo, não é uma profissão para se viver dela, é uma paixão com o sonho de tentar construir um futuro social melhor. Quem gosta de dinheiro, longe da política”; “Pobre não é quem tem pouco. É quem quer muito. Não vivo com pobreza, vivo com austeridade, com renúncia. Preciso de pouco para viver”; “Ser livre é passar a maior parte do tempo de nossas vidas naquilo que gostamos de fazer”; “Os únicos derrotados são aqueles que desistem dos abraços. A derrota é um estado psicológico da vida”; “Há coisas que ganham valor quando se perdem”.
Recentemente deu uma entrevista ao jornal uruguaio Búsqueda, em que informou ter adquirido um trator, no qual anda “um pouquinho” todos os dias, e que pretende dedicar o pouco tempo que ainda lhe resta trabalhando como “chacareiro”. Há pouco foi homenageado pelo presidente Lula com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul.
Em março planeja dar mais um passo na consolidação do projeto de esquerda uruguaia e continental ao empossar a Yamandú Orsi, da Frente Ampla, como novo presidente.
O combatente agradece à vida por ter lhe dado tanto, o carinho e a atenção da esposa, a ex-vice-presidente do país, Lucía Topolansky, e reafirmou seu desejo de que seu corpo fique na chácara, ao lado de sua cadela, Manuela. “Vou morrer aqui. Tem uma sequoia grande lá fora. Manuela está enterrada lá. Estou preenchendo a papelada para que eles possam me enterrar lá também. E é isso”.
“Não vivemos de nostalgia, nem de memórias, mas de futuro”, defende Mujica, reiterando a relevância de que as novas gerações valorizem a vida, priorizando o que realmente conta, pois cedo ou tarde a morte nos encontrará a todos. “O homenzinho comum às vezes sonha com férias e liberdade. Ele sempre sonha em terminar as contas, até que um dia seu coração para… E adeus”.