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“E o poder público promete e nada acontece. Estamos à mercê da nossa sorte”, disse o comerciante que teve a loja saqueada na Santa Ifigênia
“Fizeram isso em 5 minutos. [A polícia] Demorou uma hora ou mais [pra chegar]. E não tem uma viatura… Tivemos o caso de um vizinho que viu acontecer, chamou a guarda, a GCM. E disseram que é caso da PM, pra ligar pro 190”, criticou o lojista José Carlos de Souza. O comerciante teve a sua loja saqueada por usuários de drogas da região da Santa Ifigênia, área central da capital paulista, na madrugada de sábado (27).
O comerciante, que já fechou outras três lojas de sua propriedade no centro da cidade, diz terá que terá que fechar a atual por falta de condições financeiras. “A loja está sendo encerrada. Me levaram mais de R$ 300 mil da loja. A gente já vem sofrendo, há vários anos, não é de agora”, diz. “E o poder público promete e nada acontece. Estamos à mercê da nossa sorte”, declarou ao portal G1.
Imagens do circuito de monitoramento de um estabelecimento comercial na Rua Santa Ifigênia flagraram na madrugada de sábado para domingo um grupo de usuários da Cracolândia invadindo a loja, que comercializa câmeras de segurança. Foram levados itens como câmeras, gravadores digitais de vídeo, cabos, fontes, conectores, estabilizadores e no-breaks.
Acionados, policiais da 2ª companhia do 7º BPM chegaram ao local do furto às 6h13. Segundo a PM, a ocorrência foi encaminhada ao 2º Distrito Policial (Bom Retiro). Ainda de acordo com a PM, o proprietário teria afirmado aos policiais que faria posteriormente um boletim de ocorrência a respeito do caso e foi dispensada a perícia
Esse tipo de ocorrência praticada por usuários de drogas vem se repetindo na região. Em novembro último, por exemplo, uma loja na Rua do Triunfo foi invadida e os responsáveis pelo saque portavam até carrinhos de compras para carregar notebooks, alto-falantes automotivos e caixas de som.
A região do 3º DP (Campos Elíseos), onde fica a Cracolândia, registrou 6.199 roubos ao longo do ano passado, média de 17 por dia, com 11.092 furtos, cerca de 30 por dia.
EMPURRA-EMPURRA
A prefeitura de São Paulo e o governo do Estado, há mais de um ano, tentam dispersar as pessoas em situação de rua da chamada Cracolândia. A intenção é mudar a concentração sem discutir as ações com a população, o que tem se mostrado uma estratégia fracassada para solucionar os problemas decorrentes dessa situação.
“Ao contrário disso, os resultados dessa insistência são a violação de direitos de quem vive nas calçadas e a uma escalada de insegurança, piorando a vida de moradores, comerciantes e de todos que circulam pela região da Luz, Santa Ifigênia e Campos Elíseos”. A análise é de Aluízio Marino, pós doutorando pela FAU/USP e coordenador do LabCidad, e Renato Abramowicz Santos, doutorando pela FFCLCH – USP e pesquisador do LabCidade, em artigo publicado no portal https://www.labcidade.fau.usp.br. O LabCidade é uma unidade de pesquisa e extensão da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU), atualmente coordenado pela urbanista Raquel Rolnik, entre outros.
“Esse jogo de ‘empurra-empurra’ faz com que os próprios moradores tenham que tomar a iniciativa: foi o caso da ocupação Mauá, que, – após duas noites de transtornos com dificuldades para dormir, acessar suas residências e com agentes da GCM interrogando e interditando sua livre circulação nas imediações de onde vivem desde 2007 –, organizaram uma barreira humana, impedindo que o fluxo ali se concentrasse”, continua o texto.
Sem medidas efetivas para enfrentar a situação, o poder público se exime da responsabilidade e joga o dilema no colo da população. “A prefeitura e o governo do estado de São Paulo são responsáveis por essa situação, quando o único recurso e estratégia empregados são a violência na dispersão e deslocamento incessante das cenas de uso, sem garantir uma estrutura adequada de cuidado e apoio”, apontam os pesquisadores.
AUMENTO DA POPULAÇÃO DE RUA
Levantamento do Observatório Polos de Cidadania da Universidade Federal Minas Gerais (UFMG) mostra que o número de pessoas sem teto na cidade de São Paulo apenas entre maio de e junho de 2023 passou de 52,1 para pouco mais de 53,4 mil. No país, o número passou de 215 mil nesse período. A base de dados é o Cadastro Único (CadÚnico).
Uma auditoria do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM) constatou que, apesar desse aumento, o orçamento e as ações da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads) não evoluíram na mesma medida.
Além da falta de vagas em abrigos para acolher os sem-teto, há precariedade naqueles existentes. Uma auditoria realizada em dez dessas unidades administradas por organizações parceiras detectou falhas na infraestrutura dos espaços. Problemas que comprometem a segurança e dignidade dos acolhidos, como infiltrações, mofo e ventilação inadequada.
O padre Julio Lancelotti, que atua em defesa da população vulnerável de São Paulo, critica a desenfreada especulação imobiliária da cidade. “Mais importante que a educação, que a saúde”.
“Numa cidade como São Paulo, por exemplo, a especulação imobiliária domina. Os interesses do mercado imobiliário são dominantes. O mercado imobiliário é mais importante que a educação, que a saúde”, diz. “As legislações podem fazer parte de um caminho histórico que vai corrigindo e construindo novas propostas, mas nenhuma legislação por si só muda o sistema neoliberal”, finaliza.
FALTA DE MORADIA
Enquanto o problema se alastra, o déficit de moradia na cidade de São Paulo dispara. Censo do IBGE indica que há 588.978 unidades sem moradores, o que representa quase 12% dos imóveis particulares da capital. Em 12 anos, entre 2010 e 2022, esse número quase dobrou. O Prefeito Ricardo Nunes (MDB) estima a carência de domicílios em pelo menos 400 mil.
Segundo o estudo, havia 588.978 casas ou apartamentos considerados vagos em 2023, número que era de 290.317 em 2010 – crescimento de 103%. Domicílio vago na definição do IBGE é aquele que não tinha morador na data do recenseamento (mesmo que tenha sido ocupado posteriormente).
A capital paulista possui 4.983.471 imóveis particulares, conforme o Censo 2022. As unidades vagas representam 11,8% do total. O mapeamento divide os tipos de domicílios particulares em permanentes ocupados e não ocupados. Ainda separa em ocupados com entrevistas feitas e não feitas pelos recenseadores.
“No centro, a demanda por moradia vem de pessoas que vivem em ocupações de movimentos sociais, da população em situação de rua e de pessoas que foram desabrigadas, principalmente depois da pandemia”, diz Ana Gabriela Akaishi, doutora pela FAU/USP, enquanto aponta o grande déficit de políticas públicas para atender esta população.
O estudo realizado por ela e atualizado em março de 2023, analisou os perfis dos donos de imóveis ociosos no centro de São Paulo. Um imóvel ocioso é aquele que está desocupado, inativo ou subutilizado, sem cumprir sua função social, como determina a Constituição. A Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (Smule) de São Paulo estima que 881 imóveis estejam nesta condição apenas no distrito da Sé.
O levantamento mostrou que 74% dos analisados são herdeiros rentistas e instituições religiosas, chamados pela urbanista de “o arcaico setor proprietário rentista imobiliário”. “Esses proprietários carregam raízes históricas e geracionais vinculadas a capitais familiares antigos de caráter mercantil, que aplicavam inicialmente em prédios de aluguel no momento em que o centro de São Paulo estava em um boom no processo de verticalização”, explica a pesquisadora.
“Temos quase 3 milhões de pessoas vivendo em aglomerados como favelas, loteamentos precários e moradias irregulares, principalmente nas periferias. E essas pessoas têm que se deslocar diariamente por horas até o seu local de trabalho, que geralmente é nas áreas centrais.”
Paralelamente, no centro, estão prédios fechados e em ruínas, terrenos baldios e construções abandonadas sendo usados como estacionamentos rotativos. “Em todos esses casos temos a subutilização da terra urbana num dos lugares com a melhor estrutura na cidade”, pontua Gabriela.