(HP, 04/11/2016)
Este artigo do jornalista e cineasta John Pilger, que nossos leitores já conhecem (v. HP 24/06/2016, “Hillary e o sanguinário imperialismo liberal”), foi traduzido a partir do original, publicado no site do autor (http://johnpilger.com). Dispensamo-nos de outros comentários – o texto do autor é mais do que suficiente.
C.L.
JOHN PILGER
O jornalista norte-americano Edward Bernays é frequentemente apresentado como o homem que inventou a propaganda moderna.
Sobrinho de Sigmund Freud, o pioneiro da psicanálise, foi Bernays quem cunhou a expressão “relações públicas”, eufemismo para o jornalismo de boatos e suas mentiras.
Em 1929, ele persuadiu as feministas a promoverem o consumo de cigarros entre as mulheres, fumando durante o Desfile da Páscoa de Nova York – comportamento então considerado estranho. Uma feminista, Ruth Booth, declarou: “Mulheres, acendam outra tocha de liberdade! Lute contra outro tabu sexual!”.
A influência de Bernays se estendeu muito além da publicidade. Seu maior sucesso foi seu papel em convencer o público americano a se juntar ao massacre que foi a Primeira Guerra Mundial. O segredo, disse ele, era “operar a engenharia do consentimento” das pessoas para “controlá-las e arregimentá-las de acordo com a nossa vontade, sem que elas saibam disso”.
Ele descreveu isso como “o verdadeiro poder dominante em nossa sociedade” e o chamou de “governo invisível”.
Hoje, o governo invisível nunca foi mais poderoso e menos compreendido. Em minha carreira como jornalista e cineasta, jamais vivi momento em que a propaganda estivesse tão imiscuída em nossas vidas como agora e tão sem oposição.
Imagine duas cidades. Ambas estão cercadas pelas forças do governo desse país. Ambas as cidades são ocupadas por fanáticos, que cometem atrocidades terríveis, como decapitar pessoas.
Mas há uma diferença vital. Em um dos cercos, os soldados do governo são descritos como libertadores, por repórteres ocidentais embutidos nas tropas, que relatam com entusiasmo suas batalhas e ataques aéreos. Há fotos da primeira página desses soldados heroicos fazendo “V” da vitória. Há escassa menção de baixas civis.
Na segunda cidade – em outro país próximo – quase exatamente o mesmo está acontecendo. As forças do governo estão cercando uma cidade controlada pela mesma casta de fanáticos.
A diferença é que esses fanáticos são apoiados, supridos e armados por “nós” – pelos EUA e Grã-Bretanha. Eles, ainda por cima, têm um centro de mídia que é financiado pela Grã-Bretanha e EUA.
Outra diferença é que os soldados do governo que sitiam esta última cidade são maus, condenados por assaltar e bombardear a cidade – o que é exatamente o que os bons soldados fazem na primeira cidade.
Confuso? Na verdade, não. Tal é o duplo padrão básico que é a essência da propaganda. Refiro-me, naturalmente, ao atual cerco à cidade de Mossul pelas forças governamentais do Iraque, apoiadas pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha, e ao cerco de Alepo pelas forças governamentais da Síria, apoiadas pela Rússia. Um é bom; o outro é ruim.
O que é raramente noticiado é que ambas as cidades não estariam ocupadas por fanáticos e devastadas pela guerra se a Grã-Bretanha e os Estados Unidos não tivessem invadido o Iraque em 2003. Essa empreitada criminosa foi lançada em cima de mentiras impressionantemente semelhantes à propaganda que agora distorce nossa compreensão da guerra civil na Síria.
Sem esse tambor de propaganda travestido de notícia, o monstruoso ISIS, e Al-Qaeda e al-Nusra, e o resto da gangue jihadista, poderiam nem existir, e o povo da Síria não deveria estar lutando, hoje, por suas vidas.
Alguns devem se lembrar, em 2003, de uma sucessão de repórteres da BBC virando-se para a câmera e nos dizendo que Blair agiu “justificadamente”, naquilo que acabou por ser o crime do século. As redes de televisão dos EUA produziram a mesma justificação para George W. Bush. A Fox News trouxe Henry Kissinger para avalizar as fabricações de Colin Powell.
No mesmo ano, logo após a invasão, filmei, em Washington, uma entrevista com Charles Lewis, o renomado jornalista investigativo americano. Perguntei-lhe: “O que teria acontecido se a mídia mais livre do mundo tivesse desafiado seriamente o que acabou sendo uma grosseira propaganda?”.
Ele respondeu que se os jornalistas tivessem feito seu trabalho, “haveria uma chance muito, muito boa, de que não teríamos ido à guerra no Iraque”.
Foi uma declaração chocante, mas apoiada por outros jornalistas famosos a quem fiz a mesma pergunta – Dan Rather, da CBS, David Rose, do Observer, e jornalistas e produtores da BBC, que pediram para permanecer anônimos.
Em outras palavras, se os jornalistas tivessem feito seu trabalho, tivessem desafiado e investigado a propaganda, em vez de amplificá-la, centenas de milhares de homens, mulheres e crianças estariam vivos hoje, e não haveria ISIS nem cerco de Alepo ou Mossul.
Não teria havido a atrocidade no metrô de Londres em 7 de julho de 2005. Não teria havido fugas de milhões de refugiados; não haveria campos de miseráveis.
Quando a atrocidade terrorista aconteceu em Paris, em novembro passado, o presidente François Hollande enviou imediatamente aviões para bombardear a Síria – e mais terrorismo se seguiu, previsivelmente, às declarações bombásticas de Hollande sobre a França estar “em guerra” e “não mostrar misericórdia”. Que a violência do Estado e a violência jihadista se alimentam uma da outra, é a verdade que nenhum líder nacional tem coragem de falar.
O ataque ao Iraque, o ataque à Líbia, o ataque à Síria aconteceram porque o líder de cada um desses países não era um fantoche do Ocidente. O registro de direitos humanos de um Sadam ou de um Khadafi era irrelevante. O ataque foi porque eles não obedeceram as ordens de entregar o controle de seu país.
O mesmo destino teve Slobodan Milosevic, que se recusara a assinar um “acordo” que exigia a ocupação da Sérvia e sua conversão a uma economia de mercado. Seu povo foi bombardeado e ele foi processado em Haia. Independência desse tipo é intolerável.
Como WikiLeaks revelou, foi apenas quando o líder sírio Bashar al-Assad, em 2009, rejeitou a construção de um oleoduto, atravessando o seu país, do Qatar até a Europa, que ele foi atacado.
A partir daquele momento, a CIA planejou destruir o governo da Síria com fanáticos jihadistas – os mesmos fanáticos que mantêm, atualmente, o povo de Mossul e o da zona leste de Alepo como reféns.
Por que isso não é notícia? Carne Ross, ex-funcionário do Ministério das Relações Exteriores britânico, responsável por operar as sanções contra o Iraque, disse-me: “Nós tratamos de alimentar os jornalistas com factóides de inteligência desinfectada, ou os paralisamos. Foi assim que funcionou”.
“O cliente medieval do Ocidente, a Arábia Saudita – ao qual os EUA e a Grã-Bretanha vendem bilhões de dólares em armas – está destruindo o Iemen, um país tão pobre que a desnutrição, na melhor das hipóteses, atinge metade das crianças.
Olhem no YouTube e verão o tipo de bombas de destruição em massa – “nossas” bombas – que os sauditas usam contra aldeias miserabilíssimas, e contra casamentos e funerais.
As explosões parecem como as de pequenas bombas atômicas. Os operadores das bombas, na Arábia Saudita, trabalham lado a lado com oficiais britânicos. Este fato não está nos noticiários noturnos.
A propaganda é mais eficaz quando o nosso consentimento é tramado por gente de fina educação – Oxford, Cambridge, Harvard, Columbia – e com carreiras na BBC, The Guardian, no New York Times, no Washington Post.
Essas organizações são conhecidas como a mídia liberal. Apresentam-se como tribunos iluminados e progressistas do zeitgeist [espírito da época] moral. Eles são antirracistas, pró-feministas e pró-LGBT.
E eles amam a guerra.
Enquanto falam a favor do feminismo, apoiam guerras de rapina que negam os direitos de inúmeras mulheres, incluindo o direito à vida.
Em 2011, a Líbia, então um Estado moderno, foi destruída sob o pretexto de que Muammar Kadafi estava perpetrando genocídio contra o seu próprio povo. Essa foi a notícia que não cessava; e não havia evidência alguma. Foi uma mentira.
Na verdade, a Grã-Bretanha, a Europa e os EUA queriam o que chamam de “mudança de regime” na Líbia, o maior produtor de petróleo da África. A influência de Gadafi no continente e, acima de tudo, sua independência, eram intoleráveis.
Então ele foi assassinado, com uma facada nas costas, por fanáticos apoiados pelos EUA, Grã-Bretanha e França. Hillary Clinton aplaudiu sua morte horrível diante das câmeras, declarando: “Nós viemos, vimos, ele morreu!”.
A destruição da Líbia foi um triunfo da mídia. Quando os tambores de guerra troavam, Jonathan Freedland escreveu no Guardian: “Embora os riscos sejam muito reais, o caso para a intervenção continua forte”.
Intervenção – que palavra polida, benigna, essa palavra do Guardian, cujo significado real, para a Líbia, era morte e destruição.
De acordo com seus próprios registros, a OTAN lançou 9.700 “missões de ataque” contra a Líbia, das quais mais de um terço foram para atingir alvos civis. Incluíam mísseis com ogivas de urânio. É suficiente olhar as fotografias dos escombros de Misurata e Sirte, e as valas comuns identificadas pela Cruz Vermelha. O relatório da Unicef sobre as crianças mortas diz: “a maioria [delas] com menos de dez anos”.
Como consequência direta, Sirte tornou-se a capital do ISIS.
A Ucrânia é outro triunfo da mídia. Os respeitáveis jornais liberais, como o New York Times, o Washington Post e o The Guardian, e as emissoras tradicionais, como a BBC, a NBC, a CBS e a CNN, desempenharam um papel crítico ao condicionar seus espectadores a aceitar uma nova e perigosa guerra fria.
Todos esses deturparam os acontecimentos na Ucrânia, como um ato maligno da Rússia, quando, de fato, o golpe na Ucrânia em 2014 foi serviço dos EUA, auxiliado pela Alemanha e pela OTAN.
Essa inversão da realidade é tão penetrante que a intimidação militar de Washington contra a Rússia não é notícia; ela é suprimida por trás de uma campanha de difamação e medo, daquele tipo com que eu cresci, durante a primeira guerra fria. Mais uma vez, os “ruskies” estão vindo para nos pegar, liderados por outro Stalin, que The Economist descreve como o diabo.
A supressão da verdade sobre a Ucrânia é um dos mais completos blecautes de notícias de que me lembro. Os fascistas que engendraram o golpe em Kiev são a mesma casta que apoiou a invasão nazista da União Soviética, em 1941. Apesar de todos os pavores sobre a ascensão do antissemitismo fascista na Europa, nenhum líder menciona, jamais, os fascistas na Ucrânia – exceto Vladimir Putin, mas ele não conta.
Muitos na mídia ocidental trabalharam arduamente para apresentar a população de língua russa da Ucrânia como forasteiros em seu próprio país, como agentes de Moscou, quase nunca como ucranianos que buscam uma federação dentro da Ucrânia e como cidadãos ucranianos resistindo a um golpe de Estado, orquestrado do estrangeiro, contra seu governo eleito.
Há quase a joie d’esprit [euforia] de uma reunião de estudantes, entre os belicistas. Os bateristas de tambor do Washington Post, incitando a guerra com a Rússia, são os mesmos editores que publicaram a mentira de que Sadam Hussein tinha armas de destruição em massa.
Para a maioria de nós, a campanha presidencial norte-americana é um show freak [aberrante] de mídia, em que Donald Trump é o arqui-vilão. Mas Trump é detestado por aqueles que têm poder nos EUA, por razões que têm pouco a ver com seu comportamento e opiniões antipáticos. Para o governo invisível em Washington, o imprevisível Trump é um obstáculo para o design que querem impor aos EUA no século XXI.
Qual seja, manter o domínio dos EUA, subjugar a Rússia, e, se possível, a China.
Para os militaristas em Washington, o verdadeiro problema com Trump é que, em seus momentos de lucidez, ele não parece querer uma guerra com a Rússia; quer conversar com o presidente russo, não lutar contra ele; e diz que quer conversar também com o presidente da China.
No primeiro debate com Hillary Clinton, Trump prometeu não ser o primeiro a recorrer a armas nucleares em um conflito. Ele disse: “Eu certamente não faria o primeiro ataque. Uma vez que a alternativa nuclear acontecer, acabou”. Isso não foi notícia.
Ele realmente quis dizer isso? Quem sabe? Ele, muitas vezes, se contradiz. Mas está claro que Trump é considerado uma séria ameaça ao status quo mantido pela vasta máquina de segurança nacional que administra os Estados Unidos, independente de quem esteja na Casa Branca.
A CIA quer que ele seja derrotado. O Pentágono quer que ele seja derrotado. A mídia quer que ele seja derrotado. Até seu próprio partido quer que ele seja derrotado. Ele é uma ameaça aos governantes do mundo – ao contrário de [Hillary] Clinton, que não deixou dúvida de que está preparada para ir à guerra contra a Rússia e a China, com armas nucleares.
[Hillary] Clinton tem a fórmula, como frequentemente ela se gaba. De fato, sua folha-corrida é comprovada. Como senadora, apoiou o banho de sangue no Iraque. Quando concorreu contra Obama, em 2008, ameaçou “obliterar totalmente” o Irã. Como secretária de Estado, conspirou para destruir governos na Líbia e em Honduras, e começou a colocar em movimento o conflito com a China.
Ela agora se compromete a apoiar uma Zona de Exclusão Aérea na Síria – uma provocação direta para a guerra com a Rússia. Clinton pode muito bem se tornar o presidente mais perigoso dos EUA que eu já vi na minha vida – uma distinção para a qual a concorrência é feroz.
Sem um pingo de prova, ela acusou a Rússia de apoiar Trump e hackear seus e-mails. Liberados pelo WikiLeaks, esses e-mails nos dizem que aquilo que Clinton diz em privado, em discursos para os ricos e poderosos, é o oposto do que ela diz em público.
É por isso que silenciar e ameaçar Julian Assange é tão importante. Como editor do WikiLeaks, Assange sabe a verdade. E, deixem-me assegurar àqueles que estão preocupados, ele está bem, e WikiLeaks está operando a todo vapor.
Hoje, está em andamento a maior concentração de forças lideradas pelos americanos desde a II Guerra Mundial – no Cáucaso e na Europa Oriental, na fronteira com a Rússia, na Ásia e no Pacífico, onde a China é o alvo.
Tenham isso na mente quando o circo da eleição presidencial chegar ao seu final, em 8 de novembro. Se o vencedor for Clinton, um coro grego de comentaristas irônicos celebrará sua coroação como um grande passo para as mulheres. Ninguém vai mencionar as vítimas de Clinton: as mulheres da Síria, as mulheres do Iraque, as mulheres da Líbia. Ninguém mencionará os exercícios de defesa civil realizados na Rússia. Nenhum recordará as “tochas de liberdade” de Edward Bernays.
O porta-voz de George W. Bush chamou uma vez os meios de comunicação de “facilitadores cúmplices”.
Vindo de um alto funcionário de uma administração cujas mentiras, avalizadas pela mídia, causaram tanto sofrimento, essa descrição é uma advertência da História.
Em 1946, o promotor do tribunal de Nuremberg disse, sobre a imprensa alemã: “Antes de cada grande agressão, iniciavam uma campanha de imprensa para debilitar suas vítimas e preparar o povo alemão, psicologicamente, para o ataque. No sistema de propaganda, os jornais diários e o rádio eram as armas mais importantes”.