O médico oncologista Nelson Teich ficou à frente do Ministério da Saúde apenas 29 dias, entre abril e maio do ano passado. Na CPI, ele afirmou também que percebeu que não teria autonomia à frente da pasta e pediu para deixar o ministério
A “ampliação do uso da cloroquina” para tratar pacientes com a doença. Foi o estopim que, segundo o ex-ministro da Saúde, Nelson Teich, o fez pedir demissão da pasta. Ele afirmou ainda que percebeu que não teria autonomia para atuar à frente do ministério, em depoimento na quarta-feira (5) na CPI da Covid-19.
“As razões da minha saída do ministério são públicas, elas [essas] se devem basicamente à constatação de que eu não teria autonomia e liderança que imaginava indispensáveis ao exercício do cargo. Essa falta de autonomia ficou mais evidente em relação às divergências com o governo quanto à eficácia e extensão do uso do medicamento cloroquina para o tratamento da Covid-19, enquanto minha convicção pessoal, baseada nos estudos, que naquele momento não existia evidência de sua eficácia para liberar”, afirmou.
“O pedido específico [de demissão] foi pelo desejo [do governo] de ampliação do uso de cloroquina. Esse era o problema pontual. Mas isso refletia uma falta de autonomia e uma falta de liderança”, completou Teich.
A cloroquina não tem eficácia para tratamento da Covid, de acordo com estudos científicos. Mas desde o início da pandemia, contrariando a ciência e a orientação de muitos especialistas, o presidente Jair Bolsonaro insiste em estimular o uso do medicamento para tratar a virose, que já consumiu, oficialmente, as vidas de quase 413 mil brasileiros.
O ex-ministro da Saúde afirmou na CPI da Covid que “tendo uma estratégia mais focada em vacina, provavelmente teríamos tido mais vacinas”, o que não foi o caso do governo Bolsonaro.
Teich ainda rebateu a tese de Bolsonaro sobre a imunidade de rebanho. Em vez do distanciamento, da quarentena, Bolsonaro dizia que todos deveriam se contaminar para adquirir a tal imunidade de rebanho. “A tese de imunidade de rebanho onde você adquire imunidade através do contato, e não da vacina, é um erro. A imunidade você vai ter através da vacina, não através de pessoas sendo infectadas. Isso não é um conceito correto. Além disso, você teve muito mais casos do que o sistema pode receber […] A imunidade de rebanho, através de infecções, não. Isso é um erro”, declarou.
Teich ficou 29 dias à frente do ministério, entre abril e maio do ano passado. Assim como seu antecessor na pasta, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, ouvido na terça-feira na CPI, ele deixou o governo por divergência com o presidente Jair Bolsonaro.
PRODUÇÃO DE CLOROQUINA
O relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL), perguntou se Teich sabia da produção de cloroquina pelo Exército. Teich respondeu que não sabia e que não foi um assunto que chegou a ele. Este tem sido o ponto de inflexão entre a ação do presidente da República, em particular, e o que os especialistas recomendam para o combate eficaz da Covid-19.
“Eu acho que é uma postura inadequada, porque ela [esta] pode estimular o uso de um remédio que a gente não tem comprovação, em condições que o paciente pode estar mais exposto a não ter os cuidados necessários para o uso do medicamento. Então a minha posição é contrária”, pontou Teich sobre a postura, por exemplo, do CFM sobre cloroquina.
Inicialmente, Teich seria ouvido na terça-feira, após Mandetta, mas o depoimento foi remarcado. Durante a sessão, os parlamentares também adiaram, para o próximo dia 19, o comparecimento de Eduardo Pazuello, marcado para esta quarta-feira.
O general do Exército pediu para não comparecer porque disse ter tido contato com pessoas que contraíram a Covid. Por isso, o adiamento para daqui a 14 dias.
Teich foi à CPI na condição de testemunha, quando há o compromisso de dizer a verdade sob o risco de incorrer no crime de falso testemunho.
PAZUELLO ERA O HOMEM DE BOLSONARO NA SAÚDE
O relator da CPI também quis saber sobre as circunstâncias da nomeação de Eduardo Pazuello para secretário-executivo do ministério na gestão de Teich. Pazuello é general da ativa do Exército e, após a saída de Teich, se tornou ministro. Diferente dos antecessores, Pazuello não contrariou Bolsonaro sobre temas como cloroquina e isolamento social.
Ao contrário. Assentiu às práticas orientadas pelo presidente da República, contra as adoções de medidas restritivas de circulação. Como a que ocorreu recentemente em shopping em Manaus (AM).
“Ele [Pazuello] foi indicado para mim pelo presidente […] Embora ele não tivesse experiência em saúde, eu contava que sob a minha orientação ele executasse de forma adequada o que fosse definido na minha estratégia de planejamento”, disse o ex-ministro.
“Eu conversei com ele, ouvi o que ele tinha para falar, da experiência dele e me pareceu que, naquele momento, quando eu precisava ter uma agilidade muito grande na parte de distribuição, me pareceu que ele poderia atuar bem. Nós trabalhamos juntos ali ao longo do período, eu definia as coisas que deveriam ser feitas e ele ia executando o que eu falava. Quem definia era eu. Quem trabalhava a estratégia era eu. Na posição de ministro, eu acho que seria mais adequado um conhecimento maior sobre gestão em saúde”, disse.
FALTA DE OBJETIVIDADE
O presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), criticou as respostas do ex-ministro durante depoimento na comissão. Para Aziz, algumas declarações não eram “nada objetivas”. Ele perdeu a paciência quando Teich se recusou a avaliar a postura de médicos que estão indicando medicamentos sem eficácia científica comprovada para pacientes de Covid-19.
“O ex-ministro Teich está levando a comissão com algo nada objetivo. Dizendo que teve intervenção, mas não sabe quem interviu [sic]. Então fica difícil para gente. E ele está sob juramento aqui”, afirmou o presidente da CPI.
“GESTÃO EM SAÚDE”
Questionado pelo relator sobre as credenciais de Pazuello para assumir o ministério, Teich respondeu que seria “mais adequado” que seu sucessor tivesse mais conhecimento em gestão de saúde.
“Na posição de ministro, acho que seria mais adequado um conhecimento maior sobre gestão em saúde”, afirmou Teich.
M. V.
Leia trechos do depoimento de Teich na CPI:
- “Tendo uma estratégia mais focada em vacina, provavelmente teríamos tido mais vacinas”.
- “A tese de imunidade de rebanho onde você adquire imunidade através do contato, e não da vacina, é um erro. A imunidade você vai ter através da vacina, não através de pessoas sendo infectadas. Isso não é um conceito correto. Além disso, você teve muito mais casos do que o sistema pode receber […] A imunidade de rebanho, através de infecções, não. Isso é um erro”.
- “As razões da minha saída do ministério são públicas, elas se devem basicamente à constatação de que eu não teria autonomia e liderança que imaginava indispensáveis ao exercício do cargo. Essa falta de autonomia ficou mais evidente em relação às divergências com o governo quanto à eficácia e extensão do uso do medicamento cloroquina para o tratamento da Covid-19. Existia um entendimento diferente por parte do presidente, que era amparado por outros profissionais. E isso foi o que motivou a minha saída. Sem a liberdade para conduzir o ministério, optei por deixar o cargo”.
- “… Percebi ao longo daquele período que eu não teria a autonomia necessária para conduzir da forma mais correta. O pedido (de demissão) foi por causa do pedido de ampliação do uso da cloroquina. Era um problema pontual, mas isso refletia numa falta de liderança”.
- “Naquela semana teve uma fala do presidente, na saída da Alvorada, que ele fala que o ministro tem que estar afinado e cita o meu nome. Na véspera, pelo que vi, teve uma reunião com empresários onde ele fala que o medicamento (a cloroquina) será expandido. À noite tem uma live, onde ele coloca que espera que no dia seguinte vá acontecer isso, que vai ter uma expansão do uso. E no dia seguinte eu peço a minha exoneração”.
- “Na minha função como ministro, tendo autonomia, obviamente eu iria trabalhar o distanciamento, todos os mecanismos de proteção. O presidente podia ter as atitudes dele, mas a minha postura seria buscar tudo o que fosse importante para a sociedade. A ideia era que a gente tivesse um programa nacional, uma conduta homogênea.“
- “Foi um assunto que não chegou a mim, a produção da cloroquina. Eu não participei disso. Se aconteceu alguma coisa, foi fora do meu conhecimento. Ali eu tinha uma posição muito clara em relação não só sobre a cloroquina, mas a qualquer medicamento. Não fui consultado”.
- “(A recomendação da cloroquina) é uma conduta que para mim, tecnicamente, era inadequada. Isso é para qualquer medicamento. Existe uma metodologia para você incorporar um medicamento”.
- “Enquanto a cloroquina era estudada e que você não sabia o resultado, não sabia se era benéfica ou não, você está numa situação de dúvida. A partir do instante em que você tem o resultado, eu colocaria o uso como errado. Porque você tem um dado que mostra que aquilo não funciona. São dois momentos distintos: um até ter a informação e um depois dela”.
- “(Pazuello) foi indicado pelo presidente. Eu conversei com ele, ouvi o que ele tinha para falar, da experiência dele e me pareceu que, naquele momento, quando eu precisava ter uma agilidade muito grande na parte de distribuição, me pareceu que ele poderia atuar bem. Nós trabalhamos juntos ali ao longo do período, eu definia as coisas que deveriam ser feitas e ele ia executando o que eu falava. Quem definia era eu. Quem trabalhava a estratégia era eu. Na posição de ministro, eu acho que seria mais adequado um conhecimento maior sobre gestão em saúde”.
- “Esse plano (de distanciamento) fazia parte de um programa de controlar a transmissão. Quando a gente olha os países que tiveram sucesso, eles controlaram a transmissão. Esse projeto foi feito justamente para que a gente começasse uma discussão sobre estratégias de distanciamentos. Era um programa pra gente começar a entender melhor. Hoje os distanciamentos ocorrem quando a cidade fica numa situação muito crítica, você tem sobrecarga dos hospitais, de UTIs. E a gente não aprende com o que a gente está fazendo. O ideal, quando você faz qualquer medida de distanciamento, que você tente entender qual é o impacto daquilo que você está fazendo.”