Com tantas peças de propaganda chegando ao distinto público no mundo inteiro mostrando como os mocinhos, os marines, estão ‘salvando afegãos no aeroporto’ dos talibãs medievais, é sempre muito importante quando alguém – no caso Waslat Harast-Nazimi, jornalista afegã trabalhando para a Deutsche Welle, cuja família imigrou para a Alemanha há muito tempo -, registra que o caos que está sendo mostrando na verdade resume “os 20 anos da guerra afegã” – mais propriamente, da ocupação neocolonial no Afeganistão.
“Cenas dramáticas no aeroporto de Cabul. Soldados americanos gritam com os afegãos que se movem na direção deles e dizem para eles recuarem. Um empurra a multidão, enquanto outro aponta sua arma para as pessoas. Alguns afegãos mostram seus passaportes – europeus também estão entre eles. Os soldados não parecem se importar. Vídeos mostram militares americanos atirando na multidão e usando gás lacrimogêneo para tentar controlar o caos. Mulheres gritam e imploram por ajuda, enquanto outras desmaiam. As crianças miram os olhares horrorizados dos pais – estão em choque”, descreve Harast-Nazimi.
Como ela destaca, são imagens que estão presentes em todos os lugares: “vejam aqui, isso acontece com aqueles que não querem ser convertidos pelo Islã primitivo. Na Alemanha e na Europa, as pessoas estão chocadas. Como foi possível se chegar a essa situação tão dramática? O quão desesperado está alguém que passa seu bebê por cima de uma cerca de arame farpado na certeza de não poder segui-lo?”
CAMPO DE REFUGIADOS
O que a jornalista escancara é que “poucas horas após a decolagem dos primeiros voos de evacuação dos americanos, o aeroporto de Cabul se transformava num desordenado campo de refugiados”.
É disso que se trata. Os arredores do aeroporto transformados em um campo de refugiados, com afegãos empurrados até o aeroporto por conclamações da embaixada, como admitiu a CNN, via ‘panfletagem’ de vistos eletrônicos sem nome e sem data ou identidade, o que um porta-voz do Talibã chamou de ‘vamos levar você conosco’ para a América.
Assim, não chega propriamente a ser surpreendente que as cenas dantescas se desenrolem diante dos espantados olhos, como o jogador de futebol de uma seleção de base que despencou de um avião de transporte norte-americano no qual não conseguiu entrar.
É como se trouxessem o muro de Trump do México para Cabul.
Ou o canal, que em outra parte do perímetro separa afegãos e marines, poderia ser o Mediterrâneo, como já vivenciaram muitos imigrantes que sonharam em alcançar a Europa.
LEI DO MAIS FORTE
Nesse recém instalado campo de refugiados à margem do aeroporto ainda sob ocupação, “aqui vale a lei do mais forte, aqui você é uma coisa: afegão”. E, portanto, “apenas uma pessoa de segunda classe e tratada como tal. Status social, nível de educação, bons contatos, riqueza ou status de residência seguro – nada disso tem mais interesse”.
Harast-Nazimi sublinha como rapidamente se vão as ilusões “de que basta apenas se esforçar o suficiente para escapar da guerra e do trauma e viver como uma pessoa de primeira classe na América do Norte ou na Europa”.
Um porta-voz do Talibã acaba de verbalizar conclusão idêntica, de que se trata essencialmente uma “imigração econômica”. Outro, condenou a ação norte-americana para promover uma “fuga de cérebros” do Afeganistão, buscando levar embora as pessoas de maior capacitação, boa parte das quais em algum momento nos últimos 20 anos, de alguma forma, teve de prestar serviço a Washington e ao governo que lá instalou.
VISÃO NEOCOLONIAL
Para Harast-Nazimi, não há como ocultar a “visão neocolonial” com que a mídia apresenta os acontecimentos no Afeganistão.
“O que está acontecendo aqui é um símbolo da imagem imposta aos afegãos há 20 anos – não, há mais de 40 anos: a de um povo desamparado e desesperado que deve ser resgatado pela comunidade mundial moralmente superior”, enfatiza.
“Só que nesses dias, estão imprensados entre soldados americanos que atiram neles de um lado e o Talibã, que os ameaça com punições arcaicas, do outro”. E os afegãos dependem de que sejam considerados “passíveis de reconhecimento seus direitos humanos e, derivado disso, garantidos seu direito à proteção e à segurança”.
Harast-Nazimi analisa que “mesmo entre pessoas de segunda classe é feita uma distinção: o bebê inocente, imaculado pela suspeita de terrorismo e islamismo, que é salvo por soldados americanos, é a categoria mais querida. Essas crianças ainda podem ser moldadas e integradas no Ocidente. Diariamente aparecem novas fotos de propaganda dos militares carregando bebês de poucos meses nos braços”.
GROTESCO
É, como ela denuncia, “tão grotesco: alguns minutos antes, os pais dessas crianças estavam sendo maltratados”.
Imagens que a lembram da “velha estratégia colonial” já usada contra os povos indígenas nos EUA e no Canadá: “Só quando se separam dos pais é que se pensa ser possível oferecer-lhes um futuro pelo qual vale a pena lutar”.
Eis o que tais cenas buscam suscitar nas plateias embaladas por décadas de apologia do ‘imperialismo humanitário’, da racionalização da tortura na ‘Guerra ao Terror’, da discriminação racial e étnica e do ódio ao diferente.
Enquanto o que vale mesmo nessa “ordem mundial das regras” é a velha e boa guerra pelo controle do petróleo, os “sete países islâmicos” a serem mudados em “cinco anos”, segundo confessou o general Wesley Clark, quando da invasão do Iraque.
Harast-Nazimi assinala o “extremo contraste” entre a criança ‘pura’ e o que é mostrado como o “afegão adulto e incivilizado”, aqueles homens que sempre batem a cabeça “em suas rixas de sangue”.
No Ocidente – completa – “não há nenhuma simpatia pelos afegãos em particular. Sempre as pessoas se perguntam por que são quase exclusivamente homens que chegam como refugiados. Por que eles não lutaram? Por que se renderam ao Talibã sem lutar?”.
OCUPAÇÃO NÃO É “A NAÇÃO AFEGÔ
Seria exigir demais da jornalista que se apercebesse de toda a complexidade do drama que se desenrola no Afeganistão. Para ela, o Exército afegão “não desistiu sem lutar”, mas foi “abandonado pelos EUA e pela Otan, assim como por seu próprio governo” e a “missão no Afeganistão” incluiria que, além da luta contra o terrorismo, “o Ocidente queria libertar o Afeganistão do Talibã para salvar as mulheres afegãs”.
Há outros observadores que vêem de forma diferente o que aconteceu.
Quando o presidente Biden explicou o vertiginoso colapso do exército criado pelos EUA, diante do Talibã, dizendo que não é possível manter uma guerra se os próprios afegãos não querem “lutar para defender sua nação”, um sociólogo que conhece de perto o Afeganistão assinalou que, não, a ocupação “não era a nação afegã”, e o que a população via no ‘governo de Cabul’ era um bando de ladrões e serviçais, que já vai tarde.
Quando o poderoso senhor de guerra de Washington marcou a data da retirada, os que viviam de suas migalhas acharam que o serviço acabou e é vida que segue.
Os talibãs foram uma criação imperial para pôr rédeas no ‘governo dos mujahedins’, também promovido desde Washington, Karachi e Riad. Entre 1996 e 2001, não era considerado nas capitais do Ocidente nem particularmente brutal, nem especialmente opressivo às mulheres e, sim, um bom parceiro de possíveis negócios, com o qual chegou a ser discutido um gasoduto.
O que só mudou após a queda televisionada das Torres Gêmeas, que solucionou o contencioso gerado nos EUA pelo roubo na eleição de Al Gore e a entronização de W. Bush na Casa Branca, cumprindo uma inusitada profecia dos arautos do ‘Século Americano’.
Assim, a “libertação das mulheres afegãs” tornou-se a posteriori um pretexto para a existência do campo de concentração de Guantánamo e para a encenação, diante do Conselho de Segurança da ONU, das inexistentes ‘armas de destruição em massa de Saddam’, seguida pele invasão do Iraque passando por cima da própria ONU.
Ou para minimizar o estrago feito pelas denúncias de crimes de guerra, da tortura em Bagram e Guantánamo (e, depois, Abu Graib), dos drones promovendo chacinas de civis em casamentos e funerais.
A valer o raciocínio da jornalista, a Arábia Saudita, com sua política extremamente retrógrada em relação às mulheres, precisaria ser “libertada” pela Otan. O que não passa pela cabeça de ninguém de bom senso.
À PRÓPRIA SORTE
Também no Afeganistão essa questão histórica não poderia – e não foi – resolvida pela invasão estrangeira. Mas o será pelo desenvolvimento das forças produtivas, da educação e da cultura, que nos tempos modernos não têm como funcionar excluindo as mulheres. No Ocidente, os direitos das mulheres quase inexistiam há pouco mais de um século.
Nos anos 1980, foi o ataque das forças mais retrógradas do planeta, a CIA, o seu rebento Al Qaeda e os mujahedins combatentes da liberdade de Reagan, que acabou por derrotar um governo progressista, que buscava aplicar a reforma agrária, alfabetizar em massa e avançar a emancipação das mulheres.
Foi assim que se abriu o caminho para o Afeganistão de hoje que, sob a ocupação, multiplicou por 40 vezes a produção de ópio.
Para Harast-Nazimi, as mulheres afegãs “estão sendo deixadas à própria sorte novamente. Somente aquelas que conseguem chegar a um avião rumo ao Ocidente têm a chance de viver como mulheres de uma forma que corresponda ao ideal ocidental. Todos os outros – e especialmente os homens do Afeganistão – são deixados à própria sorte”.
Quanto à sorte que aguarda os afegãos, conforme as notícias, Washington já se prepara para fazer sua parte: estão a caminho sanções e já anunciaram o confisco das reservas no Federal Bank of New York e o ‘não’ dos direitos de saque do FMI.
É iminente a exaustão da ajuda, advertem os organismos humanitários da ONU, observando como os aviões partiram vazios para a evacuação em Cabul, enquanto remédios e alimentos ficavam retidos. O chanceler chinês, Wang Yi, condenou as ameaças de sanções e chamou a apoiar o Afeganistão e seu povo e a respeitar seu caminho próprio.
Agora, não deixar os afegãos “à própria sorte” é principalmente atuar para impedir a destruição do Estado afegão – o que foi feito contra a Líbia, contra a Somália, e tentado contra a Síria, e que levou uma secretária de Estado a ser apelidada de “rainha do caos”.
Atuar pela constituição de um “governo inclusivo” que encontre o caminho próprio afegão, com a história fazendo um zig-zag por meio do Talibã, que acabou sendo a resistência à ocupação que existiu. E com a comunidade internacional apoiando as mulheres afegãs, cuja sorte elas insistem em mudar desde a já agora longínqua ‘revolução de abril’.