O desligamento de sete membros da força-tarefa da Operação Lava Jato em São Paulo – inclusive da coordenadora da Operação, a conceituada procuradora Janice Ascari – foi provocado pelas ações de Viviane de Oliveira Martinez, “procuradora natural” do 5º Ofício (ao qual pertence a Lava Jato de São Paulo) desde março, agindo sob as ordens de Augusto Aras, o procurador-geral de Bolsonaro.
Em ofício a Aras, os sete procuradores da Lava Jato de São Paulo alegam “incompatibilidades insolúveis com a atuação da procuradora natural dos feitos da referida Força-Tarefa, Dra. Viviane de Oliveira Martinez”.
Em outro ofício, dirigido a membros do Conselho Superior do Ministério Público Federal, os membros da força-tarefa de São Paulo, instalada em junho de 2017, relatam que, desde março deste ano, quando Viviane Martinez passou a ser “procuradora natural” – portanto, responsável pela representação judicial da Lava Jato em São Paulo -, as investigações sofreram por uma combinação de descaso e entraves, que acabaram por paralisá-las.
“Desde o início”, escrevem os procuradores da força-tarefa paulista da Lava Jato, “a Procuradora da República Viviane não teve qualquer iniciativa no sentido de chamar reuniões para compreender quais as linhas de investigação que vinham sendo conduzidas, de trabalhar no gabinete em que os demais integrantes da Força-Tarefa trabalham (e que conta com computador e mesa para tanto), e chegou mesmo a retirar parte da estrutura de servidores que existia, à época de sua antecessora, para auxiliar nos trabalhos da Lava Jato”.
Depois de uma lista das omissões da procuradora Viviane Martinez, os membros da Lava Jato passam aos entraves:
“… em dado momento a atual titular (…) passou a adotar ações que, na prática, foram criando obstáculos ao trabalho que vinha sendo desenvolvido.
“… em reunião realizada em abril deste ano, a Procuradora da República Viviane começou a mobilizar um discurso no sentido de que teria divergências quanto aos critérios de conexão que vinham sendo aplicados. E com isso, passou a opor resistência ao aprofundamento de investigações em curso, argumentando que lhes faltaria uma ‘conexão processual forte’.
“Os ora signatários consideraram inusitado que uma Procuradora com menos de dois meses de Força-Tarefa, e sem um forte engajamento com os casos, se colocasse como se já conhecesse em detalhes o complexo emaranhado de fatos sob responsabilidade da Lava Jato paulista, a ponto de dizer que investigações que se propunham não seriam conexas às que vinham sendo conduzidas.
“De qualquer forma, procuraram, diante disso, esclarecer à Procuradora Viviane que os casos em curso são todos imbricados, que envolvem modus operandi muito próximos e, não raro, os mesmos atores.
“Em suma, consignaram que as investigações que propunham eram conexas aos casos em andamento, e que, se ela não aceitasse que tais vínculos configuram conexão à luz do art. 76 do Código de Processo Penal, muito provavelmente nenhum dos grandes e complexos esquemas de corrupção e lavagem processados nos últimos anos sequer teria sido detectado.”
Porém, notam os procuradores da força-tarefa, a representante de Aras continuou a sabotagem às investigações. Seu próximo passo foram duas “propostas”, formuladas sem conhecimento mínimo do que já fora apurado pela força-tarefa em seus três anos de atuação:
“A primeira delas levaria, de fato, à paralisação de parte expressiva da atuação da Força-Tarefa, uma vez que passava pela vedação de instauração de novos procedimentos ou processos, assim como de adoção de novas medidas investigatórias ou processuais, inclusive acordos de colaboração premiada, até que fosse apresentado à nova titular um escopo de trabalho (que já existia, bastando que ela se debruçasse sobre os casos, efetivamente, para que viesse a conhecê-lo).
“Já a segunda [proposta] implicava o fim da responsabilidade da Procuradora Viviane em relação aos casos, pois passava pela colocação, por ela, de seu acervo [de casos e investigações] à disposição desta Força-Tarefa, ou mesmo da Procuradoria-Geral da República’, para que ele fosse livremente gerido” (grifo nosso).
Os procuradores que pediram desligamento frisam que, apesar de declarar que não acompanhava a Lava Jato “sequer pelos jornais”, Viviane Martinez passou “a enviar ofícios ao Procurador-Geral da República [isto é, o bolsonarista Augusto Aras], sustentando (…) que grande quantidade de feitos distribuída à Força-Tarefa não teria conexão com o 5º ofício [do qual ela era ‘procuradora natural’].
“Pegando carona em alegações improcedentes (…) a nova procuradora natural da Lava Jato de São Paulo passou a dizer que haveria uma ‘distribuição autônoma’ nesta Força-Tarefa, e que seria necessário realizar uma redistribuição de grande quantidade de casos – a seu ver – ‘não conexos’ com o acervo do 5º ofício, pois teriam sido remetidos a ele tão somente por virem, de outras unidades do Ministério Público, com a referência à ‘Lava Jato’”.
Não era, observam os procuradores da força-tarefa, uma divergência jurídica ou mesmo funcional, em que Viviane Martinez estivesse defendendo um novo “desenho” para o grupo de investigadores da Lava Jato paulista.
“Essa narrativa [de uma suposta divergência na condução das investigações] não explica por que, ao longo dos meses, a Procuradora da República Viviane ficou sem atuar em favor de qualquer dos casos da Lava Jato de São Paulo (vale dizer: sem produzir peças, realizar audiências e reuniões atinentes a feitos outros, que não os derivados de declínio, desmembramento e desdobramentos de outras Forças-Tarefas Lava Jato e do Grupo de Trabalho da PGR)…
A OBSTRUÇÃO
“… um evento, ocorrido na primeira quinzena de junho deste ano, mostrou que essa discussão sobre supostos vícios na distribuição dos feitos desta Força-Tarefa parecia decorrer, na realidade, de possível falta de compromisso da nova titular do 5º ofício com os complexos casos que estão sob sua responsabilidade.”
Esse evento foi o caso do senador José Serra, investigado pela força-tarefa da Operação Lava Jato em São Paulo.
“Ao longo do primeiro semestre de 2020, a Força-Tarefa Lava Jato de São Paulo vinha investigando o ex-governador José Serra, e amealhando elementos que denotavam a estruturação de um complexo esquema de lavagem de ativos em seu favor.
“Tal esquema era apurado no Procedimento Investigatório Criminal n° 1.34.001.009917/2018-63, e tinha íntima relação com diversos feitos de atribuição do 5º ofício, inserindo-se no contexto de ilicitudes praticadas nas obras do Rodoanel Sul.
“Cumprindo seu papel, esta Força-Tarefa organizou, nesse plano, numerosos pleitos investigatórios sujeitos a reserva de jurisdição (entre quebras de sigilos bancário, fiscal e telemático e buscas e apreensões), e as minutas respectivas foram sendo trocadas, seguindo prática comum a casos sensíveis, em um grupo de troca de mensagens, para que todos pudessem ler o que fosse produzido e, querendo, pudessem opinar a respeito, sugerir modificações etc.
“Nessa esteira, em 11/06/2020, sete peças com pleitos investigatórios foram concluídas, no Sistema Único, para assinatura de todos os integrantes desta Força-Tarefa, e posterior remessa à Justiça Federal, em favor de possível operação que, fartamente embasada em provas, atingia agentes da cúpula do então governo do estado de SP, e apuraria crimes praticados entre 2006 e, ao menos 2014.
“Surpreendentemente, contudo, apesar de não ter feito qualquer objeção à época das trocas de minutas, a Procuradora Viviane enviou um e-mail, em 12/06/2020, aos demais integrantes da Força-Tarefa, pedindo que as peças fossem recolhidas, e que a operação planejada fosse adiada (grifo nosso).
“Na ocasião, chamou atenção, entre outras coisas, o fato de que a nova titular do 5º ofício não apresentou qualquer razão jurídica para fundamentar o que pedia, seja em termos de divergência quanto ao cabimento da investigação, seja em termos de divergência quanto a distribuição do caso (grifo nosso).
“Ao revés, apenas argumentou que seria possível que, em agosto, a chamada Unidade Nacional Anticorrupção – UNAC fosse aprovada por esse Egrégio Conselho Superior do Ministério Público Federal, e que isso, a seu ver, poderia fazer com que o caso fosse retirado de sua responsabilidade.”
MÃO DE ARAS
A UNAC é o plano do bolsonarista Augusto Aras para controlar a Lava Jato, centralizando na Procuradoria Geral da República (PGR), em Brasília, todas as informações.
Assim, Bolsonaro, sua família, seus aliados ou subordinados, milicianos ou políticos, poderiam controlar as investigações contra eles, abafando o combate à corrupção, lavagem e outros crimes.
“Em outras palavras”, continuam os procuradores sobre o caso Serra, “a Procuradora Viviane considerou razoável postergar por quase dois meses o protocolo de pedidos investigatórios pertinentes a uma operação de relevo (a maior até então planejada pela Força-Tarefa Lava Jato de São Paulo) , apenas na expectativa (de duvidosa concretude, considerando os próprios termos do Anteprojeto que trata da UNAC) de uma decisão da cúpula da instituição fazer com que este caso deixasse de ser de sua atribuição” (grifo nosso).
Com isso, prosseguem os procuradores, ficou claro que a questão, para a procuradora Viviane, era impedir as investigações. Não se tratava de uma divergência em como elas deveriam ser feitas, mas de uma ação sistemática para asfixiá-las.
MONOCRACIA
Em seguida, Viviane Martinez, através de um simples e-mail, nomeou a si própria como distribuidora única dos casos da Lava Jato, mesmo tendo declarado o seu quase nenhum interesse pela Operação e “sem conhecer de forma minimamente satisfatória – por sua própria postura – o complexo conjunto de casos que tramita na Força-Tarefa”.
Tratou-se, dizem os procuradores, de uma auto-elevação “à condição de ‘distribuidora’ monocrática dos casos da Lava Jato, decidindo sobre o que guardaria e o que não guardaria conexão com eles, sem se preocupar sequer com os erros que poderia cometer, por falta de diálogo com os signatários, mandando à livre distribuição expedientes e feitos diversos”.
O que veio em seguida pareceu, aos membros da força-tarefa da Lava Jato em São Paulo, mais absurdo ainda:
“Mais ainda, chamou atenção o fato de que a Procuradora indicou que não queria que fossem mais instaurados novos feitos (…), e que não deveriam ser realizadas mais tratativas de acordos de colaboração premiada e de leniência, ‘antes de solucionar os crimes e ilícitos que já foram delatados’.
“Aparentemente, a nova titular nem sequer compreende o quão absurda é a condição de ‘zerar’ notícias de ilícitos, para somente então se poder adotar providências que, a rigor, devem se pautar apenas no interesse público que o caso representa, assim como em sua relevância e em sua oportunidade (tal como é feito por todos os órgãos com atribuição para casos desse tipo, desde as Forças-Tarefas até a própria Procuradoria-Geral da República)” (grifo nosso).
Porém, a “procuradora natural” ainda radicalizou sua posição, anunciando “com todas as letras” que concordaria com qualquer arquivamento de caso ou investigação, independente da sua importância ou do interesse público.
Viviane Martinez também anunciou que, se Aras aprovasse a UNAC no Conselho Superior do Ministério Público Federal, ela imediatamente entregaria os casos da Lava Jato de São Paulo.
SABOTAGEM
Na prática, o que aconteceu é relatado sucintamente pelos procuradores da força-tarefa:
“[A ação da representante de Aras] passou a gerar uma série de problemas, e declínios indevidos de documentos e feitos foram sendo realizados, pela Procuradora Viviane.
“Estes declínios, não comunicados ou discutidos, apenas vinham a ser descobertos quando estes signatários, ao procurarem um procedimento para juntar algum expediente ou realizar uma diligência, acabavam percebendo que casos haviam sido redistribuídos unilateralmente, ignorando-se fatores relevantes que ensejariam conexão com o acervo do 5º ofício (como investigados comuns, modus operandi comum, contas de offshore apuradas em outros feitos etc.).
“Este tipo de declínio monocrático passou a se repetir com cada vez maior frequência nas últimas semanas.
“Ora se alegava que se estaria diante de feito que havia sido distribuído à Força-Tarefa apenas pela menção à ‘Operação Lava Jato’, ora se alegava que se estaria diante de nova investigação que não guardaria conexão com os casos (…).
“Mais recentemente, até mesmo se passou a alegar que parte dos feitos expressamente indicados em Portaria da PGR como vinculados à Força-Tarefa Lava Jato de São Paulo não seria do 5º ofício [ao qual pertence a Lava Jato de São Paulo], mas sim do 18º ofício da Procuradoria da República em São Paulo/SP, abrindo-se assim mais um espaço para que novos declínios seguissem sendo feitos.
“Tudo isso, é importante registrar, passou a ser feito por alguém que nem sequer parece ter dedicado tempo suficientemente à compreensão adequada de seu acervo, dado que, no curto período de 05 meses em que esteve à frente do 5º ofício, em praticamente 02 deles a Procuradora Viviane ou esteve de férias, ou esteve cumulando suas atribuições ordinárias com a substituição de outros colegas, em ofícios vagos da unidade em que lotada”.
Os procuradores – Janice Ascari, Guilherme Göpfert, Lúcio Mauro Curado, Marília Iftim, Paloma Ramos, Thiago Lacerda Nobre, Yuri Corrêa da Luz – consideraram a situação insustentável.
Daí, o seu pedido de demissão da força-tarefa da Lava Jato de São Paulo.
C.L.