Deputados alertam que mudança no texto realizada pelo governo é inconstitucional
Em sessão tensa que se estendeu pela madrugada desta sexta-feira (11), o plenário da Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do Projeto de Lei nº 4372/20, que regulamenta o novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).
O projeto, no entanto, sofreu significativas alterações a partir de emendas apresentadas pela base governista e que estavam fora do acordo costurado na casa para a votação. Duas emendas aprovadas incluíram escolas privadas sem fins lucrativos e o ensino profissionalizante do Sistema S entre as instituições que poderão ser beneficiadas com recursos que deveriam ser exclusivos da educação pública.
Deputados contrários às alterações pretendem ir à Justiça para barrar as mudanças feitas em plenário que atacam o principal mecanismo de financiamento da educação básica do país.
As medidas foram incluídas no texto por meio de destaques feitos por deputados da base governista diretamente no plenário e tiveram o voto contrário da Oposição e do relator do texto, o deputado Felipe Rigoni (PSB-ES).
Após negociação com as lideranças da casa, um acordo foi costurado para garantir a votação do projeto. A medida é necessária para garantir que os recursos do Fundeb estejam disponíveis para estados e municípios em 2021.
Com o acordo, o relator manteve a destinação da verba exclusivamente para o pagamento de salários de professores e investimento nas escolas públicas, respeitando assim texto original da PEC do Novo Fundeb, aprovado em agosto deste ano.
Porém, na calada da noite, após o texto base da regulamentação ter sido votado, os deputados iniciaram a votação de destaques e emendas. E a ação do governo Bolsonaro, que sempre se posicionou contra a PEC, ficou evidente.
Uma emenda de bancada do PSL, Pros e PTB, colocou a possibilidade dos recursos do Fundeb custearem convênios com o Sistema S e com entidades filantrópicas. A proposta foi aprovada por 258 votos a 180.
Outra emenda de bancada de PL, PP, PSD, Solidariedade e Avante, liberava até 10% de recursos do Fundeb para instituições privadas sem fins lucrativos que atuem na educação básica, como filantrópicas, comunitárias e confessionais – ligadas às igrejas. A proposta foi aprovada por 311 votos a 131.
Outra mudança feita em plenário que gerou revolta permite que os recursos usados para o pagamento de salários de profissionais de educação possam ser usados, também, para pagar profissionais nas instituições privadas sem fins lucrativos, como as filantrópicas e confessionais. A aprovação foi apertada, de 212 votos a 205.
Além disso, permite que o dinheiro público seja usado para pagar profissionais de outras áreas, como técnicas, administrativas e os terceirizados, além de integrantes de equipes multiprofissionais, que trabalhem nas redes de ensino básico.
QUEBRA DO ACORDO
A oposição denunciou que as mudanças violaram o acordo que possibilitou a votação do texto-base do projeto; e que elas desidrataram a Emenda Constitucional que amplia, de 10% para 23%, a participação da União no financiamento da Educação Básica no Brasil.
O Fundeb não constava na Constituição até este ano e por isso ele tinha validade. Como se trata do principal mecanismo de financiamento da educação básica brasileira, ele foi incluído no conjunto de leis do país e passa a ter caráter permanente.
A Constituição Federal, em seu artigo 213, diz ainda que a participação dessas entidades na prestação de serviços educacionais deve ser restringida a “quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando, ficando o poder público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade”.
SANGRIA
Por contrariar a Constituição Federal, deputados passaram a avaliar recorrer à Justiça contra o projeto da forma como foi aprovado. Alice Portugal (PCdoB-BA) disse que os parlamentares podem ir à Justiça por acreditar que a regulamentação não pode “desconstruir” o espírito da emenda constitucional aprovada neste ano pelo Congresso.
“Isso será judicializado, porque não pode uma regulamentação ir contra o texto da Constituição”, destacou a deputada do PCdoB.
“A possibilidade de ampliação do uso do recurso público para escolas privadas representará uma sangria dos recursos do setor público para o setor privado. E isso, principalmente neste momento de pandemia, em que o setor público está ultrassofrido, precisa adaptar-se, é algo absolutamente incompatível com a realidade da escola pública”, disse Alice Portugal.
O deputado Pompeo de Mattos (PDT-RS) afirmou que os convênios com o terceiro setor para melhorar a educação deveriam ser feitos com recursos de outras origens, sem retirar dinheiro do Fundeb. “Estão desmontando o Fundeb, aliás, esquartejando o Fundeb, e cada um está levando um pedaço para casa – filantrópica, sistema S – todos setores empresariais. O dinheiro do Fundeb é dinheiro público, dinheiro federal”, ressaltou.
“Nas periferias das grandes cidades e nos municípios mais longínquos do país não há escola confessional, não há escola filantrópica no ensino fundamental, no ensino médio, no ensino final. As crianças vão ter escola pública com menos recurso, porque parte dele foi direcionada a outras redes, de centro maior, que atende alunos que, de certa forma, estão mais privilegiados”, acrescentou Rosa Neide (PT-MT).
“Quanto vai ficar na conta das prefeituras e Estados para pagar o piso dos professores?”, questionou Rosa Neide. “Estamos vendo os recursos da escola pública serem esfacelados.”
Para o deputado Idilvan Alencar (PDT-CE), as mudanças são uma derrota simbólica para o modelo de educação pública previsto na Constituição. “Hoje é um dia triste para a escola pública brasileira. Perdemos recursos e perdemos também uma questão conceitual. Essa abertura que foi feita [para as filantrópicas] indica que a escola pública brasileira não pode ofertar serviços de qualidade? Agora são 10%, amanhã não se sabe.”
DISTRIBUIÇÃO
A Emenda Constitucional 108, que foi promulgada pelo Congresso Nacional em agosto, tornou o fundo permanente e ampliou progressivamente a complementação da União, dos atuais 10% para 23% até 2026. Contudo, faltava um projeto para regulamentar a distribuição dos recursos do fundo.
O Fundeb financia a educação básica pública e é composto de 20% da receita de oito impostos estaduais e municipais e valores transferidos de impostos federais. O projeto destina 70% do fundo na remuneração de profissionais da educação.
Vale destacar que atualmente o problema de ensino básico não Brasil não é majoritariamente a falta de vagas públicas no ensino fundamental e médio. O que falta é recurso para essas escolas.
Além disso, quando o número de escolas que podem ser beneficiadas pelo recurso público do Fundeb, que já é pouco, inclui escolas particulares, na prática o governo estará prejudicando ainda mais as escolas públicas.
As instituições filantrópicas já fazem seu trabalho sem o apoio do Estado. Quem passa pela dificuldade e muitas vezes não consegue ofertar o mínimo exigido pelas diretrizes educacionais brasileiras são as escolas públicas.
Com a regulamentação aprovada, 10 pontos percentuais seguirão as regras atuais de distribuição, para os estados mais pobres que recebem o complemento da União para atingirem o padrão mínimo.
10,5 pontos percentuais serão distribuídos para redes públicas de ensino municipal, estadual ou distrital que não atingirem o valor anual total por aluno (VAAT), parâmetro de distribuição criado com base na capacidade de financiamento das redes de ensino.
2,5 pontos percentuais complementação com base no valor anual por aluno (VAAR), que serão distribuídos de acordo com o cumprimento de condicionalidades e evolução dos indicadores, a serem definidos, de atendimento e melhoria da aprendizagem com redução das desigualdades.
Algumas condições deverão ser cumpridas, como critérios na designação de gestores, participação de alunos em avaliações, avanço nas desigualdades entre raças, distribuição do ICMS de acordo com os resultados educacionais e aprovação de currículos alinhados com a Base Nacional Comum Curricular.
A complementação da União será calculada considerando-se as receitas totais dos fundos desse mesmo exercício.
O texto ainda segue para análise no Senado Federal e precisa ser aprovado neste ano para valer a partir de 1° de janeiro de 2021. Sem a regulamentação, cerca de 1500 municípios podem perder mais de R$ 3 bilhões para aplicar em educação no próximo ano, segundo cálculos da entidade Todos pela Educação.