Houve poucas coisas tão repugnantes, nos últimos tempos, quanto a ida de Bolsonaro e Guedes ao Congresso para entregar o projeto (ou os projetos) do “novo” pacote econômico.
Esses elementos prometeram mundos e fundos se a reforma da Previdência – o maior ataque aos direitos sociais em 90 anos de História do Brasil – fosse aprovada.
Ia ser uma maravilha. A economia sairia do fundo da fossa para se alçar ao espaço sideral. Os empresários iriam investir os tubos na produção. E os “investidores” estrangeiros iriam encher-nos de dinheiro (e, ainda por cima, em dólar!), fazendo o crescimento atingir níveis jamais alcançados.
Tudo era mentira, claro. Nada disso aconteceu. A única coisa que aconteceu foi a cassação de mais direitos dos trabalhadores, com a consequência de que ficou mais difícil tirar o país do buraco – quanto menor a renda da população, quanto menor o seu poder aquisitivo, quanto menor o seu consumo, mais é travado o crescimento. Que empresário vai investir, sabendo que não há consumidores – isto é, compradores para as mercadorias que sua empresa fabrica?
Então, qual a solução de Guedes e Bolsonaro para esse fracasso?
Ora, outro pacote, cassando mais direitos da população – e até da federação – portanto, afundando mais o país no abismo em que está caindo desde 2015.
Guedes é um vigarista, um escroque. Dessa vez quem o diz é um seu atual admirador (e admirador incondicional), o sr. Augusto Heleno, ministro do GSI: “O Paulo Guedes vende pente para careca na rua Uruguaiana!”, disse Heleno ao “Valor”. E ele acha que isso é uma virtude: “Paulo Guedes é brilhante”.
Ou seja, a grande qualidade de Guedes é ser um vigarista. Faz lembrar aquele trecho de Rui Barbosa: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto... Essa foi a obra da república nos últimos anos” (Rui, O.C., V. 41, t. 3, 1914, p. 86).
Entretanto, Rui – a quem o Brasil agora homenageia, nos seus 170 anos de nascimento – jamais conheceu algo como o governo Bolsonaro e os seus ministros.
Também não conheceu algo como aquela bajulação nojenta a Guedes e a Bolsonaro, em sua ida ao Congresso para entregar algo que, se fosse aprovado, seria um garrote vil para o povo brasileiro.
Em sua página no Facebook, o economista Guilherme Santos Mello, professor do Instituto de Economia da Unicamp, sintetizou o conteúdo daquilo que Guedes e Bolsonaro entregaram:
“O plano Guedes anunciado como ‘Plano mais Brasil’ reúne um conjunto de medidas que na prática suspendem os direitos sociais e o arranjo federativo previstos na Constituição Federal de 1988. Da mesma forma que o AI-5 suspendeu os direitos políticos e interferiu diretamente no ‘pacto federativo’, o plano Guedes suspende os direitos sociais e aniquila milhares de municípios” (cf. Guilherme Santos Mello, Plano Guedes: o AI-5 econômico, reproduzido pelo Portal Vermelho).
Esse é o “plano” que alguns classificaram como “a maior reforma do Estado em três décadas”.
Tal como diz o economista:
“O plano é a revogação da Constituição Federal de 1988 no capítulo dos direitos sociais e do pacto federativo. É um descalabro que só poderia surgir de uma mente autoritária, que não sabe o que é o Brasil e quer implementar uma ideologia atrasada que ele aprendeu na década de 60/70. Guedes e Eduardo Bolsonaro têm exatamente isso em comum: sentem saudades do AI-5, cada um à sua forma. O mais assustador é ter gente que acha que AI-5 nos direitos políticos não pode, mas na economia ‘é o preço a se pagar pela estabilidade’. Já ouviram esse discurso antes?” (cf. Guilherme Santos Mello, idem).
O também economista Paulo Kliass fez uma observação pertinente:
“Ocorre que o rapaz [Guedes] parece ter passado um pouco do tom aceito pelas próprias elites envolvidas até o pescoço com seu projeto de neoliberalismo um tanto fora de época. As propostas envolvem um número ainda desconhecido de propostas de emendas constitucionais, tamanha a ambição demolidora do aprendiz de Chicago boy” (cf. Paulo Kliass, Desastre à vista, Vermelho 06/11/2019).
Tanto isso é verdade que Monica de Bolle, atualmente diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University, nos EUA – e pessoa de credenciais neoliberais estabelecidas há muito – esculhambou o “plano Guedes”.
O mais interessante, aliás, é que a crítica desta economista começa pelo fascismo do “pacote”:
“Seu foco [de Guedes], desde a campanha, é de transformar o Brasil numa espécie de estado mínimo tupiniquim. Mas não dá muito para imaginar como isso cabe em nossa Constituição de 88, que prega um estado de bem estar social. Até por isso ele vem articulando reformas por meio de PECs [proposta de emenda constitucional]. Mas a estratégia chega a ferir normas democráticas. Ele fala em novo pacto federativo, mas não ouve a população. No limite, esse tipo de discussão deveria ser feita em uma assembleia constituinte” (v. Monica de Bolle: Paulo Guedes está preso nos anos 70, Exame 05/11/2019, grifo nosso).
E ela continua – com uma colocação, para nós, um pouco surpreendente (mas positivamente surpreendente):
“As manifestações recentes no Chile sublinham o tamanho do problema. No Brasil, com pobreza extrema, é ainda pior. Não se atenua a pobreza e a desigualdade sem um estado atuante. É preciso ter redes de proteção social fortes. O mercado não resolve sozinho, como já foi mostrado de todo jeito. O Paulo Guedes está preso nos anos 70 do Chile e dos ‘Chicago boys’. Além disso, ele nunca foi um formulador de políticas públicas, nem precisou de um entendimento mais profundo de políticas públicas sobre a dinâmica da pobreza na vida das pessoas. O Chile passa por uma convulsão pela ausência de bem estar social a despeito de todas as reformas. Estive recentemente com um embaixador chileno que reconheceu a falha do país em não ter gasto para ter uma rede de bem estar social. O governo Piñera, pelo menos, percebeu que também é responsável, e pela primeira vez um governo de direita está preocupado com questões sociais na região. Espero que dê certo, porque daria um recado muito importante” (Exame 05/11/2019, idem, grifo nosso).
Os anos 70, no Chile, foram os anos do banho de sangue de Pinochet, em cima do qual os “Chicago Boys” levaram o país a outra tragédia – a da fome, da miséria e da insegurança.
E, sobre o crescimento da economia no Brasil: “o governo defende uma política de país com estado mínimo que não vai funcionar”.
FUNDOS E SALDOS
Muito se falou, até agora, na proposta de Guedes de extinguir 1.300 municípios do Brasil.
Como isso não tem a menor chance de passar no Congresso – menos ainda com uma eleição municipal no próximo ano – ficamos pensando se Guedes não estava lançando o famoso “bode” na sala.
Enquanto se discute esse estrupício, passaria aquilo que é a supressão da Constituição de 1988.
De que estamos falando? Uma amostra:
O pacote de Guedes acabaria “de vez com as reservas que a União dispunha sob a forma de saldos nos fundos constitucionais e não constitucionais. Trata-se de um volume consideravelmente bilionário de recursos financeiros que não vinham sendo utilizados em função da obsessão de cortes e mais cortes ditada pela lógica da austeridade a todo custo. Com isso, o raciocínio simplista e perigoso foi o seguinte: já que os recursos não estão sendo mesmo usados para funções precípuas, melhor logo acabar com os fundos e torrar esse dinheiro todo para zerar o déficit fiscal. De preferência para pagar juros – as famosas despesas financeiras da União. Uma loucura. E lá se vão as possibilidades de investimento em ciência, tecnologia e inovação, desenvolvimento regional, telecomunicações, infraestrutura e por aí vai.
(…)
“… trata-se de uma intenção de revogar a natureza obrigatória de determinados gastos, como saúde ou educação. Em seguida, evitar todo e qualquer tipo de indexação das despesas, como o necessário alinhamento automático do piso básico da previdência social ao salário mínimo. Finalmente, as medidas propõem a eliminação de qualquer vinculação de dispêndio orçamentário a partir de um determinado tipo de receita. Ou seja, ficaria liberado ao bel prazer do governante de plantão fazer o uso que bem desejar daquele recurso” (Kliass, art. cit.).
DIFERENÇA
Os direitos da Constituição de 1988 têm uma função econômica precisa: a de garantir um mercado interno mínimo. Sem eles, o mercado interno, o mercado nacional, o mercado para a maioria das empresas nacionais seria mais achatado, mais estrangulado ainda do que é hoje, sobretudo depois da “reforma” da Previdência.
Estaríamos regredindo, com algumas diferenças, obviamente, ao tempo em que a escravidão impedia o crescimento da economia, por falta de mercado.
Não é uma figura de linguagem, assim como a explosão no Chile não é uma figura de linguagem.
A diferença nossa em relação ao Chile, nessa questão, é que o Brasil é muito maior – e muito mais populoso.
C.L.