O epidemiologista da Fiocruz rebateu os artigos que apontam maior transmissibilidade da Covid-19 por parte das crianças e defendeu prioridade na preparação das escolas públicas para a volta às aulas
O epidemiologista e professor da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), Eduardo Costa, que foi Secretário de Saúde do Rio de Janeiro no governo de Leonel Brizola, participou na quinta-feira (20) de um debate promovido pelo site “Quarentena News”, sobre a volta ou não às aulas diante do atual estágio da pandemia da Covid-19. Ele analisou ainda os dois trabalhos científicos que vieram a público recentemente tratando sobre o tema da transmissibilidade do coronavírus por crianças.
Na entrevista ao HP, nesta sexta-feira (21), Eduardo Costa acrescentou mais detalhes sobre os artigos científicos e argumentou sobre o que ele acha necessário para que as as aulas possam ser retomadas com segurança no Brasil.
Eduardo fez críticas, tanto ao trabalho que foi publicado na revista Jama, como à pesquisa publicada no Journal of Pediatrics, realizada pelos professores Alessio Fasano e a médica Lael Yonker, ambos do Hospital Geral de Massachusetts, que integra a Escola Médica de Harvard (v. HP: “Contágio da Covid-19 por crianças é maior do que se pensava”, revela pesquisa“).
Os dois trabalhos, que versaram sobre a infecção pelo Sars-CoV-2 em crianças, apontando para uma alta transmissibilidade do vírus, têm, na opinião de epidemiologista brasileiro, “problemas metodológicos e reduzido número de participantes – ou “N” muito pequeno – para que se possa chegar a conclusões consistentes a partir de seus resultados”, advertiu.
Eduardo Costa disse que “a discussão sobre a volta ou não às aulas não está bem colocada”. “Eu creio que a questão da volta às aulas não tem sido bem feita. A visão de se colocar que os principais interessados sejam os pais das crianças e os professores é uma simplificação do problema. A educação é obrigatória, especialmente o fundamental, etc, no país, ela é uma necessidade da sociedade. E é claro que a tendência toda é que nós devemos manter os programas de aulas”, argumentou.
“A educação é obrigatória, especialmente o fundamental, no país, como uma necessidade da sociedade”
“O problema é que o mais importante para a volta às aulas ninguém fala. Que é preparar as escolas de modo que elas tenham o que nós chamamos uma vigilância escolar do ponto de vista epidemiológico. É uma medida simples. Precisa pouca coisa para fazer. Não tem altos custos”, destacou o epidemiologista da Fiocruz.
Segue a entrevista na íntegra
HORA DO POVO: Qual sua avaliação do trabalho de dois médicos americanos, divulgado está semana, dando conta de que, ao contrário do que se achava, as crianças são altamente transmissoras do coronavÍrus?
EDUARDO COSTA: O estudo que eu comentei no debate, publicado no Jama, apresenta conclusões desse tipo, de que poderia haver um contágio maior do que o imaginado em crianças. O problema é que ele tem uma base muito fraca, com problemas, como eu disse, até mesmo o autor muito envolvido com estudos feitos para grandes empresas farmacêuticas, deixa muito a desejar e é um estudo, enfim, que tem circulado no meio científico aqui há mais tempo.
São coisas que atrapalham muito quando vão para a mídia ou vão para outros tipos de meios e circulam um pouco acriticamente. Correspondem a ideias que alguém tem, ou precisa ter. Então tem que se prevenir contra esse tipo de coisa.
Uma outra referência diferente, que foi publicado no Journal of Pediatrics, tem problemas também. Estudos com base institucional única costumam ter problemas. O total de participantes, na verdade, que entram no estudo, são selecionados entre os casos internados. São 67 crianças que apresentaram Covid-19, tendo dado entrada numa clínica. Eram crianças com sintomatologias importantes, suficientes para entrarem numa emergência, ou seriam diretamente hospitalizados.
É claro que criança em emergência respiratória não é tão incomum assim, por outros tipos de sintomas, asma, etc. Eles então testaram todos esses que entraram na emergência ou foram hospitalizados. Eles, entre 192, eles encontraram 67 crianças confirmadas com Covid-19. Isso consideradas idades até 22 anos.
Se focarmos, num outro grupo de pacientes graves que serviram de base de comparação. O grupo de paciente adultos que foram selecionados, não está muito bem explicitado que critérios foram utilizados para selecioná-los. Realmente, tiveram alguns casos que foram a óbito, o que não foi o caso das crianças.
O que se viu ali. Se viu, primeiro, que a quantidade de crianças pequenas é mínima. Um número muito pequeno. Se retirarmos os que têm entre 16 e 22 anos da lista, nós vamos descobrir que estamos com 51 crianças em estudo. Uma mostra pequena de crianças que foram examinadas. Mas, o que é surpreendente é que crianças menores de cinco anos são outras 16. Isso não dá para comparar essa incidência com as taxas de adultos. Isso é insuficiente para se chegar a conclusões consistentes.
O que tem de significativo é que, nas crianças que adoeceram, comparado com esses adultos, elas tinham uma carga viral maior dois dias antes da doença. Outra coisa é que a metade delas não tinha febre na definição do CDC. Esta definição diz que tem que ser uma temperatura maior do que 38º por dois dias sustentados. E com isso, dizem que é muito difícil fazer a contenção dos casos. Embora preguem que se faça a contenção, que se faça esse trabalho diretamente, que é o ponto mais importante do estudo.
Ou seja, esse estudo não mostra de maneira cabal a importância na transmissão de crianças.
Não têm metodologia, portanto, para mostrar a importância da transmissão. Porque teve um nível de carga viral maior do que o grupo de adultos em situações de hospitalização, que já estão em fases bem diferentes, nós não temos esses dados no estudo, e também a diferença não é tão grande.
“Esse estudo não mostra de maneira cabal a importância na transmissão de crianças”
Dão uma suspeita de que também podem transmitir, mas isso todo mundo sabe, que as crianças também pode transmitir. A questão é que muito poucos chegam a adoecer para poder transmitir. E essa é que é a questão.
Não se avalia a questão do risco. Quando seleciona todas as crianças que tiveram sintomas respiratórios e separa as positivas, você está chegando num número muito pequeno. Então, eu acho que esse estudo não reforça nenhuma ideia da importância da transmissão.
De dado objetivo seria a carga viral e o fato que concluírem que muitas crianças não têm sintomas, o que é mais ou menos comum e já sabido. Ou seja, que elas não têm sintomas graves. Alguns há, como febre e a própria Síndrome Inflamatória.
Se você seleciona crianças com alguma dificuldade, talvez imunológica, para isso, não pode surpreender-se que tenha uma carga viral alta. Porque já são muito selecionadas ao adoecerem. Não influi sobre a discussão sobre a volta ou não vota às aulas, mas influi sobre a discussão que, se volta, é preciso manter o sistema de vigilância com exames da garganta das crianças, ou através da saliva, em outro método, periódico ou não, ou ligado aos questionários que, ainda que sejam 50% com febre, nos interessa detectar os que têm febre.
Assista ao vídeo com a participação de Eduardo Costa
“Se você seleciona crianças com alguma dificuldade, talvez imunológica, para isso, não pode surpreender-se que tenha uma carga viral alta”
HORA DO POVO: O que se deve fazer para que as crianças possam voltar às aulas com segurança? O ano letivo já está perdido?
EDUARDO COSTA: Eu creio que a questão da volta às aulas não tem sido bem posta.
A visão de se colocar que os principais interessados sejam os pais das crianças e os professores é uma simplificação do problema.
A educação é obrigatória, especialmente o fundamental, etc, no país, como uma necessidade da sociedade. E é claro que a tendência toda é que nós devemos manter os programas de aulas.
As circunstâncias iniciais dessa pandemia fizeram com que as decisões fossem tomadas, na verdade tentando isso que foi o isolamento indiscriminado. Mas não seguiram necessariamente o que aconteceu em outros países. A OMS passou uma visão, creio inadequada, no início, para o que se chama isolamento social indiscriminado no país inteiro. Quando na verdade aqueles países lá da Ásia, especialmente, China e outros ali próximos, com outro tipo de experiência, concentraram nas áreas e locais atingidos e fizeram evidentemente o que é chamado de confinamento.
No país o que eles controlaram foi a questão dos turistas, da entrada e saída. Isso no Brasil não foi bem feito. Deixaram a coisa ir para o indiscriminado logo, sem centrar no lugar onde chegou, o que devia ser feito. Como é que vamos impedir a entrada? Nem mesmo soubemos como agir internamente.
Então isso levou a que muito cedo as escolas como um todo fossem fechadas. Isso determinou que passou a ser normal que não tivesse as aulas. Em nome evidentemente de uma coisa que daria pouco prejuízo econômico imediato parar as aulas e, ao mesmo tempo diminuiria a disseminação.
Mas as informações que vieram depois mostraram isso, que as escolas, ou especialmente as crianças não são boas transmissoras. Por razões que nós não conhecemos direito, elas transmitem pouco e adoecem pouco, relativamente ao resto da população.
Evidente que essa observação tem um viés. Porque se as escolas foram fechadas logo, poderia te tido mais transmissão.
Acontece que esses estudos que se preocupam com isso são europeus e realmente as escolas eram instrumentos de controle. Não é bem a situação do Brasil. A situação do Brasil é diferente. Eles lá também fizeram de uma maneira geral regionalizada. Se lembrar da Itália, foi primeiro toda aquela região da Lombardia que foi atingida intensamente. No resto do país foi um pouco diferente.
O grande problema do Brasil é que foi tomada uma decisão que é como se fosse um pouco de, vamos chamar assim, um “laissez-faire”. Já que as aulas estão suspensas, nós estamos chegando no fim do ano, então por que não esperar um pouco e completar o ano? Então muita gente vai dizer que é uma expectativa que cobre muitas coisas.
O grande problema do Brasil é que foi tomada uma decisão que é como se fosse um pouco de, vamos chamar assim, um “laissez-faire”
Se é justo ou injusto, nunca perguntam. Ou se perguntam, não consideram a resposta. Não é por razões muito claras. Primeiro, é um país dividido e, no caso agudo do Brasil, com a distribuição de renda absolutamente desigual.
E que ficar em casa e manter gente cuidando de criança em casa é um privilégio de não tantos, comparado ao total da população. Poder ficar em casa cuidando e criança, fazendo aula online, uns não têm nem equipamentos e nem a estrutura da casa, com pais que possam ajudar.
Então, nós estamos numa realidade que agudizou o distanciamento social. Estamos num distanciamento social injusto porque as crianças cada vez mais se distanciam, em termos de aprendizado, de formação, mais até do que aprendizado, do que as crianças da classe média, etc, que têm condições de ficar em casa e os pais ajudarem.
“Então, nós estamos numa realidade que agudizou o distanciamento social. Estamos num distanciamento social injusto porque as crianças cada vez mais se distanciam, em termos de aprendizado, de formação, mais até do que aprendizado, do que as crianças da classe média, etc, que têm condições de ficar em casa e os pais ajudarem”
Temos que sempre pensar nisso, que temos duas respostas. A outra situação, para quem conhece o Rio de Janeiro, é a questão da violência nas áreas de baixa renda, e as arbitrariedades policiais, que provocam muitas mortes de crianças. A mortalidade de jovens, especialmente negros, é muito alta. E sempre se pensou que uma das maneiras de ajudar a proteger essas crianças é ter escolas porque é um ambiente onde o Estado pode estar presente de uma maneira adequada nessas áreas.
Se fachamos o único equipamento, na verdade, público que existe nessas áreas, para chegar perto e dar condições mínimas naquele território com uma presença, nós estamos abandonando à barbárie geral. Então, eu acho que isso não pode ser um objetivo que a gente tenha automaticamente.
Nós temos que pensar. Eu tenho essa visão que é a seguinte. As áreas de escola pública deviam ser as que devem abrir. As privadas podem abrir quando quiserem. Os recursos estão ali, podem fazer como acharem melhor. Eles já quiseram essa autonomia, embora eu não seja a favor disso. Eu quero dizer que nesse momento é apenas uma regulação geral que eles recebem.
Mas nesse momento, eu diria que nós temos que nos esforçar para que as escolas públicas voltem.
Eu gostei do debate da live, até certo modo, eles perceberam porque no final eu fiz um discurso um pouco mais forte. O argumento de que tinha muito risco, as escolas eram precárias nas áreas pobres, etc.
Também os médicos, auxiliares de enfermagem e outros, estão indo em áreas de alto risco dessa doença. E estão fazendo esse trabalho. Eu não penso que os professores devem ficar achando que devem ficar vivendo num mundo a parte quando têm uma obrigação social forte, muito forte de proteção, como fazem os que estão no front médico.
A segunda coisa é que essa discussão de escola pública e privada também me incomoda. Pela seguinte razão. Se nós tivermos, como eu fui do governo Brizola, com o nosso projeto educacional de qualidade. Quem conhece os prédios, mesmo com alguns problemas que tenham, estão todos inteiros. Não estão caindo aos pedaços. Quando estão caindo aos pedaços é poque foram transformados em outras coisas, porque são governos que não estão preocupados com educação.
Então se fala em nome de “escolinhas” sem condições. Na verdade se deixou 500 Cieps para o estado do Rio de Janeiro. Escolas grandes, com possibilidade de apoio de leitura de esportes para crianças. Sei que muitas foram transformadas em outras coisas. Mas é mostrar só que a presença de um Cieps funcionando como foram projetados, nós não teríamos essa pergunta colocada se deve ir ou não para a escola.
As crianças estariam na escola e protegidos, com consultório médico, com consultório odontológico, com animador cultural para fazer as aulas de teatro, etc. É uma escola de formação. E faria parte dessa formação aprender como se proteger e proteger sua família. Chamaríamos junto a área de assistência social.
Para fazer as medidas que são mais importantes. Porque o mais importante para a volta às aulas ninguém fala.
Que é preparar as escolas de modo que elas tenham o que nós chamamos uma vigilância escolar do ponto de vista epidemiológico. É uma medida simples. Precisa pouca coisa para fazer. Não tem altos custos.
“Preparar as escolas de modo que elas tenham o que nós chamamos uma vigilância escolar do ponto de vista epidemiológico. É uma medida simples. Precisa pouca coisa para fazer. Não tem altos custos”.
Agora, o que eu não posso resolver nesse momento, sou a favor, mas não posso resolver, é o fato que não tem carreira para professor direito, que eles ganham mal, isso é uma coisa que está fugindo. Porque é um problema de lutas. Nós estamos perdendo no geral sobre isso também.
Mas eu não posso castigar a criança por causa disso. Eu tenho que lutar no ponto certo, no objetivo e enfrentamento certos.
SÉRGIO CRUZ