Pela segunda vez em uma semana, o presidente norte-americano Donald Trump comentou o quadro da epidemia de Covid-19 no Brasil, dizendo “odiar dizer”, mas no Brasil “o gráfico está muito, muito alto. Lá em cima, quase vertical”.
A declaração foi feita em coletiva de imprensa na Casa Branca na quinta-feira, após o Brasil bater novo recorde de casos comprovados de infecção, 7,2 mil em 24 horas, e a mais alta taxa de contágio do mundo, 2,8.
Com a discussão que decidirá a reeleição nos EUA em novembro sendo sem dúvida se Trump enfrentou adequadamente a epidemia de Covid-19 e a depressão econômica em curso, parece que o presidente norte-americano está sentindo necessidade de demarcar distância daquele que gosta de aparecer como “o Trump Tropical”, o presidente brasileiro Jair Messias Bolsonaro.
Bolsonaro já é o campeão latino-americano de contágios de coronavírus, enquanto Trump tenta disfarçar que é o campeão mundial da triste modalidade. Daí sua declaração de que “o presidente do Brasil é realmente um bom amigo meu, um ótimo homem, mas eles estão vivendo um momento muito difícil”.
RESPINGOS
Bota difícil nisso. O Brasil contabiliza 6.329 mortes pelo coronavírus e 91.589 casos; sistema de saúde pública em colapso em Manaus e perto disso no Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco; ministro demitido por seguir normas da Organização Mundial da Saúde; e o presidente é Bolsonaro.
Ao que parece, Trump está começando a temer que o desastre em curso no Brasil – e a conhecida identidade entre ele e Bolsonaro – acabe respingando e lhe custando votos e até a reeleição.
Não é segredo para ninguém que a “gripezinha” de Bolsonaro é só um plágio da anterior “gripe comum”, de Trump. E que a ojeriza de Bolsonaro à quarentena reflete em grande medida o que Trump quer, como visto nas convocações do presidente dos EUA a “reabrir tudo” “até a Páscoa” – que depois se viu forçado a recuar -, ou sua pressão para acabar com a quarentena a partir de 1º de Maio, expostas por suas tuitadas para “libertar Michigan” do isolamento social.
Com as pesquisas mostrando que está muito grande o desgaste de Trump por sua inépcia e obscurantismo no enfrentamento da Covid-19, após fazer o movimento para forçar a reabertura da economia – seu novo slogan é “Reabrir a América de Novo -, ele também passou a encenar ser o “maior defensor” da quarentena e que teria optado por “proteger as vidas”, mesmo sob tão pesado preço para a economia.
Afinal, como se sabe, nas últimas décadas nunca um presidente dos EUA foi reeleito com o país sob recessão: “é a economia, estúpido”, aprendeu Bush Pai a contragosto, depois da Guerra do Golfo.
Após o governador republicano da Geórgia fazer exatamente o que ele estava empurrando – reabrir -, Trump veio a público dizer que discordava e que “spas e estúdios de tatuagem” era um pouco demais. Mas a mídia esclarecia que, por trás dos panos, a Casa Branca aprovava.
A menção ao Brasil surgiu em meio ao comentário sobre a Suécia, que se recusou a adotar a quarentena e acabou afetada por números muito mais negativos do que os países vizinhos que puseram em prática o isolamento social.
Em tuitada no mesmo dia, Trump havia postado que os suecos “estão pagando um preço alto” por terem evitado a quarentena, com mais vítimas fatais do que seus vizinhos, Noruega, Dinamarca e Finlândia.
Comentário que funcionava como pretexto para Trump dizer que “os Estados Unidos tomaram a decisão correta”.
Isto é, que “priorizou a saúde e a vida dos norte-americanos”, ainda que o preço fosse o pior quadro da economia em quase um século e 30 milhões de desempregados em seis semanas.
A preocupação de Trump deve estar grande, pois transcorreram pouco mais de 48 horas desde o primeiro comentário dele sobre o Brasil como exemplo negativo do combate à pandemia.
O assunto surgira na terça-feira (28), em conferência ao lado do governador da Flórida Ron de Santis, em que Trump dissera que o Brasil tem “praticamente um surto, como vocês sabem (…) Se você olhar os gráficos você vai ver o que aconteceu infelizmente com o Brasil. Estamos olhando para isso bem de perto”.
Disse ainda que o Brasil estava se saindo “pior que os demais vizinhos sul-americanos no controle do vírus”.
MIAMI
Na ocasião, Trump indagou de De Santis se ele pensava em banir voos do Brasil para a Flórida, e revelou que o governo norte-americano vem estudando essa medida há um mês. O governador da Flórida descartou por enquanto o banimento de voos, mas afirmou analisa a introdução de testes rápidos de coronavírus antes do embarque.
Com o conhecido gosto dos bolsonaristas pelas férias em Miami, há preocupação nas hostes republicanas de que a pandemia nos EUA poderia ser realimentada – a temida segunda onda – por infectados procedentes do Brasil, onde a Covid-19 estaria no auge e descontrolada.
“E DAÍ?’
A BBC sugeriu que, ao falar do assunto duas vezes em uma semana, “Trump manda uma mensagem forte a Bolsonaro e sugere não aprovar a condução da crise pelo colega”.
A BBC lembrou, ainda, o menosprezo de Bolsonaro pelos mortos da Covid-19: “E daí? Quer que eu faça o quê?”. Segundo a emissora britânica, Bolsonaro “é crítico de medidas de quarentena – que pessoalmente burla quase que diariamente” – e vem pressionando governadores e prefeitos contra a quarentena.