As novas e reveladoras denúncias sobre as negociatas envolvendo comercialização de vacinas em plena pandemia, engendradas no próprio Ministério da Saúde do governo, deixaram, literalmente, Bolsonaro entre a cruz e a espada.
O presidente encontra-se nitidamente atordoado com as novas denúncias, recorrendo, como sempre, às agressões gratuitas e desesperadas, ora dirigidas à imprensa, ora à oposição ou à maioria da CPI do Senado.
Seu comportamento sistematicamente histérico é compreensível.
Afinal, o principal personagem, como se sabia, tornando-se explícito após o depoimento dos irmãos Miranda na CPI da Covid-19, das nebulosas transações que pouco a pouco vão se tornando públicas é, nada mais, nada menos, que o seu líder na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros, não por acaso, ex-ministro da Saúde.
Barros, além de líder, exerce forte influência no chamado Centrão, fundamental, hoje, para a sustentação de um governo em processo de deterioração social, agravado pela condução desastrosa da pandemia e da economia, e acelerado, agora, pelas denúncias de corrupção que desnudam a hipocrisia bolsonarista de que a atual gestão, nesse quesito, seria diferente das que o antecederam.
O assalto ao erário público, por si só, já é um câncer abominado pela sociedade, quanto mais o praticado no terreno da saúde que impediu ou retardou que os imunizantes disponíveis mundialmente chegassem aos braços dos brasileiros ameaçados pela Covid-19.
Trata-se da corrupção que ajudou a matar, certamente, milhares de homens e mulheres cujas vidas teriam sido poupadas se as vacinas chegassem antes.
Hoje, sabemos que a Pfizer não chegou a tempo, conforme demonstrou o diretor-geral na América Latina, Carlos Murilo, em depoimento à CPI, porque o governo ignorou as inúmeras propostas da empresa, priorizando a cloroquina, mas também por um outro motivo subjacente: o desinteresse na comercialização de uma vacina sobre a qual seria improvável um acerto paralelo.
Hoje, sabemos, também, que a AstraZeneca poderia ter chegado antes e em mais quantidades se o diretor de Logística da Saúde, Roberto Ferreira Dias, outro apadrinhado por Barros, não tivesse condicionado a aquisição do imunizante a um “acordo” pelo qual cada dose deveria custar mais um dólar, conforme denúncia feita por um representante comercial da empresa, Luiz Paulo Dominguetti Pereira, que depôs nesta quinta (1º) na comissão de inquérito.
A partir do depoimento do chefe da divisão de importação do Ministério, Luís Ricardo Miranda, foi possível conhecer a teia de movimentos de Barros e de seus tentáculos na Saúde, com pleno conhecimento de Bolsonaro, pelo menos desde o dia 20 de março – quando os irmãos Miranda relataram a ele os acontecimentos que envolveram a Covaxin: superfaturamento de preço com pagamento antecipado a empresa intermediária em paraíso fiscal. Por pouco, pouco mesmo, não fosse a pronta diligência do funcionário de carreira, a compra desse imunizante teria sangrado os cofres públicos, embora a fiscal do contrato para a aquisição da vacina, Regina Célia Silveira Oliveira, outra indicada pelo deputado, tenha autorizado a sua comercialização após a terceira versão da nota de importação (invoice).
As revelações da CPI, então restritas ao departamento das concepções sobre o enfrentamento da pandemia (vacina X cloroquina / ciência X negacionismo), concentram-se agora na investigação, entre outros delitos, dos crimes de corrupção, ativa e passiva, que foram praticados, mesmo não tendo havido, nos casos já conhecidos, a consumação do pagamento dos imunizantes.
A denúncia mais contundente, até o momento, é a que envolve a Covaxin, mas a Comissão, seguramente, não se surpreenderá, muito menos o povo brasileiro, se outra surgir nas apurações que estão em curso, pois, ao que tudo indica, os cofres da pasta da Saúde, durante a mais grave crise sanitária de nossa história, estiveram – ou estão, ainda – submetidos a uma verdadeira pilhagem, como revelam conversas embaladas em jantares em restaurantes chiques e bairros de luxo de Brasília – um escárnio à memória dos mais de meio milhão de brasileiros que perderam a vida nesse período e aos seus entes queridos.
Embora a CPI tenha um bom caminho pela frente, diante de inevitável prorrogação, a ser definida em agosto, as negociatas envolvendo os imunizantes que pouco a pouco vêm à tona jogam luz numa realidade até então um pouco sombria: sabia-se e sabe-se que Bolsonaro desdenhou da pandemia desde seu começo e execrou as vacinas, preferindo exercer o papel de garoto-propaganda do tratamento precoce, em razão de sua visão obscurantista e negacionista, entre outras razões inconfessáveis. Todavia, frente à inevitabilidade da imunização em massa da população – forçada pelas pressões internas e externas, os fatos demonstram que o presidente desprezou os imunizantes sobre os quais era impraticável qualquer negócio espúrio, passando a aceitar aqueles que poderiam ser objeto de negociatas. Coincidência?
Assim, estabeleceu um casamento perfeito com um dos principais representantes do Centrão no Congresso Nacional, ao reforçar sua base parlamentar a partir de interesses muito definidos, no caso, os fincados naquele que passou a ser, desde o início da pandemia, no principal e mais abastecido ministério do governo.
Portanto, o mais crível, diante das novas denúncias e do rearranjo pretérito da base parlamentar de Bolsonaro, é que a movimentação de Barros, na Saúde, não apenas era do conhecimento do presidente, como tinha o seu apoio tácito.
Novos elementos deverão confirmar essa assertiva, o que deixará Bolsonaro, cada vez mais, numa encruzilhada, bem como mais agressivo e destemperado, diante da crescente necessidade de buscar a blindagem no Parlamento para evitar a abertura de um processo de impeachment, cujo apoio social e político se amplia a cada dia, impulsionado pelas crescentes manifestações populares.
Os próximos capítulos da CPI e da rua serão decisivos para selar o destino do (des)governo mais abominoso aos interesses do povo e da Pátria de nossa história.
Que sejam também implacáveis para livrar o país, o quanto antes, da tragédia representada por Bolsonaro e seu governo precocemente apodrecido.
MAC