As decisões da segunda turma do Supremo Tribunal Federal (STF) a favor de requerimentos da defesa de Lula, na terça-feira (04/08), tiveram, ambas, dois votos – os dos ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.
O relator da Operação Lava Jato no STF, ministro Edson Fachin, votou contra as duas decisões.
Outros dois integrantes da segunda turma – a ministra Cármen Lúcia e o ministro Celso de Mello – estiveram ausentes da sessão.
Assim, tudo foi decidido por Lewandowski e Mendes – e ambas as decisões foram tomadas por dois votos a um, em uma turma que tem cinco integrantes.
Não foi um fenômeno.
Menos ainda pelo conteúdo das decisões.
Aliás, elas não teriam grande importância – ou, pelo menos, teriam menos importância – se não dessem algum fôlego à campanha bolsonarista contra o combate à corrupção e contra o ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro.
Como o procurador Augusto Aras e o próprio Flávio Bolsonaro, com suas declarações e atitudes, deixam claro, essas decisões levam água ao famoso anti-lavajatismo de algibeira, no qual Aras se tornou notório (v. HP 30/07/2020, Ataque de Aras à Lava Jato é para acoitar corrupção de Bolsonaro e aliados).
É sobretudo considerando esse fato político, que essas decisões merecem ser analisadas.
PROTELAÇÃO
O primeiro pedido da defesa de Lula era meramente procrastinatório – ou seja, tinha o objetivo de adiar seu julgamento no processo a que responde por receber dinheiro da Odebrecht para a então projetada nova sede do Instituto Lula e para comprar um apartamento ao lado do seu – em nome de um primo do empresário José Carlos Bumlai -, que lhe permitiu dobrar a área de sua residência.
Esse processo envolve uma propina de R$ 75.434.399,44 (75 milhões, 434 mil, 399 reais e 44 centavos) ao PT e R$ 12.422.000 (12 milhões e 422 mil reais) especificamente para Lula.
O ministro Edson Fachin já concedera, duas vezes (em junho de 2019 e em agosto de 2019), à defesa de Lula, acesso ao material da Odebrecht.
Fachin também já concedera o direito de Lula fazer suas alegações finais após o conhecimento desse material e das alegações dos réus que realizaram acordos de colaboração premiada (v. decisão do ministro Fachin em 28/08/2019).
Apesar disso, a defesa de Lula recorreu, argumentando que houve cerceamento no acesso ao material – e, mesmo, que haveria algo suspeito no material colocado à sua disposição (v. o voto do ministro Lewandowski, terça-feira, sobre a Reclamação 33.543).
Essa insistência da defesa de Lula motivou um comentário da subprocuradora-geral Cláudia Sampaio Marques, que representou o Ministério Público: “O eminente advogado [de Lula] quer tudo que está ali dentro. Quem a Odebrecht corrompeu, todas as relações mantidas pela Odebrecht durante todo esse período. Ele não quer é a prolação da sentença condenatória [de Lula]”
O relator, Edson Fachin, julgou improcedente a Reclamação, até porque o pedido já fora satisfeito.
Lewandowski e Gilmar Mendes concederam o pedido da defesa – embora, mesmo eles, concederam apenas acesso restrito ao acordo da Odebrecht. Os advogados de Lula somente terão acesso ao que diz respeito a seu cliente.
Mas isso já fora concedido. Do ponto de vista da análise das provas, a decisão apenas repete a de Fachin, há um ano. As provas que vão ser analisadas pela defesa são as mesmas, essencialmente, a que ela já obtivera acesso em junho e agosto de 2019.
Porém, Lewandowski, em seu voto, apoiado por Mendes, reabriu o prazo para que Lula apresente suas alegações finais – e o resultado concreto é o adiamento do julgamento de Lula.
O motivo é que a defesa de Lula pretende a anulação de julgamentos anteriores, antes do julgamento desse terceiro processo (até agora, Lula foi condenado pelas propinas do triplex de Guarujá e do sítio de Atibaia).
A decisão na segunda turma foi, portanto, política, embora com uma cobertura jurídica, colocada pelo ministro Lewandowski: “tratando-se de imputação de responsabilidade criminal, não pode haver qualquer incerteza sobre a fidedignidade das provas que deram suporte à acusação”.
Entretanto, ele não demonstrou a existência dessa incerteza – apenas expôs as alegações da defesa de Lula como se fossem “incertezas”.
Mas, pelo menos, Lewandowski não entrou, sem inibições, em matéria tendenciosamente política para basear uma decisão jurídica.
DEPOIMENTO DE PALOCCI
O mesmo não se pode dizer da outra decisão tomada por Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski na terça-feira, na segunda turma do STF, também contra o voto de Fachin.
A retirada (“desentranhamento”) da “colaboração premiada” de Palocci sobre a propina da Odebrecht a Lula e ao PT, no mesmo processo, é a retirada de um elemento de corroboração das provas materiais.
Não é qualquer “elemento de corroboração”. Trata-se do depoimento do intermediário entre a Odebrecht e Lula. Palocci, por decisão do último, era o gestor dos recursos ilícitos que saíam da Odebrecht.
Mas é verdade que o outro depoimento de Palocci, no próprio processo, não pode ser retirado das provas e continua como corroboração das provas materiais.
[Para uma exposição detalhada das provas, v. Processo Penal 5063130-17.2016.404.7000.]
Esse processo está correndo desde 2016. Aqui, o resumo do Ministério Público Federal:
“Crimes de corrupção e lavagem de dinheiro praticados pelo ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva em razão de contratos firmado entre a Petrobras e a Construtora Norberto Odebrecht S/A. Também foram denunciados Antônio Palocci, Branislav Kontic, Paulo Melo, Demerval Galvão, Glaucos da Costamarques, Roberto Teixeira e Marisa Letícia Lula da Silva. Conforme a denúncia, a propina, equivalente a percentuais de 2% a 3% dos oito contratos celebrados entre a Petrobras e a Construtora Norberto Odebrecht S/A, totaliza R$ 75.434.399,44. Parte do valor das propinas pagas pela Construtora Norberto Odebrecht S/A foi lavada mediante a aquisição, em benefício do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do imóvel localizado na Rua Dr. Haberbeck Brandão, nº 178, em São Paulo (SP), em setembro de 2010, que seria usado para a instalação do Instituto Lula. O acerto do pagamento da propina destinada ao ex-presidente foi intermediado pelo então deputado federal Antonio Palocci, com o auxílio de seu assessor parlamentar Branislav Kontic, que mantinham contato direto com Marcelo Odebrecht, auxiliado por Paulo Melo, a respeito da instalação do espaço institucional pretendido pelo ex-presidente”.
Porém, para retirar do processo a colaboração de Palocci, não restou alternativa, senão recorrer a alegações meramente políticas.
Basicamente, Lewandowski e Mendes recorreram a acusações contra Sérgio Moro:
1) Moro teria levantado o sigilo do depoimento de Palocci antes do primeiro turno da eleição presidencial para “influenciar, de forma direta e relevante, o resultado da disputa eleitoral”.
2) Com essa premissa, a ação de Moro, ao juntar ao processo o depoimento da colaboração premiada de Palocci, constituiria “inequívoca quebra da imparcialidade”.
Quanto à pertinência de anexar a colaboração de Palocci, essa questão foi completamente ofuscada. Como se o fato de Moro tê-la anexado ao processo antes do primeiro turno das últimas eleições para presidente anulasse o seu conteúdo ou a importância de considerá-la.
Trata-se de uma ação que ainda não foi julgada – nem por Moro, nem por ninguém.
Gilmar Mendes foi ainda mais claro quanto ao fundo de sua argumentação: “Chama a atenção o fato de que tanto a juntada aos autos do acordo (de colaboração premiada de Palocci) quanto o levantamento do seu sigilo teriam ocorrido por iniciativa do próprio juiz, isto é, sem qualquer provocação do órgão acusatório. Essas circunstâncias, quando examinadas de forma holística, são vetores possivelmente indicativos da quebra da imparcialidade por parte do magistrado”.
A “forma holística” de Mendes, nesse caso, esqueceu que ele próprio já votou em um habeas corpus, que não foi pedido pela defesa do réu (aliás, “paciente”, como são chamados os réus nas ações de habeas corpus), para tirar o ex-ministro José Dirceu da cadeia, apesar de condenado em duas instâncias da Justiça – e, repetimos, sem que a defesa de Dirceu tivesse pedido tal benefício.
É verdade que o próprio Moro, quando aceitou entrar no Ministério de Bolsonaro, abriu o flanco para que acusações como às de Lewandowski e Mendes fossem proferidas.
Porém, se o problema político fosse esse, já estaria sanado – afinal, Moro já saiu do governo, e hoje é crítico (aliás, um dos mais incômodos) de Bolsonaro.
Entretanto, o que se quer é usar o mau passo de Moro para destruir o combate à corrupção. Mesmo depois que ele corrigiu o mau passo.
Em nota sobre a decisão votada por Lewandowski e Mendes na terça-feira, o ex-juiz Sérgio Moro declarou:
“Relativamente às afirmações efetuadas pelos Ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski sobre parcialidade no julgamento do ex-Presidente Lula, cabe respeitosamente informar:
“a) O ex-Ministro Antonio Palocci já havia prestado depoimento público na mesma ação penal sobre fatos atinentes ao ex-presidente, portanto a inclusão da delação não revelou nada novo;
“b) A inclusão da delação no processo visou a garantia da ampla defesa, dando ciência de elementos que eram relevantes para o caso e que ainda não haviam sido juntados aos autos, como exposto no despacho;
“c) Eu, como juiz, sequer proferi sentença na ação penal na qual houve a inclusão da delação de Palocci;
“d) a sentença condenatória contra o ex-presidente que proferi é de julho de 2017, ou seja, foi em outra ação penal e muito antes de qualquer campanha eleitoral, sendo ainda confirmada pelo TRF4 e STJ”.
CAMPANHA PELA SUSPEIÇÃO
O problema é que existe um julgamento de suposta suspeição de Moro, com o objetivo de anular o processo em que ele condenou Lula – o processo da propina do triplex de Guarujá.
Esse julgamento, também na segunda turma do STF, começou em 2018. Já votaram a ministra Cármen Lúcia e o ministro Fachin – ambos votaram contra a “suspeição” de Moro.
Mas o julgamento foi suspenso por um “pedido de vista” de Gilmar Mendes.
Faltam votar os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e o decano Celso de Mello – que se aposentará do STF, devido à idade, no próximo dia 1º de novembro.
Na prática, a expectativa da defesa de Lula é que a “suspeição” de Moro seja aprovada – e, com isso, a condenação no caso do triplex estaria anulada.
Os ataques a Moro, na sessão da segunda turma de terça-feira, são uma espécie de campanha em função desse último julgamento.
C.L.
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