Primeira mulher a ocupar o posto de procuradora-geral da República, o mais alto do Ministério Público Federal, Raquel Dodge encerrou seu mandato na terça-feira, 17, e além da denúncia no caso Marielle e Anderson ela encaminhou ao Supremo Tribunal Federal (STF), seis pedidos de declarações de inconstitucionalidade de decretos assinados por Bolsonaro.
Em outra frente, Raquel apresentou também três ações ao Supremo que contestam outras iniciativas do governo federal: o Escola sem Partido e mudanças promovidas nas composições dos conselhos nacionais do meio-ambiente (Conama) e dos direitos da criança e adolescente (Conanda).
A ex-procuradora geral da República também encaminhou ao STF pedido para que sejam suspensas as análises de pedidos que possam resultar em anulação de julgamentos da Lava Jato.
POSSE DE ARMAS
Para Dodge, as alterações nas regras de posse e porte de armas em decretos assinados por Bolsonaro afrontam “o princípio da separação dos poderes” e substituem o papel do Poder Legislativo “na tomada de decisão acerca da política pública sobre porte e posse de armas de fogo”. O parecer da procuradora foi encaminhado no âmbito de uma ação ajuizada pelo partido Rede Sustentabilidade em maio.
“A via adequada para a alteração e substituição de política pública sobre a comercialização, posse, porte de arma de fogo é a instauração de processo legislativo no âmbito do Congresso Nacional, locus destinado à deliberação democrática dos temas mais caros à ordem constitucional brasileira. Tanto é assim que tramitam nas Casas Legislativas inúmeros projetos de lei que objetivam a alteração do Estatuto do Desarmamento, inclusive um de autoria do Presidente da República”, observou a procuradora-geral.
Raquel foi nomeada em 2016, por Michel Temer (MDB), depois de ficar na segunda posição da lista tríplice preparada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), como sugestão para nortear a indicação do chefe do poder executivo.
O mandato de Raquel Dodge chegou ao fim na terça, após Bolsonaro decidir não reconduzir a procuradora para mais dois anos de mandato. Ele anunciou o subprocurador-geral da República Augusto Aras para sucedê-la. O nome de Aras, porém, ainda precisa ser aprovado pelo Senado.
EDUCAÇÃO
Em outra ação mirando um dos principais ataques de Bolsonaro contra a educação, o projeto Escola sem Partido, Raquel Dodge pediu que o Supremo conceda imediatamente uma liminar para suspender qualquer ato do Poder Público “que autorize ou promova a realização de vigilância e censura da atividade docente com base em vedações genéricas e vagas à doutrinação política e ideológica” e “à abordagem de questões relacionadas a gênero e sexualidade no ambiente escolar”.
“Não será esterilizando o processo educativo à reflexão e ao embate ideológicos que se obterão melhores resultados no desenvolvimento dos alunos. A veiculação de ideias contrárias à convicção de alunos, pais e responsáveis não gera, por si e automaticamente, nenhuma consequência indesejável, considerando a capacidade crítica dos alunos, a interação com os pais e as próprias características dos processos intelectuais. Entre a vedação apriorística de conteúdos e a liberdade de ensino, esta é preferível”, defendeu a procuradora.
CONSELHOS
Raquel Dodge também entrou com ação no Supremo contra um decreto de Bolsonaro que altera as regras de composição do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Bolsonaro cortou de 28 representantes para 18.
O governo também alterou o método de escolha das entidades representantes da sociedade civil, que agora serão escolhidos em processo seletivo elaborado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O decreto também proíbe a recondução dos representantes das entidades não governamentais.
“Como resultado dessas mudanças, o caráter democrático participativo do Conanda foi praticamente esvaziado, sendo que o órgão está sob risco de perder sua razão de ser enquanto fórum encarregado da elaboração de políticas voltadas para o público infanto-juvenil”, escreveu a então procuradora-geral da Repúbica.
Já no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), Dodge contesta a redução de 11 para 4 representantes de entidades ambientalistas com assento no colegiado e a diminuição de 2 anos para 1 ano no mandato das entidades ambientalistas.
“Como resultado dessas mudanças, o caráter democrático participativo do Conama foi praticamente esvaziado, sendo que o órgão está sob risco de perder sua razão de ser enquanto fórum encarregado da elaboração de políticas ambientais”, criticou.
“Como se vê, as mudanças afetaram de forma mais substancial a forma de representação do grupo da sociedade civil, cujos assentos sofreram redução de mais de 80% (de 22 para 4 vagas). Além dessa drástica redução, houve ainda uma profunda alteração na pluralidade representativa: representantes dos trabalhadores, da comunidade indígena, de populações tradicionais e da comunidade científica tiveram seus assentos extintos”, afirmou a procuradora.
LAVA-JATO
Dodge pediu ao STF que sejam suspensas as análises de pedidos que possam resultar em anulação de julgamentos da Lava Jato. Segundo ela, é preciso esperar que o plenário da corte delibere sobre a decisão da Segunda Turma que revogou na terça-feira (27), pela primeira vez, uma sentença do ex-juiz Sergio Moro.
“Em breve o órgão máximo do STF terá a oportunidade de se manifestar a respeito de tal tema. (…) Tais circunstâncias indicam a conveniência, a bem da segurança e estabilidade jurídicas, que nenhum pedido de reconhecimento de nulidade de condenação criminal, apresentado a essa Suprema Corte com base no entendimento firmado no julgamento da Segunda Turma ocorrido na sessão do dia 27 de agosto de 2019, seja apreciado”, diz a procuradora.
Ela afirma ainda que o pedido visa “evitar uma situação de incerteza e insegurança jurídica em centenas de condenações criminais” que seriam anuladas e, em seguida, revalidadas, na hipótese de o plenário do STF pronunciar-se em sentido diverso.
Na sessão, a turma do STF anulou a condenação de Moro por 3 votos a 1, tornando sem efeito a condenação de Aldemir Bendine, ex-presidente da Petrobrás e do Banco do Brasil, por corrupção e lavagem de dinheiro em uma ação ligada à Operação Lava Jato.
Os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia não julgaram o mérito das provas, isto é, se Bendine é culpado ou inocente, mas sim o rito processual, e por julgarem que o rito não respeitou o direito à ampla defesa na abertura de prazo para alegações finais simultaneamente para todos os réus, pediram a anulação.
O parecer de Dodge foi dado após habeas corpus apresentado pela defesa de Gerson de Mello Almada, ex-diretor da Engevix, que quer a extensão da decisão de terça para seu cliente.
A procuradora ainda se manifestou contrária ao pedido, que é relatado por Lewandowski.
MORO
Na quinta-feira (12), Raquel Dodge entrou com Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no STF contra a portaria editada pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, em julho, falando sobre “o impedimento de ingresso, a repatriação e a deportação sumária de pessoa perigosa ou que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal”.
Na época, a medida foi considerada uma ofensiva do governo contra o jornalista Glenn Greenwald, fundador do The Intercept Brasil, que divulga uma série de mensagens entre o ministro da Justiça e integrantes da força tarefa da Lava-jato no MP.
“A possibilidade de retirada de estrangeiro do território nacional fundamentada em mera suspeita de ser “pessoa perigosa” ou envolvimento em atos contrários aos objetivos e princípios constitucionais, sem a garantia de prazos processuais administrativos razoáveis, de acesso a informações e de comprovação mínima da culpa violam os preceitos fundamentais da ampla defesa, contraditório, devido processo legal e presunção de inocência”, argumentou Raquel Dodge, ao pedir suspensão imediata da portaria.