Na última terça-feira (29), a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados concluiu a análise do projeto de lei (PL 490/2007) que altera o Estatuto do Índio e que dificulta a demarcação de terras indígenas.
Todos os destaques apresentados para alterar o relatório do deputado Arthur Maia (DEM-BA) foram rejeitados pela comissão nesta terça. Agora, o projeto de lei segue para apreciação no plenário da Câmara. Se aprovado, o texto vai ao Senado.
A CCJ, dirigida atualmente pela bolsonarista Carla Zambeli (PSL-SP) entendeu que a matéria que, entre outros pontos, flexibiliza o uso de terras pelas comunidades indígenas e permite à União retomar áreas reservadas em caso de alterações de traços da comunidade, está de acordo com a Constituição.
Já o mérito (o conteúdo do projeto) foi debatido em outras comissões. A proposta já foi rejeitada pela Comissão de Direitos Humanos e aprovada pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural.
O texto neste caso cria um “marco temporal” para as terras consideradas “tradicionalmente ocupadas por indígenas”, exigindo a presença física dos índios em 5 de outubro de 1988; permite contrato de cooperação entre índios e não índios para atividades econômicas e; possibilita contato com povos isolados “para intermediar ação estatal de utilidade pública”.
NOTA TÉCNICA DA APIB
Em manifesto contra o PL 490, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) disse em nota técnica que essa lei e esses projetos aos indígenas ameaçam os direitos indígenas.
“Esses projetos genocidas e ecocidas se utilizam da pandemia de covid-19 como cortina de fumaça, fazendo aumentar a violência contra povos indígenas, e os conflitos em nossos territórios, inclusive entre parentes. Esses conflitos são alimentados pelo Governo com objetivo de dividir, enfraquecer e desmobilizar os nossos povos, organizações e lideranças. Saibam que não deixaremos essa estratégia nos sobrepujar!”, diz.
Dentre as questões apuradas no texto aprovado pela CCJ, a Apib diz que um ponto que merece atenção é o que diz respeito à justificativa que fundamenta o teor do substitutivo do PL 490, que traz como embasamento uma “suposta lapidação” do regime jurídico constitucional das terras indígenas, tanto por parte do Poder Judiciário, como pelo Poder Executivo.
“Nesse sentido, busca-se fazer crer que o Supremo Tribunal Federal já teria jurisprudência consolidada sobre a matéria de demarcação de terras indígenas, citando a súmula 650, o acórdão da Pet.3.388/RR (caso da TI Raposa Serra do Sol) e demais julgados em que foram aplicados excertos destacados do referido acórdão: o marco temporal de ocupação (teoria do fato indígena), o renitente esbulho e as 19 condicionantes. Ademais, afirma que tais critérios também já estariam “consolidados” em razão do Poder Executivo ter aprovado pelo Presidente da República o Parecer nº GMF-05 da AGU, com força normativa, nos termos do §1º do artigo 40 da Lei Complementar nº 73/93, que por sua vez adotou o Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU, o qual vincula a Administração Pública Federal, direta e indireta, a observar, respeitar e dar efetivo cumprimento, em todos os processos de demarcação de terras indígenas, às condições fixadas na decisão do STF na Pet. 3.388/RR”, diz um trecho da nota técnica.
Logo, a Apib diz que é diante disso que o deputado Arthur Maia finaliza a justificativa do substitutivo afirmando que “é imprescindível que o poder legislativo consolide o entendimento jurisprudencial do STF e da AGU/Presidência da República sobre o regime jurídico constitucional demarcatório de terras indígenas do art. 231 da CF/88 em lei ordinária”.
Também ocorre que o substitutivo ao PL 490/2007 é flagrantemente inconstitucional na visão da entidade, tanto no aspecto formal como material, haja vista a afronta aos parâmetros constitucionais que regulamentam o processo legislativo, bem como a pretensão de alterar substancialmente, por meio de lei ordinária, os direitos territoriais reconhecidos aos povos indígenas na Constituição.
“O imperativo constitucional disposto no art. 60, §4º é o que deve prevalecer em face da potente ameaça que traz o PL 490/2007 a pilares que são caros ao Estado Democrático de Direito: a separação dos Poderes, os direitos e as garantias individuais, e os direitos reconhecidos aos povos indígenas”, diz.
“No largo desses quase 33 anos de promulgação da Constituição Federal de 1988, não restam dúvidas de que os direitos ali reconhecidos aos povos indígenas são também cláusulas pétreas e, como tais, gozam de máxima proteção à luz dos princípios da vedação ao retrocesso e à proibição da proteção deficiente de seus direitos. Esse entendimento foi reafirmado em voto recente proferido pelo Ministro Edson Fachin do STF, no julgamento do processo em repercussão geral no qual é relator”, continua.
A Apib também ressalta que “quanto à tese do marco temporal de ocupação das terras indígenas, embora tenha sido apresentada como um critério objetivo para aferir a ocupação indígena na área objeto da ação (a TI Raposa Serra do Sol – Pet. 3.388), tal tese nem sequer foi aplicada para o deslinde desta controvérsia! Pois, caso contrário, a demarcação daquela TI teria se dado de maneira descontínua (em ilhas) e não teria sido reconhecida a constitucionalidade da sua demarcação, o que não ocorreu”.
Já em relação às 19 condicionantes deste caso, em especial a de número 17 (“é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada”), estas serviram apenas para viabilizar a autoexecutoriedade do que foi decidido no bojo da Pet. 3.388/RR.
Acrescenta-se ainda para a entidade que a matéria em discussão no Legislativo através do PL 490/2007, que visa regulamentar o regime jurídico das terras indígenas, possui total relação com a pauta que ainda está em trâmite no STF, no processo em repercussão geral (RE 1.017365/SC) sob o Tema 1.031, no qual pretende-se firmar tese sobre a “Definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional”.
Portanto, vê-se que a tramitação no Poder Legislativo de um PL que trata do mesmo tema em discussão no Judiciário como repercussão geral, no mínimo deveria levar em consideração o fato de que, uma vez que há um processo cuja tramitação carrega tal status paradigmático, isto torna evidente, por si só, que não há um entendimento “consolidado” por parte do STF sobre a matéria em comento, o que só poderá ser afirmado após o julgamento de mérito. Assim, verifica-se que a justificativa e a fundamentação que norteiam os objetivos do PL 490/2007 não subsistem.
Outro ponto a ser observado, e que demonstra mais uma ilegalidade e violação aos direitos dos povos indígenas que permeiam a tramitação do PL 490, é o desrespeito às normativas internacionais das quais o Brasil é signatário e que ampliam a esfera de proteção aos direitos reconhecidos aos povos indígenas no ordenamento jurídico pátrio (Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Convenção nº 169 da OIT).
“Ocorre que além de inconstitucional (quanto à forma e matéria), o PL 490 é também inconvencional, pois em nenhum momento ao longo da sua tramitação foi oportunizado aos povos indígenas o direito de serem consultados a despeito de tal medida legislativa, conforme assegura o art. 6º da Convenção 169 da OIT, que também é norma interna”, diz um trecho da nota.
A Apib conclui que por restar nítida a inconstitucionalidade do PL 490/2007 sob o ponto de vista formal e material, bem como a sua inconvencionalidade por violar o direito de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas e, ainda, a sua contrariedade à hermenêutica jurídica constitucional do art. 231 da CF/1988, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB manifesta-se pela REJEIÇÃO e ARQUIVAMENTO do referido projeto de lei.
Veja a nota técnica na íntegra:
https://apiboficial.org/files/2021/06/NOTA-DA-APIB-PL-490.pdf