Fanáticos batem bumbo nas ruas contra a quarentena e Trump dobra sua mórbida previsão de duas semanas atrás
Em meio à onda de bandos de fanáticos e cabos eleitorais exigindo o fim imediato da quarentena nos EUA, exibindo bandeiras confederadas, armas e suásticas, e com governadores republicanos aproveitando o embalo, o presidente Donald Trump admitiu no especial de domingo (3) da Fox News que o total de mortos pelo coronavírus nos EUA poderá chegar “a 100 mil” até o início de junho.
A admissão coincide com a revelação, pelo New York Times, de que estudo interno dos Centros de Controle de Doenças (CCD) dos EUA a que teve acesso prevê que o país irá para um patamar ainda mais trágico de mortes por Covid-19 nos próximos 30 dias: 3.000 diariamente, quando está atualmente em torno de 1.750. As infecções, de 25 mil para 200 mil por dia.
Duas semanas antes, o número de mortos previsto por Trump havia sido de 60 mil – aliás, já ultrapassado. Total que não fora abalizado então pela infectologista-chefe da força-tarefa da Casa Branca, Deborah Birx, que discretamente reiterara que o que estava valendo era aquele modelo epidemiológico em que os 100 mil é o piso, não o teto.
Na semana passada, também vazou via NBC New que o governo Trump, através de duas instituições federais, a Agência Federal de Gerenciamento de Emergências (Fema, na sigla em inglês) e a Administração de Veteranos, havia encomendado cerca de 350 mil sacos de embalar defuntos. A Fema também encomendou 200 trailers refrigerados do maior tamanho disponível [do tipo visto nas portas dos hospitais de Nova Iorque].
DE VOLTA AO OLHO DO FURACÃO?
Como registrou o NYT, “as projeções confirmam o medo primordial dos especialistas em saúde pública: que uma reabertura da economia porá a nação de volta onde estava no meio de março, quando os casos estavam subindo tão rápido em algumas partes do país que os pacientes estavam morrendo em macas nos corredores dos hospitais do sistema de saúde sobrecarregado”.
No especial da Fox News – transmitido do Memorial de Lincoln, numa tentativa de parasitar o prestígio do grande presidente -, Trump não viu nenhum problema em dizer também que os EUA haviam sido “bem sucedidos” em conter o morticínio do vírus.
Em dois meses, os EUA já sofreram quase 68 mil mortos da Covid-19 – mais do que em vinte anos de Guerra do Vietnã – e os infectados passam de 1,1 milhão.
TIRO DE LARGADA
No dia 30 de abril, Trump deixou expirar a “emergência nacional de saúde”, com a orientação do “fique em casa”, e deu o tiro de partida na corrida para por abaixo a quarentena com sua tuitada “liberte Michigan”.
Considerando que metade dos mortos pela Covid-19 nos EUA foi nas duas últimas semanas, dá para ter uma noção da aposta eleitoral feita por Trump.
Ele até já remendou seu inviabilizado slogan de campanha “Mantenha a América Grande de Novo”, por um mais apropriado ao momento, “Reabra a América de Novo”, que soa como música aos ouvidos dos fanáticos, dos desavisados e dos especuladores, e que parece uma tábua de salvação para donos de pequenos negócios.
BLITZ CONTRA A CHINA
Em paralelo, Trump e seu fiel escudeiro, o ex-diretor da CIA, Mike Pompeo, fazem uma blitzkrieg contra a China, acusando-a desde ter “fabricado o vírus em laboratório” – o que já foi refutado pela OMS – e até de ter “deixado” a epidemia atingir o mundo.
Além de precisar desviar a atenção do povo norte-americano da responsabilidade dele na propagação da pandemia, pela incompetência e obscurantismo nas semanas iniciais (só uma “gripe”), já extensamente demonstrada pelos principais jornais, o atual inquilino da Casa Branca tem ainda o problemaço de que presidente dos EUA algum, nas últimas décadas, foi reeleito com o país sob recessão.
ROLETA IANQUE
Como assinalou o NYT, cerca da metade dos Estados começou a reabrir a economia em algum modo significativo, o que em muitos casos está ocorrendo apesar de os novos casos registrados continuem aumentando ou ainda no platô.
Contudo, muitos dos estados mais populosos, incluindo Nova Iorque, Califórnia, Michigan e Illinois continuam sob quarentena.
Sobre a decisão que esses estados estão adotando de reabrir açodadamente, o infectologista Larry Chang, da Universidade Johns Hopkins, que é um centro de referência na pandemia nos EUA, foi bem direto. “É claramente uma decisão do tipo vida ou morte”, assinalou. “Se você fizer isso de forma errada, muito mais gente irá morrer. É simples assim”.
Entre os que assumiram como política menosprezar o distanciamento social estão Geórgia, Oklahoma, Carolina do Sul, Alabama, Maine, Tennssee, Iowa, Flórida, North Dakota, Wyoming, Indiana, Kansas, Missouri, Nebraska e Virginia Ocidental.
Mas talvez ninguém tenha conseguido superar o governador republicano do Texas, Greg Abbott, que autorizou a reabertura de lojas, restaurantes, cinemas e shoppings com 25% da capacidade, no dia em que o Estado bateu o recorde de mortos.
No caso da Geórgia, chegou-se ao ridículo de Trump encenar ser contra, dizendo que era demais reabrir “estúdios de tatuagem e spas”.
Assim, com a bênção de Trump, as arruaças convenientemente aplainaram o terreno para a roleta ianque de Trump, com as vidas de norte-americanos.
Com milhões sem conseguirem receber o seguro-desemprego ou sendo informados de que o cheque de US$ 500 por filho só chega no ano que vem, é enorme a pressão sobre os trabalhadores para que retornem ao serviço sem as devidas condições de segurança e higiene e à mercê de contágio.
No Congresso, está em disputa a proposta republicana de fazer uma lei para isentar de qualquer responsabilidade as empresas caso um empregado morra de Covid-19 na volta ao serviço. Também o Departamento do Trabalho de Trump está anunciando que vai cortar o seguro-desemprego de quem não retornar.
BUMERANGUE
Na semana passada, o diretor do Instituto Nacional de Doenças Infecciosas e Alergia, e principal especialista do país, Dr. Anthony Fauci, voltou a advertir aos estados que era preciso proceder com cautela ao levantar as restrições.
“Quando você reativa, haverá casos [de Covid-19], e o que nós precisamos fazer é ter certeza de que os estados terão a capacidade para identificar, isolar e rastrear contatos de cada doente”, enfatizou.
Fauci também reiteradamente alertou sobre o risco de uma “segunda onda” da Covid-19 no outono e inverno, ainda mais brutal. Mesma preocupação de Robert Redfield, que encabeça os CCD.
Chang, da Johns Hopkins, sublinhou que a reabertura “não é uma estrada de mão única”. “Se houver um repique nos casos, você precisa restringir de novo”.
Ele observou que o fato que permanece é que “a vasta maioria dos americanos não foi exposta ao vírus, não há imunidade, e as condições iniciais que permitiram esse vírus se espraiar rapidamente pela América realmente não mudaram”.
O Dr. Fauci, após observar que vários estados estavam simplesmente saltando por cima das orientações da força-tarefa contra a Covid-19, disse a CNN que poderia haver uma onda de novos casos nos estados que reabriram cedo demais, e surtos em locais de alto risco, como asilos de idosos, prisões e fábricas. Para o infectologista, alguns governadores “estavam apostando na sorte”. “Eu espero que eles consigam dar conta de qualquer repique que vejam”.