Uma decisão histórica. No primeiro julgamento desse tipo de caso nos EUA, o juiz Thad Balkman, de Cleveland, condenou na segunda-feira a gigante farmacêutica norte-americana Johnson & Johnson – mais conhecida pelo sabonete e talco infantis – a pagar US$ 572 milhões por sua responsabilidade na crise dos opioides que, só no estado de Oklahoma, provocou quase 5 mil mortes por overdose entre 2007 e 2017.
Apenas em 2016, as overdoses nos EUA causaram 64.000 mortes – mais do que as baixas militares norte-americanas no Vietnã e no Iraque juntas. A epidemia dos opioides atingiu tal escala no país que a morte por overdose se tornou a principal causa de morte em norte-americanos com menos de 50 anos e fez com que a expectativa de vida nos EUA diminuísse.
“A crise dos opioides devastou o estado de Oklahoma”, disse o juiz Balkman. “Os réus causaram uma crise de opioides que é evidenciada pelo aumento das taxas de dependência, mortes por overdose e síndrome de abstinência neonatal”.
“Essas ações comprometeram a saúde e a segurança de milhares de pessoas de Oklahoma”, apontou. Ele também alertou que a crise gerada pelo vício nessas substâncias é “um perigo iminente e uma ameaça” para a população.
“Demonstramos que a J&J foi a causa principal desta crise de opioides e que ganhou bilhões de dólares em um período de 20 anos, sempre negando sua responsabilidade”, apontou o principal advogado do estado, Brad Beckworth.
PAPOULA TURBINADA DA TASMÂNIA
O que não se sabia – e o julgamento permitiu evidenciar – foi o papel central da Johnson & Johnson (J&J) para a epidemia de opioides. Sem a J&J, pode-se dizer, dificilmente a epidemia teria chegado à dimensão que chegou. Até meados dos anos 1990, o abuso de opioides era relativamente restrito.
Foi a J&J que turbinou em 1994 uma cepa de papoula, através de uma subsidiária na Tasmânia, que patenteou, para produzir 50% a mais em peso de tebaína, precursor da oxicodona, a droga que desencadeou a onda dos opioides em 1995, apelando para um marketing extremamente agressivo e mentiroso.
Até 2016 – quando a crise dos opioides já era um escândalo nacional – a Johnson & Johnson foi a principal fornecedora – em torno de 60% – dos princípios ativos que moveram a epidemia de opioides nos EUA. Nesse ano, ela vendeu a Alcalóides Tasmânia e a Noramco, suas subsidiárias no crime.
Além de ser o principal fornecedor, a J&J também tinha uma linha própria de opioides, Nucynta e Duragesic.
Em suma, como acusou o estado de Oklahoma, a Johnson & Johnson discretamente dominara o mercado de opioides por anos, cultivando papoulas na Tasmânia e vendendo narcóticos para as principais fabricantes de oxicodona, hidrocodona, codeína e morfina.
“NÃO CONSEGUIAM PARAR”
O procurador-geral de Oklahoma, o republicano Mike Hunter, que foi quem desencadeou o processo em 2017 contra as farmacêuticas, fez questão de sublinhar a responsabilidade dos réus: “essas empresas sabiam no mais alto nível o que estava acontecendo. Elas simplesmente não conseguiam parar de ganhar dinheiro com isso”.
“Não há dúvida de que precisávamos apresentar este caso, que ele tinha que ir a julgamento, que esses fatos precisavam ver a luz do sol”, destacou o jurista. “Dez vezes mais dessa droga estava chegando, e então você teve, concomitantemente, 15 vezes mais pessoas morrendo de overdose de opioides”.
Para ele, o que moveu a Johnson & Johnson foi a “ganância e avareza”, mas está sendo finalmente responsabilizada “por milhares de mortes e vícios causados por suas atividades”. Hunter acusou ainda a corporação e seus cúmplices por uma campanha de marketing fraudulenta, que escondia o risco de dependência e exagerava a eficácia contra a dor crônica.
Outra denúncia tenebrosa apresentada pelos promotores de Oklahoma foi de que a Johnson & Johnson visava até mesmo crianças pequenas em seus esforços para expandir o mercado de opioides.
MOINHOS DE RECEITAS
De acordo com as investigações, para impulsionar a derrama de opioides – e os lucros fáceis à custa do sofrimento alheio -, valia tudo: financiar grupos de “defesa dos pacientes com dor”, pagar formadores de opinião e médicos para tornarem a dor um critério essencial de exame, arrastar instituições para dar um ar de ‘ciência’ ao novo modelo de negócio, liberar os ‘moinhos de receitas’ – e empurrar milhões, na grande maioria, brancos vítimas da desindustrialização e sucateamento dos EUA, para os miraculosos comprimidos que viravam a seguir uma tragédia pessoal, depois familiar, e já nacional.
Deve haver muita sujeira ainda debaixo desse tapete, mas o que já foi exposto mostra o empenho em lucrar com os opioides e que tudo mais se exploda.
Os vendedores da J&J fizeram 150.000 ligações telefônicas no período em Oklahoma para estimular a derrama de opioides. Só em Oklahoma, conforme o procurador Hunter, 18 milhões de receitas de opioides foram emitidas em um Estado com uma população de 3,9 milhões, entre 2015 e 2018.
Não foi por falta de aviso que os réus persistiram tantos anos no delito. A própria junta de assessoria científica contratada pelos acusados – assinalou o juiz Balkman, com base em documentos obtidos – os havia informado que muitas das principais mensagens de marketing que haviam usado para promover os opioides “eram enganosas e não deviam ser divulgadas”.
TRÁFICO DE FAKE NEWS
Em 1998, a Purdue Pharma – da qual a J&J era o principal fornecedor – lançou o vídeo promocional “Ganhei Minha Vida de Volta”, em que um médico assevera que os opioides “não têm efeitos colaterais médicos graves” e devem ser usados “muito mais do que são”.
A desinteressada atuação da J&J e de outros fabricantes e redes de distribuidoras convenceu em 2001 a Joint Comission, uma instituição sem fins lucrativos encarregada de credenciar hospitais, a criar uma escala de dor de 0-10 e a começar a julgar os hospitais com base na suposta satisfação do paciente com o tratamento da dor (isto é, em engolir comprimidos de opioides).
Na época, a Joint Comission e a máfia do cartel farmacêutico concordaram ainda em que não existiriam “evidências de que o vício seja um problema significativo quando as pessoas recebem opioides para o controle da dor”.
No ano seguinte, os médicos norte-americanos receitaram 23 vezes mais OxyContin – o blockbuster opioide da Purdue – do que seis anos antes, e as vendas foram multiplicadas por 30. Dois anos depois, a Federação de Conselhos de Medicina do Estado de Oklahoma, com apoio de um executivo da Purdue, passa a recomendar sanções contra médicos que “subestimem a dor” – isto é, que não entupam os pacientes com a droga da J&J e cúmplices.
Quando a escala é abandonada oito anos depois, em 2009, já era tarde, e agora os EUA consomem quase todos os analgésicos opioides do mundo: 81% da oxicodona e 99% da hidrocodona.
No ano seguinte, a heroína se espraia nas áreas rurais e suburbanas norte-americanas; depois chega o fentanyl. Em 2011, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças declaram que as overdoses de analgésicos atingiram “níveis epidêmicos”. Em 2012, o total de analgésicos opioides receitados nos EUA chega a 259 milhões – quase o suficiente para cada norte-americano receber um frasco de comprimidos.
Em duas décadas, o total de mortos por overdose nos EUA vai a 400 mil. Como registra a jornalista Julia Lurie, na revista Mother Jones, “a face cada vez mais branca do vício muda a forma como os formuladores de políticas estruturam o problema, que de falha moral que requer tempo de prisão, passa a doença que requer tratamento”.
A Johnson & Johnson já anunciou que irá recorrer e seus advogados, cinicamente, têm sustentado que “nós [a J&J] não prescrevemos essas drogas; foram os médicos”. Deve ter sido a modéstia que os levou a esquecer das 150 mil ligações telefônicas para os consultórios registradas no processo.
Apesar do vulto da multa, o que foi concedido só banca um ano de enfrentamento da crise dos opioides. O Estado pedira US$ 17 bilhões de indenização, o que corresponde à despesa em 20 anos com tratamento e programas de prevenção. Também processadas, a Purdue Pharma e a Teva Pharmaceuticals aceitaram em maio fechar acordos extrajudiciais com o estado de Oklahoma de, respectivamente, US$ 270 milhões e US$ 85 milhões. Em outubro, irá a julgamento em uma corte federal de Ohio ação conjunta impetrada por 2000 municípios e condados, de 40 estados, contra os fabricantes de opioides.
ANTONIO PIMENTA