A última condenação do ex-tesoureiro do PT, João Vaccari Neto – por corrupção passiva, lavagem e organização criminosa -, na quarta-feira (19/02), traz um problema para os seus defensores: não é possível jogá-la em cima da “parcialidade” de Moro.
A sentença – sete anos e seis meses em regime semiaberto – foi pronunciada pelo discreto juiz Luiz Antonio Bonat, agora à frente da 13ª Vara Federal de Curitiba (aqui, a íntegra da decisão).
Sempre é possível alegar que Bonat faz parte da conspiração urdida por Moro – mas essas alegações estão ficando muito ridículas.
(Além disso, como não cansa de lembrar a ex-juíza Denise Frossard, “pas de nullité sans grief” – não existe nulidade sem dano: o que importa não é a posição político-ideológica do juiz, mas se, em determinado julgamento, alguma das partes, defesa ou acusação, foi ou não prejudicada. Mas, voltemos à sentença de quarta-feira.)
O motivo da condenação foram as propinas do Estaleiro Jurong, pertencente ao grupo Jurong Shipyard, de Singapura, em cima dos contratos com a Sete Brasil, para a fabricação de sete navios-sonda de exploração de petróleo, que seriam alugados à Petrobrás.
Não era pouca coisa: os contratos do Jurong com a Sete Brasil somavam US$ 43.942.603.281,59 (43 bilhões, 942 milhões, 603 mil, 281 dólares e 59 cents).
O acerto de propina era um repasse de 0,9% do valor de cada contrato, o que aconteceu até dezembro de 2013. No ano seguinte, a Operação Lava Jato desmontou o esquema:
“… a propina era cobrada em 0,9% sobre o valor dos contratos e dividida 1/6 para o Diretor de Engenharia e Serviços da Petrobrás Renato de Souza Duque e para o gerente executivo de Engenharia e Serviços da Petrobrás Roberto Gonçalves (denominado ‘Casa 1’), 1/6 para os acusados Pedro José Barusco Filho, Eduardo Costa Vaz Musa e João Carlos de Medeiros Ferraz, estes agora como dirigentes da própria empresa Sete Brasil (denominado ‘Casa 2’), e 2/3 para o Partido dos Trabalhadores, com arrecadação por João Vaccari Neto” (cf. Sentença cit., p. 67).
A propina, entretanto, não era sobre esse total de quase 44 bilhões de dólares – pois esse dinheiro não estava, obviamente, disponível, muito menos antes da construção das sondas, o que levaria alguns anos.
A propina era sobre os “contratos de EPC (Engineering, Procurement and Constructions) vinculados a cada sonda no montante total de US$ 5.645.082.274,32”, ou seja, mais de cinco bilhões de dólares (cf. AP nº 5050568-73.2016.4.04.7000/PR, Sentença, p. 4 e pp. 66/67, 140/141, grifos nossos).
O que são “contratos de EPC”?
“Resumidamente, o ‘modelo EPC’ significa entregar uma obra, inclusive os projetos básico e executivo, as compras de insumos e maquinário, e a contratação de outras empresas, a uma única ‘empreiteira’ ou consórcio de ‘empreiteiras’. No limite, significa entregar o próprio resultado da obra também a elas – o caso da Sete Brasil, em que as sondas não pertenceriam à Petrobrás, é mais que ilustrativo.
“As aspas que colocamos em ‘empreiteiras’ vão por conta de que essas empresas agem cada vez mais como empresas financeiras – a rigor, monopólios financeiros – e cada vez menos como empreiteiras no sentido em que se entende no Brasil, o de construtoras” (v. Carlos Lopes, “Os Crimes do Cartel do Bilhão Contra o Brasil”, Fundação Instituto Claudio Campos, 2016, p. 68).
NEO-NACIONALISMO
Era sobre esses contratos, no total de US$ 5.645.082.274,32, que o Jurong passava 0,9%, à medida que saía o dinheiro, com o estabelecimento de uma “conta-corrente” entre o operador do estaleiro, Guilherme Esteves de Jesus, e os recebedores da propina.
Logo, o acerto de propina com o Jurong, “sobre os contratos EPC”, atingia mais de 50 milhões de dólares – em reais, ao câmbio do momento em que foram assinados esses contratos, em 2012, 103 milhões, 471 mil, 696 reais e 83 centavos.
Entre maio de 2013 e dezembro de 2013 foram localizados 10 repasses de propina, somando US$ 10.366.264,03 (dez milhões, 366 mil, 264 dólares e três cents), sempre usando contas de empresas de fachada (“offshores”) no exterior.
Além de Vaccari, foram condenados o ex-diretor de Serviços da Petrobrás, Renato Duque, a seis anos e seis meses, e o “operador” do Jurong, Guilherme Esteves de Jesus, a 19 anos e 4 meses. Três dos réus não foram julgados, devido a acordos de “colaboração premiada” anteriores: Pedro Barusco, João Carlos Ferraz e Eduardo Musa.
O processo teve alguns momentos patéticos (que os leitores nos desculpem essa palavra horrível).
Por exemplo, o ex-gerente executivo de Serviços, Pedro Barusco – o mesmo que, agarrado logo nos primeiros momentos da Operação Lava Jato, devolveu 97 milhões de dólares de propinas que agasalhara na Suíça – explicou em seu depoimento que a Sete Brasil foi organizada em razão do nacionalismo, especialmente do seu nacionalismo, e não para receber propinas.
Barusco foi colocado na diretoria de operações da Sete Brasil unicamente para transplantar o esquema de propinas de que participava na Diretoria de Serviços da Petrobrás. Porém, fez uma demonstração impressionante de que não foi para roubar que se fundou a Sete Brasil.
Tal demonstração foi baseada no igualitarismo da propina:
ADVOGADO DE GUILHERME ESTEVES: (…) Então a decisão sobre escolher o Jurong e determinar o número de sondas não foi determinado pelo ajuste ou pela sugestão de que haveria um pagamento aí de uma comissão? Não foi isso que levou à decisão sobre a participação do Jurong e sobre a quantidade de sondas, é isso?
BARUSCO: É, todo mundo ia pagar 1%, isso não era um…
ADVOGADO DE GUILHERME ESTEVES: Um fator que…
BARUSCO: Teoricamente as pessoas tinham na cabeça, não era um fator que diferenciava no (inaudível).
Como as propinas vinham de todos os estaleiros, concluiu (?!) Barusco que elas não tinham importância na escolha dos estaleiros, pela Sete Brasil, para executar contratos no valor total de US$ 82 bilhões (oitenta e dois bilhões de dólares; cf. Sete Brasil, Relatório 2012).
A outra conclusão – a de que somente eram escolhidos aqueles que aceitavam pagar suborno – não foi aventada por Barusco… E ninguém lhe perguntou por que jamais foi escolhido algum estaleiro que não pagasse propina.
O juiz nota que em 2009 a Petrobrás abriu licitação para a construção de navios-sonda diretamente com os estaleiros, da qual, em 2011, saiu vencedor o Estaleiro Atlântico Sul.
Foi somente depois do fracasso (por “preço excessivo”) de uma outra licitação, que Renato Duque apareceu com a proposta de “negociação direta” com a Sete Brasil (e, secundariamente, com a Ocean Rig, do armador grego Georgios Ekonomou).
O que era a Sete Brasil? Uma empresa financeira, armada pelo próprio Duque e por Barusco, para ser intermediária entre a Petrobrás e os estaleiros, na maior parte pertencentes ao cartel que extorquia a empresa através de sobrepreços, aspergindo propinas.
É verdade que, em breve, parece que seus mentores decolaram um pouco do solo:
BARUSCO: … a Sete não ia fornecer só plataforma para a Petrobrás, a Sete ia entregar a plataforma tripulada e ia operar a plataforma, ou seja, ia fazer os poços, fazer a perfuração. E uma das tarefas internas da Sete era construir as sondas (…).
Dentro em breve, por esse caminho, a Sete Brasil iria substituir a Petrobrás… Aliás, já tinha tentado se apropriar da frota de petroleiros, por proposta de, adivinhe o leitor, Renato Duque (faça-se justiça, quem impediu esse descalabro foi Dilma).
No entanto, já abordamos extensamente a Sete Brasil em outros artigos. Aqui, apenas lembramos a conclusão da auditoria interna da própria Sete Brasil: até 2014, as propinas através da Sete Brasil – isto é, às custas da Petrobrás – montaram a 224 milhões de dólares (v. o nosso livro “Os Crimes do Cartel do Bilhão Contra o Brasil”, p. 207; neste site, v. O instrutivo relato de Fernando “Baiano” sobre as tratativas com Bumlai e Lula; O esquema do PT na Petrobrás: Vaccari, Duque & alguns outros; e, também, As “empresas EPC do Duque” e a pilhagem ao COMPERJ).
OMISSÕES
O juiz Bonat levou em consideração, bastante, o relatório, encerrado em 2016, da Comissão Interna de Apuração (CIA) da Petrobrás sobre o “Projeto Sondas” – que tinha como essência a própria Sete Brasil.
Há, nesse relatório, alguns problemas no campo conceitual – por exemplo, atribuir a esbórnia da Sete Brasil à “visão nacionalista de alguns diretores [da Petrobrás] e o excesso de confiança existente na diretoria”.
Mas esse é um equívoco no terreno ideológico. Como todo erro nesse campo, tem o seu aspecto de maluquice.
Quando o relatório desce aos fatos, é bem melhor:
“Alguns dos principais atores responsáveis pela construção de sondas no Brasil não estavam efetivamente preocupados com o sucesso da Petrobrás em sua empreitada, mas sim em enriquecerem às custas da Companhia e para isso utilizaram-se de seus cargos e prestígio para que tudo acontecesse como desejavam, sem que outros personagens pudessem perceber o que realmente estava por trás da constituição da Sete Brasil ou agissem para eliminar conflitos.”
Em certo trecho, diz o relatório da Comissão Interna de Apuração da Petrobrás:
“O Plafin [área de Planejamento Financeiro] (…) calculou probabilidade de perda de 82%, existindo probabilidade de 10% de as perdas serem iguais ou superiores a US$ 16 bilhões pela fixação de taxas de afretamento na faixa de US$ 525 mil/dia. Entre outras recomendações, sugeriu espaçar cronograma de contratação, negociar opção de encerramento antecipado de contratos e, a depender de modalidade de contratação e dificuldades encontradas para viabilizar a construção no Brasil, considerar investimento da Petrobras na infraestrutura de construção naval” (cf. Relatório Final da Comissão Interna de Apuração, pp. 48/49, grifos nossos).
É (ou era) possível discutir o que isso significa – ou questionar os critérios da área financeira da Petrobrás. O que não se podia era omitir esse parecer, no relatório encaminhado à diretoria executiva da empresa, que devia decidir sobre a “estratégia de contratação” das sondas e navios-sonda.
Mas foi o que foi feito (com perdão pelo mau português, mas, nesse caso, justificável pela feiura do fato).
Com revolta de funcionários da Petrobrás, como relata a Comissão Interna de Apuração, em vários momentos:
“6.7 Interferência do ex-diretor Duque e do ex-empregado João Carlos Ferraz com vistas a beneficiar a Sete Brasil, conforme e-mails trocados entre o ex-empregado João Ferraz, ex-diretor Duque e ex-presidente Gabrielli, no período de 29/03 a 07/04/2011, resultando na recusa dos GEs (Gerentes Executivos] E&P-SERV e E&P-CPM em assinar o DIP [Documento Interno da Petrobras] E&P-SERV 94/2011.
“Foi emitido DIP DE&P 64/2011, em substituição ao DIP E&P-SERV 94/2011, cujos GEs do E&P-SERV e S&P-CPM se recusaram a assinar, com gráfico diferente do elaborado pela Comissão de Licitação com base no estudo constante no DIP Finanças 81/2011”.
PROVAS
O juiz Bonat ressalta que, contra o ex-tesoureiro do PT, Vaccari Neto, “há seis depoimentos incriminadores, de Renato de Souza Duque, Pedro Barusco, Eduardo Musa, João Ferraz, Milton Pascowitch e Walmir Pinheiro Santana, relatando o seu envolvimento com os acertos da corrupção nos contratos da Sete Brasil com os estaleiros”.
Além disso, “há provas diretas de corroboração” desses depoimentos. Aqui, transcreveremos as palavras do juiz:
“Nesse sentido, a anotação identificada no celular de Marcelo Bahia Odebrecht, com a associação de João Vacari Neto à sigla ‘DGI’, utilizada pelo executivo da Odebrecht para referenciar pagamentos de propina, e a palavra sondas: ‘Vaccari vs sondas vs DGI consorcios’”.
Bonat observa que o sistema de “compensações” de propina é corroborado pelas outras provas contra Vaccari (planilhas de Pedro Barusco, planilhas de Guilherme Esteves de Jesus, registro de ligações telefônicas, e-mails, etc.).
Esse sistema de “compensações” de propina – aliás, já provado -, era o seguinte:
“… para evitar que um mesmo estaleiro tivesse que realizar pagamentos, concomitantemente, a agentes públicos e a agentes políticos, João Vaccari Neto, Pedro Barusco e Renato Duque organizaram para que alguns estaleiros ficassem responsáveis por pagamentos somente a agentes públicos, vg. o estaleiro Jurong, enquanto que outros estaleiros realizariam pagamentos apenas ao Partido dos Trabalhadores, vg. o estaleiro Ecovix.
“… Se antes um mesmo corruptor precisaria remunerar indevidamente agentes públicos e políticos, agora remuneraria agentes públicos ou agentes políticos, o que visivelmente diminui os rastros de pagamento, dificultando o descobrimento dos crimes e a recuperação do proveito criminoso”.
À SOMBRA
Por fim, existem algumas questões intrigantes.
Nas preliminares do julgamento, a defesa de Vaccari pediu que o processo fosse enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF) porque “pessoas com prerrogativa de função [isto é, com direito a foro privilegiado] estariam envolvidas nos fatos”.
Que pessoas são essas? A defesa de Vaccari não esclareceu. O comentário do juiz foi: “A falta de indicação de quem seriam os possíveis detentores de foro por prerrogativa de função envolvidos inviabiliza a análise da questão em abstrato”.
A outra questão é sobre o poder de Renato Duque dentro da Petrobrás. No caso das sondas – isto é, da Sete Brasil – esse poder esteve acima da diretoria da Petrobrás. Com uma simples ordem, sem qualquer parecer jurídico ou técnico, sem aprovação ou mesmo conhecimento da diretoria da empresa, Duque fez uma “elevação arbitrária da quantidade de lotes de navios sonda, de um lote de sete navios, para quatro lotes de sete navios (…)” (cf. Sentença, p. 61, grifo nosso).
Uma elevação que prevaleceu.
Como isso foi possível? Como, por uma simples ordem de um diretor, a demanda da Petrobrás, de sete navios transformou-se em 28 navios-sonda?
Poderia ser algo de praxe na diretoria da empresa, talvez os diretores detivessem uma ampla autonomia.
Mas não era assim e não foi isso, segundo a Comissão Interna de Apuração da Petrobrás. Pelo contrário, seu relatório destaca que Duque não tinha essa autonomia. Conclui, também, que essa ampliação tinha por objetivo contemplar outros estaleiros – ou seja, outros repassadores de propina.
Mais do que isso, demonstra que a licitação fracassada – depois da qual Duque apresentou a proposta de “negociação direta” com a Sete Brasil – foi, na verdade, sabotada:
“As modificações realizadas a pedido do DSERV [Diretor de Serviços, isto é, Renato Duque], sem parecer jurídico e autorização da DE [Diretoria Executiva], prejudicaram a licitação conduzida pelo E&P [área de Exploração e Produção], pois tornaram o processo da Engenharia mais atraente e vantajoso para os estaleiros, inviabilizando a apresentação de propostas competitivas pelos operadores na licitação do E&P, o que resultou no seu cancelamento. Outro ponto que merece atenção é o fato do DSERV autorizar, fora de sua alçada, a alteração sem submeter antes à aprovação da Diretoria Executiva” (grifos nossos).
Então, por que Duque tinha tanto poder?
A explicação óbvia é que esse poder não era dele. Mais ou menos como o poder de PC Farias para cobrar propinas no governo Collor não era dele.
Essa é a explicação, também, que se pode depreender da carta de Antonio Palocci à direção do PT, pedindo a sua desfiliação:
“… acompanhei de perto a evolução da nossa deterioração moral. Um dia, Dilma e Gabrielli dirão a perplexidade que tomou conta de nós após a fatídica reunião na biblioteca do Alvorada, onde Lula encomendou as sondas e as propinas, no mesmo tom, sem cerimônias, na cena mais chocante que presenciei do desmonte moral da mais expressiva liderança popular que o país construiu em toda nossa história.”
Palocci era, nessa época, o superior de Vaccari nos acertos de propina.
No fundo, é a mesma explicação que apresentou o próprio Renato Duque, ao falar de suas relações com Vaccari, Palocci e Lula – o que foi transcrito pelo juiz Bonat em sua sentença.
CARLOS LOPES