“Como homem e como Presidente, sou daltônico: todos têm a mesma cor”, disse Bolsonaro, numa referência às manifestações contra o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, em um supermercado Carrefour de Porto Alegre (v. HP 20/11/2020, João Alberto, homem negro, espancado até a morte por seguranças do Carrefour em Porto Alegre).
A declaração não é apenas uma negação da existência de racismo no Brasil, na linha do vice-presidente Hamilton Mourão (v. HP 20/11/2020, “Não há racismo no Brasil”, diz Mourão ao falar de negro assassinado em Porto Alegre).
Se fosse, seria um absurdo, como foi a reação de Mourão, ao pretender que o assassinato de João Alberto foi apenas uma consequência do despreparo dos seguranças do Carrefour.
Mourão, aliás, continua o mesmo de quando declarou que o brasileiro “herdou a indolência, que vem da cultura indígena. E a malandragem, oriunda do africano”.
Porém, o que Bolsonaro está negando, com seu suposto “daltonismo”, é o próprio povo brasileiro. A rigor, é uma agressão ao povo do Brasil, por parte de um sujeito que ocupa o lugar de Presidente da República do país.
Exatamente por isso, Bolsonaro, sob o mesmo propósito, também disse: “Aqueles que instigam o povo à discórdia, fabricando e promovendo conflitos, atentam não somente contra a nação, mas contra nossa própria história. Quem prega isso está no lugar errado. Seu lugar é no lixo”.
Quem, nos últimos tempos, tem instigado à discórdia?
Quem, sempre, tem fabricado e promovido conflitos?
Quem – todos os dias, há dois anos – tem atentado, reiterada e brutalmente, contra a Nação e contra a nossa História?
Quem está no lugar errado?
Quem, portanto, deveria estar no lixo, porque é o seu lugar?
Há, no país, um consenso, sobre quem é este elemento: Jair Bolsonaro.
Se existem ainda os que se iludem – por isso ou por aquilo – com ele, o primeiro turno das eleições municipais mostrou que essa ilusão é minguante. Não apenas pela derrocada dos bolsonaristas que não conseguiram se eleger. Até o candidato por quem Bolsonaro mais se empenhou – seu filho Carluxo – teve um encolhimento de nada menos que 1/3 de seus votos, em relação à última eleição para vereador (2016). E no Rio de Janeiro, por onde Bolsonaro sempre concorreu às eleições e território em que estão os seus principais sequazes milicianos.
Naturalmente – até onde isso pode ser “natural” -, apesar disso, há também a categoria dos oligofrênicos políticos, que existem em quase qualquer sociedade, e a dos aproveitadores, como alguns integrantes do “centrão” que apoiam Bolsonaro exatamente pela fragilidade inerente à sua condição de representante do lixo social.
Mas voltemos ao “daltonismo” (com todo respeito aos verdadeiros daltônicos) de Bolsonaro em relação à cor – ou às cores – do povo brasileiro.
Se existe algo que, desde a nossa formação nacional, caracteriza e distingue especificamente o nosso povo é a cor, ou, melhor seria dizer, as cores.
Somos, há muito, o povo mais colorido do mundo.
Foi o próprio D. Pedro I (na época, “príncipe-regente”), que, em uma carta ao pai, D. João VI, registrou o racismo das tropas lusitanas que ocupavam o Brasil.
Escreveu D. Pedro, sobre a sublevação do general português Jorge de Avilez, comandante da Divisão Auxiliadora, ferozmente anti-brasileira:
“Indo eu ao teatro, reparei na falta do general, que costumava não faltar: uma hora depois de estar no teatro, começaram os soldados da divisão auxiliadora a quebrarem as vidraças pelas ruas, quebrando, e apagando as luminárias com paus, e dizendo: esta cabrada leva-se a pau” (Carta XVI, 23 de janeiro de 1822, in Cartas de D. Pedro a seu Pae D. João VI, Typographia Brasil de Rothschild & Cia., S. Paulo, 1916, p. 57, grifo no original).
“Cabra” era o nome pejorativo, usado pelos portugueses que se opunham à Independência do Brasil, para os mestiços, especialmente os negros – embora, também para os mestiços de índios, tanto com negros quanto com brancos.
Por isso, o povo brasileiro, já na época da independência, era chamado de “cabrada” pelos colonialistas – ou, como diz outro lusitano oposto à Independência, em carta a D. Pedro, o povo brasileiro é a “súcia cabralhada”. O sujeito queixava-se a D. Pedro de que o “povo miúdo” estava demasiado “atrevido” (cf. Octávio Tarquínio de Sousa, História dos Fundadores do Império do Brasil, Vol. III, A vida de D. Pedro I, T. II, 3ª ed., Livraria José Olympio Editora, Rio, 1957, p. 762).
Já publicamos o testemunho de Maria Graham, que estava no Brasil durante os acontecimentos de 1822, sobre o povo que venceu as tropas coloniais, inclusive a primeira resistência à sublevação de Avilez contra D. Pedro, que partiu, nas palavras da autora, dos “negros” (v. HP 17/02/2017, Maria Graham no Brasil: Maria Quitéria, José Bonifácio e o alvorecer do país; v., também, HP 19/10/2017, Os Andradas e outros heróis da Independência do Brasil – 11 e HP 10/02/2020, A República e a formação do caráter nacional (1)).
O racismo, no Brasil, é, portanto, um ataque a todo o povo brasileiro, à nossa Independência, à nossa Nação.
Por isso, o “daltonismo” de Bolsonaro é a negação do povo brasileiro e do Brasil.
Aliás, é uma aberração que Bolsonaro pretenda negar o racismo, em nome, como disse, da “soberania” do Brasil.
Logo Bolsonaro, um serviçal de Trump e do que existe de mais odiosamente racista nos EUA. Não existe, no Brasil, um inimigo pior da nossa soberania nacional do que Bolsonaro.
Aliás, não há nada mais racista do que ignorar – ou pretender ignorar – a cor do povo brasileiro.
Que Bolsonaro pretenda atribuir as manifestações que exigem justiça para João Alberto à importação da “luta por igualdade” e por “justiça social” (sic), só demonstra o quanto esse degenerado é antagônico a qualquer igualdade e justiça social.
Ou seja, o quanto ele odeia o povo brasileiro.
Algo que alguns de seus próprios seguidores nas redes sociais perceberam: “Queria ver se fosse seu filho ou pai, [se Bolsonaro] falaria isso. Hipócrita!”, disse um deles.
“Perdeu a oportunidade de ficar calado”, disse outro seguidor de Bolsonaro, comentando suas declarações de ontem (21/11).
C.L.