Ele chegou a afirmar que vai dobrar o investimento em fiscalização depois de reduzir seu valor ao menor índice dos últimos 20 anos
Quem ouviu o discurso de Jair Bolsonaro, nesta quinta-feira (22), na Cúpula de Líderes sobre o Clima, percebeu que ele teve dificuldades com o teleprompter e, em muitos momentos, demonstrava não saber exatamente do que estava falando. É compreensível. O script que lhe foi passado é completamente diferente do que ele, e seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, vêm fazendo.
DISSE QUE VAI PARAR DE EMITIR GASES
Bolsonaro prometeu, por exemplo, dobrar o investimento em fiscalização, mas destinou o menor recurso dos últimos 21 anos ao Ministério do Meio Ambiente. O secretário-executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini, afirmou que Bolsonaro mente. “Na verdade, ele mesmo [Bolsonaro] colocou a fiscalização ambiental no orçamento para 2021 como o menor dos últimos 20 anos, então ele simplesmente não tem a menor noção da realidade”, disse Astrini. Ele nem sabe ao certo o volume de gases emitido pelo país. Especialistas afirmam que ele errou nos números. Disse que o Brasil é responsável por 1% da emissão de gases de efeito estufa, quando, na verdade, são 4%. Mas ele disse que vai reduzir assim mesmo.
Bolsonaro disse, também, que vai acabar com o desmatamento ilegal até 2030. Uma antecipação de 10 anos em relação às metas anteriores. Ele só não explicou como vai fazer isso cortando verbas e desmontando o Ibama. Pelo que seu governo vem fazendo no meio ambiente, o desmatamento ilegal promovido pelos latifúndios vai ser mesmo é legalizado para que ele possa dizer que acabou com o desmatamento “ilegal”.
Não há por parte do governo Bolsonaro nenhuma preocupação com a fiscalização de crimes ambientais nas florestas brasileiras. Aliás, para ser mais preciso, é necessário que se trate esta questão por um outro ângulo, de uma forma diametralmente oposta. É grande, sim, a preocupação do governo com a fiscalização de crimes ambientais. Mas essa preocupação não é com a existência de criminosos ambientais, mas sim com a presença da própria fiscalização. Para o governo, ela é exagerada.
400 SERVIDORES DO IBAMA DENUNCIAM DESTRUIÇÃO DO ÓRGÃO
Isso ficou evidente na denúncia feita esta semana por 400 servidores do Ibama que, em carta aberta, alertaram sobre uma norma criada pelo governo acabando com qualquer possibilidade de um fiscal poder autuar um crime ambiental. O manifesto desmascara a política ambiental do governo Bolsonaro que, ao contrário do que ele diz no discurso, é uma política que estimula o desmatamento, a grilagem de terras indígenas, o garimpo ilegal e outros crimes cometidos contra as populações indígenas e contra o meio ambiente.
Na carta, os servidores do Ibama dão detalhes da sabotagem à fiscalização. De acordo com a nova instrução normativa, as infrações ambientais agora terão que ser autorizadas por um superior do agente que aplicar a multa. Na prática, os servidores dizem que a nova regra cria a figura de “uma espécie de censor, com ampla e irrestrita discricionariedade”, que deverá validar e comprovar toda sanção ambiental feita pelos fiscais. Ainda de acordo com o ofício, as constatações do fiscal em campo, a partir de agora, serão um mero “relatório”, que deverá ser analisado pelo superior, mas sem prazo para emitir qualquer conclusão.
“Em face disso, todos os servidores que assinam a presente carta declaram que estão com suas atividades paralisadas pelas próprias autarquias, IBAMA e ICMBio, que não providenciaram os meios necessários junto aos sistemas e equipamentos de trabalho disponíveis para o exercício da atividade de fiscalização ambiental federal, análise e preparação para julgamento de processos de apuração de infrações ambientais”, diz trecho do ofício.
RICARDO GALVÃO: PAROU DE FALAR NO COMPLÔ MARXISTA
Ricardo Galvão, ex-presidente do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), que foi exonerado do cargo por apresentar os dados oficiais sobre o desmatamento da Amazônia, ironizou o tom do discurso. Ele achou bom o fato de Bolsonaro deixar, pelo menos no discurso, de considerar o aquecimento global como um complô marxista. “Os discursos dos demais chefes de Estado deixaram claro que este problema não é um complô marxista”, disse Galvão. “O discurso é completamente contrário às medidas tomadas pelo governo até agora”, destacou o pesquisador. “As promessas feitas por ele já não foram cumpridas em 2019 e no ano passado”, lembrou.
O coordenador do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Raoni Rajão, falou da promessa de Bolsonaro de dobrar os recursos para ações de fiscalização ambiental. Ele lembra que R$2,9 bilhões seguem paralisados no Fundo Amazônia desde janeiro de 2019. “Importante Bolsonaro ter indicado mais recurso para ações de fiscalização. Mas, hoje, o Fundo Amazônia ainda tem dezenas de milhões de recursos que estão prontos para uso, inclusive para a Força Nacional”, disse Rajão.
Assista ao discurso na íntegra
O climatologista Carlos Nobre afirma que o discurso foi vago e não apresentou ações concretas. “Foi um discurso defensivo e não proativo. Se esperava que apresentassem propostas concretas de como zerar os desmatamentos, degradação e queimadas na Amazônia, fator principal que tornou o país um grande vilão ambiental, nacional e globalmente”, declarou.
FLÁVIO DINO: “ESSA DIPLOMACIA DO ‘ME DÁ UM DINHEIRO AÍ’ NÃO É CORRETA
O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), que preside o Consórcio de governadores da Amazônia Legal, manifestou opinião crítica em relação à política ambiental do governo federal e informou que 24 governadores fizeram uma carta dirigida aos participantes do encontro explicitando um programa de desenvolvimento sustentado para a região amazônica. “Atual política ambiental do governo avilta a imagem do Brasil”, afirmou Flávio Dino.
“Essa diplomacia do “me dá um dinheiro aí” não é muito correta. Porque ela avilta a imagem do Brasil em termos internacionais. É quase como se colocasse como uma chantagem. Ou me dá dinheiro ou eu não cumpro os meus deveres. Isso é errado. A abordagem tem que ser colaborativa. Ela não pode ser intervencionista, ou seja, não aceitamos imposições ao Brasil”, observou o governador.
Um episódio que revela a total incongruência entre o que disse Bolsonaro e o que ele pratica foi a exoneração do superintendente da Polícia Federal do Amazonas depois que ele denunciou o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de proteger criminosos ambientais. O delegado da Polícia Federal, Alexandre Saraiva, que foi afastado da superintendência do órgão no Amazonas por ter denunciado o ministro por favorecimento a madeireiros que atuam ilegalmente na região, afirmou que nunca havia presenciado algo assim durante seus quase 18 anos de atividade na corporação.
Em entrevista ao jornal O GLOBO, ele fez críticas à postura adotada por Ricardo Salles na área onde uma carga gigantesca de madeira ilegal foi apreendida.
“Em relação a isso, a conduta dele nós descrevemos na notícia-crime que enviamos ao STF. Num primeiro momento, ele colocou em dúvida o trabalho da PF. Em um segundo momento, foi uma conduta que patrocinava justamente a ação dos criminosos. Nos pareceu que a conduta toda favorecia os criminosos. Quando recebemos os documentos dos madeireiros e analisamos, verificamos ainda mais fraudes. Foi quando nós começamos a redigir o documento para o STF. Isso não era uma opção para mim. É um poder-dever. Era uma obrigação. Se fosse uma pessoa sem foro, instauraríamos o inquérito. Como tinha foro privilegiado, comunicamos ao Supremo”, comentou.
S.C.
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